quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

UMA HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA CAMPONESA


Este relato pretende expressar o diário de uma experiência vivida junto às trabalhadoras e trabalhadores camponeses de várias comunidades pertencentes ao 5o Distrito de São João da Barra/RJ, objetivando sensibilizar e mobilizar toda a sociedade para combater as atrocidades que estão ocorrendo naquela região por parte da empresa LLX e CODIN, legitimadas pelo governo estadual e municipal.
Em 06/12/2011 conhecemos o Sr. João[1] e seu filho José. Estávamos presentes, eu representando a Pastoral da Terra, duas estudantes universitárias da UFF (Serviço social e Geografia), dois representantes do MST e o carro/motorista da UFF, simbolizando o apoio logístico-político à situação.
Quando chegamos em Água Preta, Sr. João e José plantavam milho. Desconfiados com tanta enganação, só foram receptivos quando identificaram o motorista da UFF que conheceram, dias antes, no trabalho de campo, coordenado pela Professora Ana.
Seria muito difícil descrever a diversidade do que presenciamos. Tentarei aproximar da realidade, ainda emocionada por conhecer tanta Gente corajosa e honesta.
Encontramos um território (roça) rico de alimentos: frutas e verduras fartas, variadas e saudáveis. Uma terra fértil, tratada com respeito e sabedoria. Uma comunidade com valores e organização camponesa. Como descrever Seu João: um profeta? Um mestre? Um educador? Sua fala é carregada de uma estrutura ético-política e crítica, expressando valores democráticos e humanos. Sua postura e visão de mundo revelam dignidade, coragem e resistência diante das adversidades da vida de trabalho camponesa, que contagia quem quiser lhe ouvir.
Emocionados com a expressão de uma vida, de quase 60 anos, de amor a uma terra que foi fertilizada e mãe de frutos, fomos convidados a conhecer outras terras. A caminhada na estrada, perfumada ainda pelo cheiro da restinga sobrevivente, era sinalizada por placas dentro de outros sítios: “futuras instalações de uma siderúrgica/CODIN/Governo do estado do Rio de Janeiro”. Ficamos ali nos perguntado: como é possível uma indústria dessa natureza ser instalada dentro de um território camponês, fértil, produtor de frutas e verduras, de alimento saudável, de famílias enraizadas, cultural- social e economicamente, naquela terra??? As perguntas que o Seu João nos fez ressoava: “Que democracia é essa que eu sou obrigado a sair da minha casa, ter que permitir que a minha terra, onde eu tiro o sustento de minha família e não dependo de ninguém pra sobreviver com dignidade, vire uma areia branca, onde não vai nascer mais nada??? Como vamos viver? Como vocês pensam que vão continuar comendo se o agricultor é impedido de plantar? Vão comer ferro?”
Quem pode e quer responder essas perguntas? Quem tem coragem de enfrentar o poder econômico e político dos mega empreendimentos em nome de um “desenvolvimento” evidentemente destrutivo, de preciosos ambientes e comunidades??? Vamos assistir à destruição de Restingas, lagoas, lagunas e rios sendo contaminados por metais e; famílias camponesas com suas raízes fincadas na terra, resistentes às adversidades do campo brasileiro e, protagonistas de uma história de vida nas areias fertilizadas pelo trabalho, sendo mortas e expulsas para uma condição incerta e desumana???
A visita à família do Sr. Manoel foi de uma receptividade daquelas à moda antiga. Pai de 08 filhos, 06 deles sobrevivendo da mesma terra, 08 noras e 13 netos. Três gerações de camponeses morando próximos, um ao lado do outro, com plantação e criação diversificadas, não podia ser diferente: uma mesa farta: carne, verduras e frutas orgânicas de sobremesa. Dona Maria, esposa e companheira, se posicionou firme e mística: “aqui é nosso lugar, somos daqui, aqui casamos e nasceram nossos filhos, aqui vamos ficar. Glória a Deus!”Apavorados com a agressividade do que está acontecendo diante de seus olhos, carros da “firma” (LLX) passando em grande velocidade, placas sendo fincadas nos sítios de seus vizinhos, cercas modificando os rumos dos sítios, restingas sendo derrubadas e a ameaça de um despejo (desapropriação) a qualquer momento, legitimado pelo Estado e garantido por força policial, os camponeses, especialmente os mais velhos, estão adoecendo e perdendo noites de sono. Trazem vozes embargadas, os olhos marejados, mãos calejadas e um sentimento de humilhação diante do “fato consumado (?)”: “O sertão vai virar deserto. Seremos expulsos de nossa terra, querem arrancar nossa história de dentro da gente. Na mesma hora que entram derrubam tudo, cercam, não deixam vida ali, querem que esqueçamos tudo que vivemos aqui.”
Energizados com as palavras e exemplo daquelas famílias, materializados na ação que têm, desde o cuidado com os animais (boi e porcos nominados) até o zelo que demonstram com a neta de três anos e na preparação dos alimentos, retornamos à terra do Seu João.
A surpresa de encontrarmos junto dele, mais 50 famílias camponesas, confirmou a profecia: “Essa terra corre leite e mel”. Mulheres, crianças e homens demonstravam sua indignação diante do abuso e da injustiça que está acontecendo na região. Indignados, expressaram sua resistência, impedindo que os carros da “firma” passassem e declarando em seu Ato: “Nem todos aqui têm preço, a nossa história não pode ser apagada e nem comprada. Não tem dinheiro que pague nossa terra e nossa dignidade. Sair daqui é perder a identidade. Como é possível alguém viver sem identidade?”
Diante da manifestação dos camponeses, a polícia militar compareceu em quatro carros e tentou desmobilizá-los. Quando um carro da firma veio e foi orientado a dar meia volta, um policial fez a ameaça pública, diante de todos e da TV Record: “ele (carro) voltou porque quis, se ele quisesse passar ia passar. Por mim, eu passava com uma caminhonete em cima de todos vocês.” Sua ira contra os pequenos demonstra despreparo, descontrole e uma ameaça para a sociedade, para a corporação e reforça o que a comunidade denuncia. “Esse policial é aquele que entra nos sítios quando a firma vai colocar as placas”.
Um dia de resistência nas terras de Água Preta trouxe significativo ensinamento: ali aprendemos sobre luta de classes, democracia, autocracia, Estado, educação do campo, ética e cultura. Nesse Campo fértil de conhecimentos e história está se materializando uma das maiores injustiças já vistas em nosso estado, quiçá em nosso país - guardadas as devidas proporções - pois agora estamos em pleno século XXI, em um Estado Democrático de Direito. Já vimos esse filme em vários momentos da história brasileira. Quem não se lembra do que os americanos, legitimados pelo Estado brasileiro, fizeram no sul do país contra os camponeses, expulsando-os de suas terras para o Contestado? Na verdade, se rememorarmos a invasão portuguesa nessas terras indígenas teremos, no mínimo, “um grande evento” em cada década, maquiado de modernidade e desenvolvimento, para ilustrar a expulsão e genocídio, nos quais o povo camponês foi submetido historicamente.
Muitos dizem que não há mais solução, que o fato está consumado. O Estado mais uma vez deixou que os interesses econômicos de poucos anulassem os direitos e desejos de muitos cidadãos, e logo quem?! “Esses camponeses atrasados, que já eram pra estar extintos?”
Precisamos acreditar que é possível alterar esse fato. O campo é para ser valorizado e fortalecido dentro de um projeto de justiça social, portanto, a sociedade, através das igrejas, universidades, sindicatos, movimentos sociais urbanos e do campo, organizações nacionais e internacionais precisam exigir a suspensão desse projeto. Denunciar que ele se sustenta na destruição de um Campo fértil de vida humana, animal e vegetal, que não pode ser destruído em nome de um pseudo-desenvolvimento industrial e urbanocêntrico. Vamos unir forças, fazer um mutirão de apoio aos camponeses que desejam permanecer na terra, vigílias, participar de atos e construir estratégias de superação.
Tivemos a felicidade de conhecer camponeses que não vão sucumbir às especulações imobiliárias/fundiárias, não são mercadores, não acreditam nesse modelo de desenvolvimento, não querem negociar sua identidade camponesa. Eles representam um Campo pleno de possibilidades de vida e resistência. Estaremos juntos nessa luta, para que nas terras férteis de Água Preta, Barra do Jacaré, Sabonete, Cazumbá, Campo da Praia, Bajuru, Quixaba, Azeitona, Capela São Pedro e Açu, o milho continue germinando e o mar tenha peixe em abundância...
A metáfora do Sr. João fica pra reflexão-ação:
“você sabe o que acontece se eu tirar aquela mangueira dali para plantar em outro lugar? Ela vai morrer porque tem suas raízes fincadas nessa terra. É isso que eles querem fazer com a gente. Se tirar a gente daqui, morremos!”
Carolina 07/12/2011


[1] O nome é fictício, como forma de não expor os camponeses a mais riscos.

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