Glória Dias Soares Vitorino
A DENÚNCIA
Em 30 de junho de 2010, o Conselho Nacional de Educação, por meio da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, recebeu denúncia sobre presença de palavreado de cunho racista na obra “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, indicada para leitura em escolas públicas e privadas de Brasília. De autoria do Sr. Antônio Gomes da Costa Neto, a reclamação foi entendida como sendo de interesse não somente do Distrito Federal, mas de toda a nação brasileira.
O DENUNCIANTE
Costa Neto é brasileiro, Técnico em Gestão Educacional, da Secretaria do Estado da Educação do Distrito Federal. É mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade de Brasília (UNB). Seus estudos se situam na área de concentração em “Educação e Políticas Públicas”. Costa Neto investiga, de modo especial, questões étnico-raciais em livros didáticos no Brasil. “Caçadas de Pedrinho”, de Lobato, é uma das obras analisadas como parte integrante da pesquisa de mestrado.
A NOTA DE RODAPÉ
A reclamação de Costa resulta de um fato percebido por ele numa edição de 2009 de “Caçadas de Pedrinho”. A primeira edição é de 1933. A edição de 2009 traz uma nota de rodapé, explicando que “a grande aventura da turma do Sitio do Picapau Amarelo acontece em um tempo em que os animais silvestres ainda não estavam protegidos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), nem a onça era uma espécie ameaçada de extinção, como nos dias de hoje”. No entendimento do reclamante, deveria também haver algum registro de rodapé sobre estereótipos raciais utilizados por Lobato na configuração dessa obra, em especial, na caracterização da personagem Tia Nastácia.
TIA NASTÁCIA
Tia Nastácia, pode-se dizer, é um personagem caricatural, nessa obra de Lobato. A cozinheira é “preta”. Para evitar a repetição do termo, Lobato diz: “A negra aproximou-se”; “A pobre negra era ainda mais desajeitada do que Rabicó”; “A pobre negra se convenceu”. Em outro momento, diz que Nastácia arregala os olhos como “duas xícaras de chá”. Resmunga, “pendurando o beiço”. Apavorada, ao ver um rinoceronte, cai desmaiada no chão. Sobre o desmaio, o narrador diz: “desmaio de negra velha é dos mais rijos”. Para escapar das feras, sobe rapidamente num mastro de São Pedro como uma “macaca de carvão”.
LOBATO E A QUESTÃO RACIAL
Se pensarmos racismo como qualquer fato, situação ou palavreado que demonstrem ou instiguem preconceito em relação a indivíduos, sustentando a superioridade de algumas raças em detrimento de outras, essa parte da obra de Lobato apresenta algumas evidências de racismo, sim. Mas isso não quer dizer que a obra, na sua totalidade, tenha conteúdo racista. Em nenhum momento, se afirma que o negro é inferior. Porém há formas e expressões do texto que acentuam estereótipos racistas. Se pensarmos, por outro lado, que a literatura é o retrato de um tempo e tem algum vínculo com a realidade (a Abolição da Escravatura ainda não completara cinco décadas), veremos que os dizeres de Lobato, na caracterização de Nastácia, revelam o pensamento escravista da sociedade de então, cujos traços, embora velados, ainda subsistem na atualidade.
O PARECER DO CNE
A obra “Caçadas de Pedrinho” tornam-se, assim, um excelente referencial para professores que estiverem preparados para discutir questões étnico-raciais no Brasil. Como leitor supostamente mais experiente, o professor poderá mostrar ao aluno que “trechos isolados não compõem uma obra e que, na literatura, não é a soma das partes que fazem o todo” – ressalta a Coordenação Geral de Material Didático do MEC. O Conselho Nacional de Educação (CNE) já se pronunciou a respeito dessa polêmica. Em nota de setembro/2010, afirma que: “A obra Caçadas de Pedrinho só deve ser utilizada no contexto da educação escolar quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil. Isso não quer dizer que o fascínio de ouvir e contar histórias devam ser esquecidos; deve, na verdade, ser estimulado, mas há que se pensar em histórias que valorizem os diversos segmentos populacionais que formam a sociedade brasileira, dentre eles, o negro”. Observa-se que o CNE não censurou a obra, como se tem divulgado. Apenas alertou para a cautela que se deve ter em relação à leitura de obras com tais características. A discussão que se deve colocar em pauta, então, é esta: Em se tratando de políticas públicas, o que se tem feito para preparar os professores para lidar com esse tipo de situação no cotidiano escolar?
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