quinta-feira, 24 de junho de 2010

SARAMAGO, O ÚLTIMO GRANDE NARRADOR

Roberto Numeriano
Numa cultura dominante em que a pulsão da morte constitui a sua
essência, o escritor José Saramago, falecido aos 87 anos no dia 18
de junho, foi uma brilhante e genial exceção. Português da aldeia
de Azinhaga, filho de pais pobres da região do Ribatejo, Saramago
não era homem de concessões hipócritas quanto a princípios morais
e políticos nos quais acreditava, e, por isso mesmo, numa época em
que tudo está à venda ou pode ser relativizado em nome de projetos
pessoais e / ou de grupos, ele se manteve coerente até o fim da
vida. Para o bem da alta literatura, dos ideais socialistas e da
própria humanidade.
Antigo militante do Partido Comunista Português, Saramago não era
“comunista de carteirinha” por acaso. Filiou-se ao PCP em 1969,
quando Portugal ainda vivia a ditadura salazarista. O ato foi apenas
a formalização de uma militância socialista que vinha de longa
data, efeito da sensibilidade moral de um jovem que, tendo nascido no
meio de pobres e miseráveis, cedo discerniu as causas da desigualdade
social e econômica dos portugueses. Aluno brilhante, teve de
abandonar o colégio porque seus pais não podiam pagar seus estudos.
Podia, pela revolta, renegar e esconder sua origem pobre. Podia, como
fazem muitos na ascensão social, defender idéias da classe que
espoliava os lavradores e proletários do Ribatejo. Podia, por
vergonha, fingir que nunca foi pobre. Podia, simplesmente, esquecer.
Mas há gente que nasce para lembrar, porque nunca esquece de si
mesmo em suas origens. E lembrar por si e pelos outros, pelos que
têm boca e língua, mas nunca são escutados; têm olhos e visão,
mas são invisíveis
em um mundo onde a luz parece se projetar apenas sobre os bens, a
riqueza, o luxo, o poder e a ostentação.

Em Saramago, essas dimensões de mestre do romance e de ativista
político e social se imbricavam sem que uma tolhesse ou recalcasse a
outra. Foram sempre a expressão de uma persona criativa e combativa,
rica de uma humanidade onde percebemos a sabedoria dos simples de
coração, o humor, a luta dos deserdados, a crítica social e dos
(hipócritas) costumes, a denúncia da cegueira de um mundo onde a
morte inspira a política do capital, o alerta a respeito da
alienação
coletiva dos seres humanos, embrutecidos na malha da indústria
cultural da incultura.

O poder de sua fábula traduzia justamente este universo, e não por
acaso pode explicar o fato de alguns o considerarem “difícil” e
ao mesmo tempo ele ser tão lido e admirado por milhões de pessoas,
em várias línguas. Em um dos seus raros acertos, o comitê de
literatura lhe concedeu o Prêmio Nobel em 1998.
Saramago é, possivelmente, o último grande narrador da humanidade,
considerada esta em sua dimensão de um espírito ou idéia
universal. Em suas obras, não há como não nos reconhecermos como
seres humanos completos, na dor ou na alegria, vivos ou mortos,
duvidando dos deuses e das crenças, amando e buscando. Sua morte
marca (e aqui a frase
feita cabe) o fim de uma época em que a literatura está moribunda
e submetida aos escapismos de estilos que apenas revelam sua pobreza.
Também simbolicamente, sua morte ocorre em um momento no qual há
uma pulsão de morte no movimento de forças econômicas e políticas
erguendo-se do espólio neoliberal em vários países europeus, numa
onda
neofascista que criminaliza migrantes, trabalhadores, etnias não
brancas, ativistas políticos e sociais de esquerda, além de
estudantes e desempregados.

Contra tudo isso, o grande narrador português nos deixou uma obra
para travar um combate que significa a permanência de uma luz que
ele fez brilhar nos seus personagens. Em Memorial do Convento, um dos
seus grandes romances, os protagonistas Baltasar Sete-Sóis e Blimunda
Sete-Luas são a quintessência do amor perene entre um homem e uma
mulher, para além do tempo, das fogueiras da Inquisição, da
velhice. Quem vê a vida de Saramago, sente que ele tinha o mesmo
amor pela humanidade.
Roberto Numeriano é cientista político (UFPE), professor,
jornalista e
candidato do PCB ao Governo do Estado de Pernambuco.

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