Em Campos, audiência pública sobre trabalho escravo revela inaptidão e omissão de autoridades. Presentes em massa, trabalhadores se entusiasmam com resultado.
Leandro Uchoas
Elas bem que tentaram. As usinas sucroalcooleiras de Campos dos Goytacazes coagiram os trabalhadores a não comparecer à audiência pública da última sexta-feira (16), sobre trabalho escravo, convocada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa (Alerj). A cortadores de cana acostumados a trabalhar na clandestinidade, prometeram atender a seu sonho maior: carteira assinada. Não adiantou. Embora tenham desmobilizado boa parte do contingente inicial, mais de 300 trabalhadores lotaram a Câmara de Vereadores, onde se deu a audiência, presidida pelo deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) – fato raro na cidade, recordista brasileira em casos de escravidão no campo. Com as cadeiras completamente tomadas de gente simples, em busca de direitos básicos garantidos por lei há mais de cem anos, as intervenções foram marcadas pelas denúncias veementes dos ativistas locais, e pelo notório despreparo das autoridades .
“Nós estamos aqui para afirmar, quantas vezes for necessário: nós não aceitamos a prática do trabalho escravo no Brasil”, disse o padre Geraldo Lima, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Em 2009, pela primeira vez o Sudeste foi recordista em incidências de trabalho escravo. Dos 4.234 trabalhadores libertados após auditorias do poder público, 1.524 o foram na região – 36% do total, contra 10% em 2008. Todos os casos do Estado do Rio de Janeiro ocorreram na cidade de Campos. A participação do setor sucroalcooleiro nos casos de trabalho escravo no país passou de 11%, em 2003, para 50%, em 2009. Campos chegou, assim, ao primeiro lugar no tenebroso ranking do trabalho escravo no Brasil.
“Nessa audiência, vamos falar o que está engasgado há sete anos”, disse Carolina Abreu, a “Carol”, principal liderança do Comitê de Erradicação do Trabalho Escravo, existente desde 2003. “O trabalhador corta cana sem saber quanto vai ganhar. Nenhum intelectual jamais imaginou esse nível de expropriação. O J. Pessoa (dono de uma rede de usinas) traz gente do Nordeste, prometendo salários que chegam a R$ 1.200,00. Chegando aqui, o trabalhador não completa nem um salário, come comida estragada, fica em alojamentos precários”, acusou. Carol também denunciou o fechamento de doze escolas públicas no meio rural da cidade.
Duas intervenções de trabalhadores desempregados emocionaram a plateia. P.C. trabalhou no corte de cana por 32 anos, até 2007. Com a falência da Usina Santa Cruz, onde trabalhava, perdeu o emprego e até hoje não recebeu o dinheiro da rescisão e de boa parte dos salários. Quando P.C. chorou, um silêncio tomou conta da plateia, emocionada. Como ele, outros três mil trabalhadores estão desempregados na região, quase 30% do total de cortadores. A intervenção seguinte repetiu a história, o drama e o choro. Na região, não é comum os trabalhadores se apresentarem para falar, temerosos de não conseguir emprego, ou de ser assassinados.
Muitas autoridades não estiveram presentes. Algumas alegaram não poder comparecer por conta do adiamento da audiência pública – marcada inicialmente para acontecer uma semana antes, foi cancelada por conta das fortes chuvas no Rio de Janeiro, que comprometeram as agendas dos organizadores. Entretanto, houve autoridades que sequer justificaram. Outras enviaram integrantes de menor expressão na hierarquia dos órgãos, como o representante do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), Ronaldo Cole, que chegou a admitir não saber o que estava fazendo ali. “Queria lamentar a ausência das autoridades do Executivo e do Legislativo locais. Esta não é a casa do povo? No dia em que o povo ganha voz, eles não vêm”, protestou o professor Marcos Pedlowski, da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF).
Entre as autoridades presentes, as intervenções revelavam desconhecimento do funcionamento do Estado. O auditor fiscal José Antônio confundiu Grupo Móvel com Conatrae (Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo). Em geral, alegaram dificuldade de cumprir sua função no combate ao problema devido à falta de estrutura dos órgãos onde trabalham. “Desculpem, mas isso é inaceitável. Temos que dialogar com o Ministério do Trabalho, em Brasília, sobre essa estrutura. Isso não pode continuar assim. Dessa forma os fazendeiros e usineiros agradecem a tamanha desestrutura” disse Marcelo Freixo. Os integrantes do Comitê confirmaram a falta de estrutura dos órgãos, mas denunciaram a falta de vontade política dos administradores.
Os participantes decidiram formar um Grupo de Trabalho (GT) para acompanhar as decisões e os próximos passos. O GT será formado pelas entidades: Comitê, Inea, delegacias, Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da ALERJ, e pelos Ministérios Públicos do Trabalho (MPT), Federal (MPF) e Estadual (MPE), entre outros. Também se decidiu fazer um dos seminários regionais de revisão do Plano de Direitos Humanos em Campos, para priorizar a reflexão sobre o trabalho escravo. Será marcada uma audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília. Um ofício será enviado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário exigindo que as terras onde ocorrem crime trabalhista ou ambiental sejam desapropriadas e destinadas para Reforma Agrária, como consta na Constituição Federal.
Também se reivindica que as terras das Usinas com divídas trabalhistas sejam confiscadas para o pagamento dos direitos trabalhistas. As entidades presentes também aprovaram a participação na Campanha pela aprovação da PEC 438, projeto de emenda constitucional que define a expropriação das terras onde ocorrer trabalho escravo. A Campanha esta recolhendo um abaixo-assinado para ser entregue na Câmara dos Deputados Federais no dia 13 de maio. Os trabalhadores se entusiasmaram com as ações planejadas.
A imprensa local não estava presente, bem como a mídia comercial – com exceção da Rede Globo. A emissora entrevistou ao vivo Marcelo Freixo. “Quem tem trabalho escravo comete crime. Eu não tenho que negociar com criminoso. Lugar de escravocrata não é na fazenda, é na cadeia”, disse Freixo, ao ser questionado pela repórter se havia dialogado com os donos das usinas. O SBT e o jornal local Folha da Manhã chegaram a contatar a assessoria de imprensa, mas não compareceram. Os organizadores desconfiam de eventual pressão das usinas sobre a imprensa. Houve boatos de que telefonemas foram feitos para o Ministério Público tentando, sem sucesso, demovê-lo da intenção de participar.
Com 432 mil habitantes, Campos é a cidade mais populosa do interior do Estado, e a de maior extensão territorial. É também a sexta cidade mais rica do país, o que impressiona qualquer novo visitante. Na entrada da cidade há uma sequência de barracos paupérrimos enfileirados. A maioria dos bairros é suja, feia e pobre. O orçamento do município, de R$ 1,4 bilhão (mais de 70% oriundos de royalties de petróleo), daria R$ 3,2 mil a cada habitante se fosse dividido de forma equânime. É o berço da organização de extrema-direita católica Tradição Família e Propriedade (TFP), e última cidade do país a acatar a Lei Áurea.
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