sexta-feira, 28 de maio de 2010

A IDEOLOGIA REPRESSORA DA POLÍCIA MILITAR

A trajetória histórica das polícias segue de um processo civilizador no sentido de regular a conduta do indivíduo no contexto social através de instrumentos disciplinadores, operando com o uso da repressão e da ideologia.
Para reforçar a concepção de reguladora, recorro à sustentação teórica de outros dois autores consagrados: Norbert Elias sobre os processos civilizadores, e Michel Foucault sobre o poder disciplinador.
Segundo Norbert Elias, a necessidade de uma sociedade constituir instrumentos de controle para sua proteção conduz a um “monopólio de força” centrado na figura o Estado, onde o indivíduo tem a conduta regulada de maneira uniforme e estável. Vejamos:

“Ao se criar monopólio de força, criam-se espaços pacificados, que normalmente estão livres de atos de violência... Nelas o indivíduo é protegido principalmente contra ataques súbitos, contra a violência física em sua vida. Mas, ao mesmo tempo, é forçado a reprimir em si mesmo qualquer impulso emocional para atacar fisicamente outra pessoa”.

As polícias, desde o formato inicial, tem como atributo comum à vigilância da conduta dos indivíduos e da massa, onde paradoxalmente, o medo assegura o comportamento socialmente correto, “a monopolização da força física reduz o medo e o pavor que um homem sente do outro, mas ao mesmo tempo, limita a possibilidade de causar terror, medo ou tormento em outros”.
Na perspectiva de Foucault, o poder da disciplina tem como objetivo adestrar os indivíduos e conseqüentemente retirar e se apropriar deles. O processo de construção da cultura aborda o poder da disciplina para fabricar corpos submissos e “dóceis” visando aumentar suas forças em termos econômicos de utilidade e reduzi-las em termos de obediência como instrumento de dominação. Em qualquer sociedade o corpo está preso ao interior de poderes que lhe impõem limitações, proibições e obrigações, exercidos através da coerção e controle pelo emprego da disciplina. O controle das atividades do indivíduo são realizadas através de horários, ritmo, programas, definição de atitudes e gestos para o bom emprego do corpo, articulação corpo-objeto, funcionando como uma única engrenagem: o soldado e sua arma, relações entre o corpo e o objeto. Foucault considera que:

“A minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçaste das inspeções, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo darão em breve, no quadro da escola, do quartel, do hospital ou da oficina...”

Portanto, nota-se então que o monopólio da Força descrito por Norbert Elias ou o poder de disciplinar apontado por Michel Foucault sustentam a sujeição a uma ideologia dominante. O sujeito é interpelado pelo AIE, assumindo uma posição de submissão, a partir daí ocorre um reconhecimento mútuo entre sujeitos, e ao final uma garantia absoluta que tudo “está bem assim como está”. Segundo Althusser, a ideologia é uma representação da relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência, “se ele crê na justiça, ele se submeterá sem discussão às regras do direito, e poderá mesmo protestar quando elas são violadas, assinar petições, tomar parte em uma manifestação, etc.” (p. 90), o sujeito é, portanto, o agente central decisivo para a prática da ideologia. Todo o processo formativo da ideologia perpassa por distintos grupos com ideologias sob medida, tais como:
“Cada grupo dispõe da ideologia que convém ao papel que ele deve preencher na sociedade de classe; papel de explorado (a consciência “profissional”, “moral”, “cívica”, “nacional” e apolítica altamente “desenvolvida”); papel de agente de exploração (saber comandar e dirigir-se aos operários: as “relações humanas”); de agentes de repressão (saber comandar, fazer-se obedecer “sem discussão” ou saber manipular a demagogia da retórica dos dirigentes políticos); ou de profissionais de ideologia (saber tratar as consciências com o respeito, ou seja, o desprezo, a chantagem, a demagogia que convém, com as ênfases na Moral, na Virtude, na “transcendência”, na nação...).” (p. 79/80)

A partir de 1984, com a advento da democracia brasileira e queda da ditadura militar, surge um novo esforço ideológico na construção do papel das polícias militares: de órgão de defesa do Estado para órgão de defesa do Cidadão.
Para Guimarães ocorre uma migração de uma polícia de Estado — antes voltada para proteção de um governo e determinados grupos ou classes — para a polícia de proteção a cidadania, esta, em tese, reconhece a diversidade social, o respeito ao indivíduo e a coletividade em todos os seus segmentos. Cidadania pressupõe o equilíbrio entre os interesses do indivíduo e da coletividade”.
“A polícia cidadã, deve ser imparcial, reconhecer os movimentos de garantia das diferenças e das divergências, respeitar todos os seguimentos e garantir os espaços legítimos de manifestação. A mediação, constitui-se sua primeira e principal metodologia de ação e a repressão policial, a excepcionalidade”.

A transformação da polícia de defesa do Estado para defesa da cidadania ganha maior materialidade a partir de 2001, após diversos episódios veiculados sobre o despreparo profissional e a violência policial. O Governo Federal, através do Ministério da Justiça passou a exigir dos estados brasileiros uma profunda reforma nas bases curriculares das escolas de formação de policiais. A reforma ocorreu através de um programa denominado “Bases Curriculares para Formação dos Profissionais de Segurança do Cidadão” , visando homogeneizar os cursos de formação, planejamento curricular, assegurar o princípio de equidade no processo de formação, unidade de pensamento e ações adequadas às necessidades sociais. Os currículos, amplamente debatidos, foram distribuídos em 06 áreas de estudo — missão, técnica, cultura jurídica, saúde, eficácia, linguagem e informação. As principais áreas temáticas englobaram cultura, sociedade, ética, cidadania, direitos humanos e controle de drogas.
Nota-se que o “Poder de Estado” — representado por um segmento politicamente institucionalizado a quem se delega a faculdade de instituir e executar o processo político-jurídico, bem como a coordenação da vontade coletiva — mesmo com o monopólio dos meios legítimos de coerção, resolve contribuir com as mudanças dos aparelhos de repressão estaduais, com um foco na cidadania e a partir disso impõe uma nova concepção ideológica denominada “polícia cidadã” e aos órgãos de formação policial lançam a tarefa de destruir uma ideologia repressiva e reconstruir uma ideologia cidadã. Na fundamentação teórica de Althusser a escola possui papel fundamental como mecanismo ideológico na formação das diversas classes para reprodução dos meios de produção. Sobre o referencial althusseriano, a escola é considerada:
“O aparelho ideológico escolar, como outros Aparelhos ideológicos do Estado, não se reduz à existência de idéias sem suporte material. No AIE escolar também é realizada a Ideologia de estado em sua totalidade, ou em parte, garantindo unidade de sistema “ancorada” em funções materiais, que lhe são próprias e não redutíveis à ideologia de Estado, mas que lhe servem de suporte”

Para BOURDIEU , no sistema de ensino os indivíduos são programados para um pensar e agir, e partilham de um certo “espírito”, moldados segundo o mesmo modelo. Surgem os códigos comuns que permitem a comunicação entre pessoas, como automatismos verbais e os hábitos de pensamento têm por função sustentar o pensamento.
Teoricamente a mudança ideológica deveria ocorrer na estrutura e funcionamento das instituições policiais militares, pois, pela análise de emprego dos AIE e ARE, para garantir a reprodução do modo de produção é necessário ter o poder de Estado, deter o aparelho de Estado e seus ARE e AIE. Assim sendo, o governo democrático brasileiro possui o poder legítimo, detém o controle das instituições policiais militares, estabelece um novo enfoque de funcionamento ideológico pautado na cidadania. Observo uma relação paradoxal e parcimoniosa do Poder de Estado representado politicamente por um governo e as suas imposições sobre os Aparelhos de Estado, representado pelas instituições. É possível perceber que o Poder de Estado, em questões mais profundas, mantém uma certa inércia em relação aos Aparelhos de Estado, estes aparentam possuir uma outra ideologia de resistência e com “blindagem” contra qualquer postura ideológica contrária aos interesses orgânicos institucionalizados.
A Escola Superior de Guerra em seus fundamentos doutrinários, a ideologia é descrita como imprescindível à compreensão de um cenário social, porém quando se tornam dogmáticas, passam a gerar uma ideologia dominante e outras concorrentes.
“[...] será possível distinguir-se, além da ideologia dominante, alguma doutrina de ideologia concorrente. Identificar a natureza das principais correntes ideológicas ou doutrinárias, e, entre elas, as dominantes e subdominantes, é imprescindível para a compreensão das atitudes dos atores políticos, em profundidade e alcance, e para a determinação dos cenários prospectivos possíveis na evolução de um Sistema Político, [...] O que empresta às ideologias sua conotação negativa é o seu sentido acrítico e dogmático, sua tendência a constituir-se como uma cosmovisão, tudo explicado, justificado ou rejeitado sob um único ponto de vista. [...] nem sempre o conseguem, pode-se mesmo dizer que geralmente não o conseguem, embora imponham muitos sacrifícios à sociedade na tentativa ”

Do exposto, em que nível o Poder de Estado interessa, de fato, as mudanças nos modelos existentes quanto ao seu funcionamento repressivo ou ideológico? Para Althusser os aparelhos ideológicos reproduzem as condições de conflito e não o resultado dele (grifei), ou seja: “a mudança de mãos do aparelho repressivo de Estado não muda em nada o seu caráter” (p. 16).
Combinando a minha vivência empírica de 12 anos como policial militar estadual e fundamentação teórica posta, entendo que uma via única com duplo sentido se estabelece quando é exigido do sujeito uma atitude policial (crítica e direcionada para a criação, mediação de conflitos comunitários), e ao mesmo tempo uma atitude militar com foco em regulamentos rígidos e atitudes uniformes. O paradoxo se estabelece, ora o sujeito caminha sobre os “trilhos”, ora identificando e percorrendo novas “trilhas”. O que de fato o poder de Estado deseja como uma polícia cidadã? Estar próxima da comunidade? Sabe-se que os membros da instituição policial militar se portam como ARE através de ações legitimadas pelo “poder de polícia” — mito ideológico do dever agir em nome da sociedade — efetuando prisões, reintegrações de posses, controles de manifestações, serviços de guarda de órgãos públicos, entre outros. Assim, “o ofício de polícia sempre foi considerado um mecanismo meramente de contenção dos maus cidadãos (numerosas classes dominadas) na proteção dos bons cidadãos (classes dominantes). ”.
Todavia, as mudanças nas bases curriculares, até onde é possível observar, tem mais foco na melhoria da capacitação dos policiais, no esforço de torná-los melhores cidadãos, do que expressamente na mudança do funcionamento das instituições. O incremento de disciplinas e temas globais, indicam melhorias na qualificação ideológica dos sujeitos, o que torna mais eficiente o uso do aparelho policial pelo Poder de Estado através da sua reprodução.
Pela doutrina nacional vigente, em suas normas e princípios legais, “o Bem Comum” continua sendo o alvo do Poder do Estado, o que legitima o agir dos aparelhos em nome da coletividade e conseqüente manutenção do monopólio da força. Assim me parece que a polícia com enfoque no cidadão(ã), a denominada “polícia cidadã”, atua em um segundo nível de prioridade, e no conflito de interesses entre Estado e Cidadão, as instituições do ARE tendem a sua posição ideologicamente definida, ou seja, a defesa do Poder de Estado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário