Alfredo Veiga-Neto estudou biologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), graduou-se em Música e dedicou-se à execução de piano, mas como um passatempo, diz com uma mistura de respeito e saudade.
Dedicou-se plenamente à publicação de livros e orientações de teses. Pensou a obra de Foucault aplicada ao campo da educação com a complexidade e variáveis que oferece uma dedicação ao estudo tão ampla quanto misteriosa.
Convidado, no começo de setembro, pela Universidade Pedagógica de Buenos Aires (Unipe) para o 1º Colóquio de Biopolítica, Veiga Neto é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Veiga-Neto conversou com Página/12 sem deixar de lado sua admiração pelos grandes poetas brasileiros como Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira e Mário Quintana. Em uma hora de conversa se estendeu sobre os temas que sempre o obcecaram, a escola no marco de uma sociedade que cada dia oferece mais possibilidades de reflexão, mas também sérios riscos de estratificação social.
Eis a entrevista.
Como vê a reivindicação da comunidade educativa chilena diante do governo de Sebastián Piñera?
Isto diz respeito às relações entre o mundo educativo, o mundo da escola, e quando falo da escola de crianças, jovens e adultos, o mundo do professorado, dos mestres, o mundo social, nesse mundo. Nessas relações que são muito mais que relações mecânicas, para usar uma palavra de Deleuze, são relações imanentes, são relações necessárias, inseparáveis, questões que se articulam de uma maneira muito íntima. O problema do Chile não é um problema educacional, mas o problema de uma concepção.
A que corresponderia essa concepção?
Corresponderia a uma situação de competição permanente, uma racionalidade que se mostra liberal, mas é neoliberal. A característica das sociedades neoliberais de comprar em demasia, uma espécie de comprismo, é mais que consumismo, porque quando se fala de consumo fala-se de coisas que se compram e que se usam; o comprismo é algo meio irracional, razão pela qual se compra mais do que se necessita usar.
É como o excedente.
Uma coisa inútil, uma imoralidade de compra. Isso é muito típico das sociedades neoliberais. Há uma superposição de lógicas, de racionalidades, a racionalidade neoliberal se concentra muito mais na competição exagerada entre as pessoas e consigo mesmo. Tenho que comprar e adquirir e ser melhor.
A educação, no caso do Chile, está sob a tutela do mercado e não do Estado?
Na lógica neoliberal é necessário colocar a educação não como um bem social com a tutela da sociedade e do Estado, mas sob a tutela do mercado de competição, de produção exacerbada, de consumo, de compra e de competição exacerbada. Insisto nisto porque devemos aprender a competir com os outros.
A competição é eliminar o outro, o diferente?
Eliminar aqueles que não podem consumir, aqueles que não podem comprar, é uma lógica que leva o capitalismo a avançar. Nesse marco, e não sou original ao dizer isso, é uma ideologia, uma forma de vida, uma forma de estar no mundo, de silenciamento.
Então, a escola deixou de ser um lugar seguro?
O ensino não é para ter uma situação de segurança, mas que devo me preparar para competições futuras segundo a racionalidade neoliberal. Há tentativas de fazer isso no Brasil, em especial dos grupos privados na educação superior, universitária, isso não é hegemônico como no caso do Chile. Ali não é uma questão educacional, manifesta-se na educação, nos direitos que não há, que não existem, que são cortados. É uma questão mais radical.
Ao modelo neoliberal não interessa a educação?
Interessa-lhe para reproduzir mais fortemente o modelo. Para a população, para os direitos humanos, mas a equidade não interessa. A educação é importante para o capitalismo avançado, não apenas porque produz mão de obra mais capacitada, produz uma sociedade que responde bem, mas para uma reprodução do estatus quo, da lógica neoliberal.
É para eliminar o pensamento crítico?
Evidentemente que sim, caso contrário, para que a crítica se estamos no melhor dos mundos?
Você assinalou que as escolas não são visíveis. A que se refere essa não visibilidade?
A racionalidade neoliberal pensa que a escola é necessária, mas que não deve fazer barulho, problematizar, não deve ser questionadora. Então as escolas devem ser invisíveis, silenciosas, que façam sua tarefa que é reproduzir, ampliar o neoliberalismo.
Você escreveu que "no coração do neoliberalismo não está a liberdade, mas a segurança".
Em nome da segurança eu entrego a minha liberdade, pago para não ser livre. Para que na minha casa haja mecanismos, aparelhos de controle e também haja um hipercontrole, significa que tudo é rastreável, tudo é registrad;, é um monitoramento permanente. Tudo é visto, conhece-se se o perfil do consumidor, e isso é uma perda da liberdade em nome da segurança.
Como se medem os "resultados" em matéria educativa?
Com o mínimo de investimentos de insumos se obtém um máximo rendimento da máquina escolar, pouco importando as coisas não mensuráveis da educação, que são muitas: a formação do caráter, da consciência política, a consciência do estar no mundo. Isso não interessa, interessa o que as pessoas podem produzir, as pessoas se transformam também em mercadorias. Insumo mínimo para o máximo de rendimento. A eficácia é a máquina em funcionamento. Creio na eficiência, mas não no sentido economicista.
Você falava dos sujeitos sujeitados nessa maquinaria.
Os alemães falavam, no século XVIII, de uma formação integral e isso não significa ineficiência. O acento não está na eficiência, mas no sujeito, sua posição no mundo e consigo mesmo.
Ao contrário do Chile, como avalia o acesso à educação no Brasil e na Argentina?
Entende-se a educação como um direito social, como um direito humano. Pagar a educação é o que interessa ao Estado, com um sentido solidário. Há movimentos no Brasil que dizem que as pessoas que podem pagar pagam e isso não prosperou nos últimos oito anos. Foi uma tentativa também do governo social-democrata de Fernando Henrique Cardoso. Apesar das críticas que tenho ao governo Lula, reconheço seu apego à educação pública, à educação de qualidade, gratuita e de uma ampliação da base social no ensino técnico e universitário.
Qual é a diferença entre disciplina e disciplinamento?
A diferença está no acento, na ênfase. Atualmente, não é possível a vida social sem normas disciplinares, mas isso não significa um disciplinamento da população. Foucault tem uma frase muito famosa: "O iluminismo inventou as liberdades e também a disciplina". Há um equilíbrio. A questão é uma educação centrada na disciplina que é uma coisa terrível, uma coisa fascista. Outra coisa é uma educação onde a disciplina ocupa um lugar para uma vida civilizada.
Como se medem os resultados a partir do currículo escolar na educação?
É uma pressão para os professores, para o funcionamento das escolas. Na formação dos alunos tudo é mensurável, mas nem tudo é mensurável, isso é algo que não podemos esquecer. No Brasil, fazemos todo o possível para que a educação tenda à igualdade, seja gratuita.
Inclui os sem terra?
A minha universidade, em Porto Alegre, tem um programa de aulas para os sem terra. Há centros educativos que têm programas de inclusão social muito fortes. De indígenas, de sem terra, negros.
Há muitos jovens e adolescentes fora da escola?
Poucos. Há diferenças no nordeste, no norte e no sul. É muito pequena a porção que está fora da escola, são questões às vezes geográficas com baixíssima densidade demográfica. A evasão escolar é cada vez menor. Lula e seu governo deram continuidade a esta política. É um governo de ações, em alguns casos de corte neoliberal, em relação aos bancos, aos investimentos, ao sistema financeiro, mas em questões de saúde e educação não seguem esse rumo.
Como conseguir que os excluídos vão se integrando à rede escolar?
É diferente de acordo com o tipo de exclusão. Para os surdos, por exemplo, que é uma grande parcela da população que até há poucos anos era invisível, há programas muito fortes de inclusão. O Brasil, hoje, tem duas línguas oficiais que são o português e a linguagem dos sinais. No caso de autistas ou síndrome de Down, alguns programas estão equivocados, porque em uma mesma sala de aula estão todos juntos e o professor fica com todos e isso é complicado. É um pouco forçado, exagerado.
Não chama a atenção o fato de que se exige muito do professor em especial com a irrupção das novas tecnologias?
Muito. O estresse pega forte, há estudos muito interessantes sobre a neurose. Há uma obsessão pela produtividade docente. Há uma combinação entre uma sociedade televisiva e um sentido mercantil da profissão intelectual, de aparências. A própria comunidade docente tomou para si o hipercontrole de seus colegas. Há organismos de controle, formados por professores acadêmicos burocratas.
Rompem-se os laços de solidariedade.
Em uma sociedade de consumo é necessário descartar; se posso consumir coisas novas jogo as velhas fora. Uma sociedade de competição é uma sociedade do descarte. Também se descartam os afetos, uma sociedade sem passado nem futuro, presentificada, importa apenas o aqui e agora, sociedades muito rápidas, comidas rápidas, amores rápidos, porque tudo é presente.
Como educar nessa sociedade com esses valores? O que se deve fazer?
A escola foi pensada para não ser assim. Foi pensada como um lugar de encontro e estabilidade, há uma defasagem entre a escola e a sociedade. É um momento de crise, vivemos mais, mas não se sabe o que vivemos.
Houve um conjunto de lutas das entidades de professores que tentaram recompor o nível de importância da educação na sociedade.
Mas os novos professores nestes 10, 15 anos, não sabem nada disso. Sem memória nem tradição, estão como que anestesiados em matéria política. O último movimento de jovens no Brasil foi em 1992, com a saída de Collor de Mello.
Por que você, a partir do marco educacional abraçou as teorias de Foucault?
Tenho um mestrado em Genética. Comecei em Biologia e passei para a Educação em Biologia e depois para a Sociologia da Educação. Passei pelo marxismo e no final dos anos 80 comecei a ler Foucault. Ele problematizava assuntos e respondia e perguntava sobre coisas muito próximas da minha experiência com a docência. Me chamou a atenção a microfísica nas salas de aula, as coisas pequenas que acontecem no cotidiano, as relações de poder, as relações de dominação e de violência escolar. Pensei que esse homem tem muito para dizer. Ele me permitiu ver coisas que com outros óculos não enxergava. Newton, no século XVII, construiu uma teoria do movimento que foi o fundamento da física moderna, viu coisas como a relatividade, a teoria quântica, os raios X, coisas que não eram conhecidas na época de Newton. Outros vieram depois e fizeram outras teorias e isso não invalida Newton. Quanto mistério vale calcular as órbitas dos satélites, mas a teoria da luz de Newton está superada. Foucault vê outras coisas que Marx, e isso não invalida Marx, que as escreveu no século XIX: Marx não podia falar de um trabalho imaterial, trabalho intelectual, dos sábios, dos filósofos. Hoje há os movimentos feministas, as minorias, os direitos humanos.
Qual a contribuição de Foucault para a problemática educativa?
Para Marx, a escola era um lugar de liberdade, para Foucault é uma instituição de sequestros. Os hospitais, as prisões, são coisas naturalizadas. E a escola funciona assim desde o século XIX. É um sequestro voluntário, mas tens que ir, não podes deixar teu filho fora da escola. Não está contra a escola, mas tem um olhar crítico.
Queria lhe perguntar sobre o que você escreveu sobre o tecido urbano, nas grandes cidades onde nas escolas há multidões de alunos, salas de professores repletas. Como incide na qualidade educativa?
As instituições escolares são feitas para ensinar. E para ensinar têm que fechar, porque os corpos livres são perigosos, é necessário colocar todos em espaços fechados, às vezes são espaços simbólicos, podem sair mas não saem. A escola ensina coisas e que são introduzidas no currículo escolar, que é tudo o que se ensina aos alunos e há o que se chama currículo oculto, que não está tão oculto, está visível. Há toda uma consideração sobre o currículo, o que se pode fazer em cada tempo em cada momento, como conter os corpos, a produtividade dessas condutas, desses processos de controle.
O que foi que o marcou como docente e pesquisador?
Quando levei coisas escritas a um exame. Não sabia que não se podia copiar, tinha 11 anos e levei um dicionário, a professora o viu e me tirou a prova, fui reprovado e quase expulso; foi uma tragédia. Era um dicionário com uma dedicatória do meu pai.
Como recorda as teorias de Paulo Freire e suas teorias sobre a educação em um âmbito de liberdade?
Esses textos dos anos 70 eram proibidos no Brasil pela ditadura. Quando a Biblioteca da Universidade comprou pela primeira vez um livro de Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, o fiz de maneira secreta, quase clandestina. Ainda é muito lido no Brasil, há uma memória muito forte sobre sua contribuição para a pedagogia.
Como se define hoje o lugar do saber, o lugar de quem ensina? É um lugar de poder?
É uma centralidade, uma invenção que coloca regras na vida social. Quem parte e reparte fica com a melhor parte. Os políticos inventam, a propaganda inventa e as invenções parecem verdadeiras. A questão é reconstruir essas invenções, desarmar esses mecanismos e isso para Foucault é fundamental. Há lugares do saber, a academia é um lugar físico, mas a posição do sujeito professor, mestre, intelectual é uma invenção. A questão é como fazer a desconstrução, a desconstrução das verdades, do que parece evidente. Foucault disse: "Como tornar difíceis os gestos fáceis, muito fáceis". As coisas são complexas, mas há pessoas que assumem sua posição de sujeitos ativos para modificar a realidade. Houve condições de possibilidade histórica, social, para que surgisse um Lula, por isso os atores sociais são importantes na educação e na vida de uma sociedade.
Fonte: Diário Liberdade
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