domingo, 6 de junho de 2010

A HISTÓRIA DE LIGATCHOV: UM CONTO PARA O NOSSO TEMPO

por Roger Keeran [*]

Um mistério central do colapso da União Soviética foi a razão porque o Comité Central do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) permitiu mais ou menos passivamente que Mikhail Gorbachev e aqueles que o rodeavam diluísse a ideologia marxista-leninista, enfraquecesse o Partido Comunista e finalmente desmantelasse o próprio socialismo.

Este mistério foi perfeitamente simbolizado na vida de Iegor Ligatchov, o vice-líder do PCUS nos primeiros tempos de Gorbachev e um marxista-leninista cabal que apoiou as suas primeiras reformas, particularmente aquelas destinadas a promover abertura, livre discussão e tecnologia moderna, mas que se opôs totalmente à direcção final da perestroika — a marginalização do PCUS, o estilhaçamento da União Soviética e a viragem rumo ao capitalismo.

As memória de Ligatchov. Escritas no princípio da década de 1990, as memórias de Ligatchov constituem uma leitura penosa. Elas estão cheias de tristeza e de lamentos quanto ao que aconteceu ao partido e ao socialismo e, com o "coração pesado", de "quão infelizmente profético" ele foi.

Contudo, estas recordações são destituídas de qualquer percepção de porque se verificou o colapso do socialismo ou do que ele e outros comunistas com ideias afins poderiam ter feito a fim de mudar o rumo das coisas, de como poderiam ter actuado de forma diferente.

A obtusidade de Ligatchov lança uma luz considerável sobre o mistério da apatia do Comité Central. No próprio momento em que Gorbachev estava a minar o Partido Comunista, inclusive o seu papel de liderança e o seu centralismo democrático, Ligatchov estava cegado pela sua própria deferência para com o líder do Partido e neutralizado pelo seu compromisso para com o centralismo democrático.

Uma anedota ligeiramente patética foi relatada pelo próprio Ligatchov. Enquanto ainda membro do Politburo, Ligatchov disse que "previa o curso trágico dos acontecimentos e não podia permanecer silencioso". Então, o que fez ele? Escreveu uma carta a Gorbachev pormenorizando as suas críticas e preocupações. Gorbachev "arquivou" a sua carta e recusou-se a enviá-la ao Comité Central. Ligatchov disse que a recusa de Gorbachev a circular a carta era "algo tão inacreditável e espantoso... que ainda não posso entender". A parte realmente inacreditável e espantosa desta história é que Ligatchov pensasse que o único meio de se opor a políticas que estavam a conduzir o partido e o país ao desastre era apelar ao autor daquelas políticas.

A coisa patética nesta história é que o respeito de Ligatchov pelo líder do Partido Comunista e pelo centralismo democrático do partido era tão forte que realmente facilitou a destruição do PCUS por Gorbachev. Além disso, a sua deferência era tão forte que anos depois acreditava que ao escrever a Gorbachev "fiz tudo o que podia para impedir a desgraça". O PCEUA

Hoje, o PCEUA atravessa uma transformação de muitos modos paralela ao que aconteceu na União Soviética vinte anos atrás. "Novo pensamento", nova tecnologia e "reestruturação" são a última moda. A liderança do Partido está rapidamente a desembaraçar-se de "ideias velhas" e do vocabulário respectivo – marxismo-leninismo, ditadura do proletariado, papel da vanguarda, acção política independente, luta de classe, racismo, imperialismo, internacionalismo.

Segundo os nossos dirigentes, luta de classe não é uma ideia "utilizável" e "ao plus comunista" deveria ser "dado um enterro decente". No mês passado, os dirigentes do Partido não apoiaram a manifestação anti-guerra em Washington, D.C. Na semana passada, não apoiaram o comício do Primeiro de Maio pelos direitos dos trabalhadores/imigrantes em Foley Square, em Manhattan. Ontem, não apoiaram a marcha pelo desarmamento e a manifestação junto à ONU.

Entretanto, os líderes do Partido abandonaram o trabalho de massa independente quanto às mulheres, ao racismo e à paz e ao invés disso passeiam em fileira cerrada atrás do Partido Democrata e da AFL-CIO. A liderança cessou de imprimir edições do jornal e da revista teórica, encerrou a livraria, fechou o Reference Center for Marxist Studies, abandonou os arquivos e a biblioteca e aluga cada vez mais espaço na sede do partido a empresas comerciais.

A julgar pela dimensão da última convenção cinco anos atrás em Chicago (cerca de 500 delegados e convidados) e a próxima convenção em Nova York (cerca de 200 delegados e convidados), estas novas ideias e políticas resultaram em pessoas a votarem com os seus pés e estes pés não estão a pisar um caminho rumo à nossa porta. A militância está a cair e os membros estão a enfraquecer-se. Para aqueles de nós que nos orgulhamos de entender algo acerca do movimento da história, o resultado final destes desenvolvimentos deveria ser claro.

A menos que a passividade de camaradas dirigentes mude nas próximas semanas, é provável que nos próximos anos alguns acabem a resmungar as palavras de Ligatchov, "inacreditável", "espantoso", "ainda não posso entender". Se eles disserem, também, "fiz tudo o que podia para impedir a desgraça", serão simplesmente tão patéticos e errados como ele foi.

03/Maio/2010

[*] Autor, com Thomas Kenny, de O Socialismo Traído. Por trás do colapso da União Soviética , Editorial Avante, Lisboa, 2008, 283 pgs. ISBN 978-972-550-336-2

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