Este texto foi retirado do blog urgente do jornalista Vitor Menezes
Para não esquecer dona Nolinha Fotos: César Ferreira/Reprodução
Trabalhadora rural que morreu queimada em canavial de Tocos, em Campos dos Goytacazes, Cristina Fernandes Santos [foto ao lado], a dona Nolinha, era uma guerreira mãe de sete filhos e que criava três netos. Quatro meses após a tragédia, caso continua sem desfecho nas investigações da polícia. Abaixo, reproduzo matéria que fiz para a Revista Imagem, que circulou semana passada nas bases da Petrobras na Bacia de Campos.
A morte trágica de Dona Nolinha
Após algumas palmas, a desconfiança em pessoa vem ao portão. Chama-se José Firmino, 60 anos [foto abaixo, com os netos]. E entende-se a razão das suas inicialmente poucas palavras e do incômodo diante da reportagem. É dele a dor de ter perdido a esposa, Cristina Fernandes dos Santos, 49 anos, queimada em um canavial próximo do distrito de Tocos, em Campos dos Goytacazes (RJ), em 29 de outubro deste ano. Também pesa a recomendação do advogado, igualmente compreensível, para que ele não fale sobre o assunto com estranhos.
Mas aos poucos Firmino se abre. E uma boa receptividade vai dando vez à dureza de um coração castigado pela injustiça de uma perda que considera assassina. Deve ser por essa característica, de não saber dizer não com muita convicção, que ele é conhecido na comunidade de Ponta Grossa, onde mora, pelo apelido de Amor, como sua mãe o chamava.
A Cristina Fernandes Santos, dos registros burocráticos dos documentos, da ocorrência policial e das pequenas e discretas matérias da imprensa sobre o caso, é, na verdade dos afetos, Dona Nolinha, famosa entre os vizinhos por ter liderado um grupo de trabalhadores sem nunca ter arrumado inimizade com ninguém, o que se comprova pelos constantes pedidos para batizar os meninos e meninas do lugar.
A família vai sendo conhecida aos poucos, entre os que estão na casa de Seu Amor e entre os que estão na casa da mãe de Nolinha, Maria Candido Fernandes, 80 anos [foto abaixo], próxima da primeira. Em alguns momentos, nos seus relatos, se referem à trabalhadora no tempo presente, protegendo-se da perda.
- Ela é muito alegre, vive brincando descreve o irmão Neivan Fernandes da Silva Dutra, 37 anos.
- Ela gosta do meu arroz-com-leite e da minha papa de abóbora. Quando faço, mando os meninos levarem pra ela na roça havia dito a mãe.
- Ela é guerreira, protegia a todos os filhos e netos e ajudava em tudo o que podia disse a filha Joice Dutra dos Santos, 23 anos.
Os filhos de dona Maria Candido são nove, incluindo Nolinha. Os filhos de Nolinha com Seu Amor são sete: Vitor, Monique, Thiago, Tarcísio, Joice, Micheline e Michele. E os filhos dos filhos do casal são cinco: Sâmela, Daniel, Ualas, Carlos Eduardo e Michael todos entre um e quatro anos de idade.
Três dos netos eram criados pela avó Nolinha. Os outros dois também sempre estavam por perto. E todos estariam, como lembrou Joice, em volta de Cristina no dia 29 de novembro, um domingo, para celebrar o seu aniversário de 50 anos. Recursos não havia para festa, mas a tradição na família é juntar todo mundo na casa do aniversariante.
O pagamento de um salário mínimo de Nolinha era empregado em outras prioridades. À frente da casa simples, de reboco falho e pálida cor amarela que emoldura portas e janelas de um vermelho castigado pelo sol, estão 700 telhas cerâmicas compradas com o dinheiro que ela e Seu Amor haviam juntado na última moagem.
Na varanda dos fundos, com chão de cimento cru, estão empilhados os pisos adquiridos há mais tempo ainda, três anos.
Ambos, telhas e pisos, faziam parte do sonho de Nolinha de reformar a casa, que tem o calor acentuado em alguns cômodos pela telha Eternit e nunca fica suficientemente limpa e apresentável, como gosta uma dona-de-casa zelosa, sem o piso adequado.
O dia da tragédia
Do dia em que os sonhos da família se foram, pouco se sabe. A descrição unânime entre familiares é a de que Cristina, por volta das 10h, percebeu que o fogo de um canavial próximo se alastrara com muita velocidade, impulsionado pelo vento sul, e as chamas saltaram de uma roça para a outra, por cima de um aceiro um caminho feito para separar as plantações e atingiram a área onde havia trabalhadores.
Ela estava acompanhada de mais três cortadores de cana a um certo momento. Eles deixaram o local correndo. Cristina correu para avisar sobre o perigo, inclusive para orientar para que retirassem o ônibus do grupo do local, mas teria escolhido o caminho errado. Acabou rodeada pelo fogo.
Um dos primeiros a ver o corpo foi o irmão Neivan. Foi chamado pelos colegas de Nolinha e lá permaneceu, sob o sol, ao lado da irmã, até que chegassem a polícia e os bombeiros. A mãe soube um pouco depois, por intermédio de um farmacêutico meio médico e meio psicólogo da comunidade, que trouxe um calmante e um ombro amigo. Em pouco tempo, a notícia já havia se espalhado. Mas o corte da cana não parou. Nem as queimadaS. Apesar da repercussão ínfima na imprensa local, o caso mereceu o acompanhamento da Comissão Pastoral da Terra, que acionou o Ministério Público Federal. A família também busca a responsabilizaçã o pelo que considera um crime, por meio de ação judicial.
Dona Maria Candido é a que expressa com sentimentos mais intensos o que considera fato nessa história. Amparando-se em um muro, ainda enquanto apenas testemunhava a entrevista que concedia o filho Neivan, ela interrompeu para bradar a sua revolta de mãe:
- Mataram a minha filha. Nem com um animal fariam isso. Eles queimaram a cana em uma hora que não era para queimar, em que tinha gente trabalhando. Levaram a minha filha. Estou passada da vida, jogada há dois meses. Minha filha foi uma grande coisa que perdi. Só Deus sabe o que estou passando. Tem que haver providência para isso ? disse.
Jogo de empurra
A trabalhadora estava a serviço do Consórcio de Mão de Obra Agrícola (Comagri), uma figura jurídica criada pelos produtores de cana para prestar serviço a eles mesmos. No momento de sua morte, Cristina estava em terras de propriedade da empresa Feliz Terra Agrícola. Toda a cana colhida na região onde houve a tragédia é destinada à Coagro, uma cooperativa também de produtores que arrendou uma usina falida, a São José, em Goitacazes, para produzir açúcar e álcool por conta própria.
Por telefone, o presidente da Coagro, Frederico Paes, disse à Imagem que a cooperativa não pode ser responsabilizada pelo caso. Na sua opinião, eventuais demandas trabalhistas devem ser encaminhadas à Comagri. E eventuais responsabilizaçõ es criminais devem ser respondidas pelo proprietário da terra, a Feliz Terra.
Quando a reportagem de Imagem ligou para a Comagri, a simpática atendente respondeu com um Coagro, boa tarde. O que inicialmente parecia ser um engano, mostrou-se revelador da simbiose entre estas duas instituições. A Comagri funciona em um escritório dentro da Coagro.
O chefe do departamento de Pessoal da Comagri, Paulo Roberto de Souza Júnior, não foi encontrado pela revista em seu local de trabalho, durante duas tardes de tentativas telefônicas nos dias 3 e 4 de dezembro. Sua versão para o episódio, no entanto, foi registrada pelo jornal Monitor Campista, em matéria no dia seguinte à morte de Cristina.
Acredito que tenha sido acidental, pois todos sabem do perigo de se colocar fogo no canavial. Além de Cristina, outro funcionário estava no local, mas ele conseguiu fugir correndo em direção contrária, dissera Souza Júnior.
O consórcio arcou com as despesas de funeral e liberou o pagamento de um seguro, de R$ 20 mil, para a família.
Representante dos proprietários da terra, Marcos Júnior, que não quis dizer o seu sobrenome e alegou ser um operador da Feliz Terra, disse à Imagem, também por telefone, que a responsabilizaçã o deve recair sobre a Comagri, que cuida da mão-de-obra do corte de cana. Nós fazemos um contrato com a Comagri e ela passa a responder por tudo o que acontece na terra, disse.
O presidente da Coagro, que também defende a tese da fatalidade, afirmou que todos estavam chocados com a morte de Cristina. Ela estava no local errado, na hora errada. Estava com a gente há muitos anos. Era uma pessoa muito querida, afirmou, se traindo pela expressão ?com a gente.
Segundo Paes, a usina costuma ser foco nestes casos em virtude do passado de más práticas dos usineiros da região, de trabalho escravo e exploração de trabalhadores e de produtores. Nossa usina é diferente, somos uma cooperativa de produtores, justamente por termos sido massacrados pelos usineiros, disse.
A Coagro, ainda de acordo com Paes, se prepara, inclusive, para acabar com as queimadas, inicialmente com a aquisição de seis máquinas colheitadeiras que estarão em atividade na próxima safra. O lado ruim, segundo ele, é o desemprego. Cada máquina substitui 80 trabalhadores. Na região, cerca de dez mil trabalhadores atuam no corte de cana.
Mas este é um caminho sem volta. Precisamos eliminar de vez as queimadas. Mas também precisamos qualificar os trabalhadores, para que possam atuar em outras áreas. Ninguém corta cana porque quer, avalia o novo usineiro.
Sobre as circunstâncias da morte de Cristina, Frederico Paes também comenta algo que, aparentemente, busca amenizar a responsabilizaçã o dos empregadores. Soubemos aqui que ela não estava em seu local de trabalho, estava caçando preá. O fogo, inclusive, pode ter sido ateado por alguém com o propósito de espantar as preás, uma prática comum aqui. Isso também explicaria a razão de outros trabalhadores não terem sido atingidos, aventou.
A versão que reforça o princípio da fatalidade ou aquela interpretação usualmente utilizada pelos empregadores de que, no final das contas, o trabalhador acaba sendo considerado o responsável pela própria morte foi providencialmente parar também no Boletim de Ocorrência registrado na 134ª Delegacia de Polícia, no Centro de Campos.
O comunicante [o policial que esteve no local] relata que foi informado pela Maré 8 para proceder ao canavial na Fazenda de Tocaia, onde uma mulher queimada foi encontrada morta. O comunicante alega que procedeu ao local e constatou que se tratava de Cristina Fernandes dos Santos que se acidentou ao adentrar no canavial pegando fogo. O comunicante alega que populares informaram que a mulher entrou no canavial para caçar preá, no momento em que o mesmo estava pegando fogo?, registrou a polícia.
O caso está sendo investigado pelo Ministério Público Federal e por inquérito instaurado pela própria Polícia Civil.
Trabalho escravo
Enquanto isso, o setor sucroalcooleiro, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra, segue na liderança de incidência de trabalho escravo no Brasil. Em 2008, a indústria do açúcar e do álcool mantinha 49% (2.553) dos trabalhadores flagrados em condições análogas à escravidão.
Na véspera da morte da Cristina Fernandes dos Santos, em 28 de outubro, uma operação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, formado por integrantes do Ministério Público do Trabalho, do Ministério do Trabalho e da Polícia Rodoviária Federal, resgatou 38 trabalhadores que atuavam em condições degradantes em propriedades que enviam cana-de-açúcar para a Coagro.
O emaranhado jurídico que embaça a responsabilizaçã o da morte de Cristina Santos também foi percebido pelo Ministério Público do Trabalho em relação ao vínculo dos trabalhadores resgatados.
Além das condições degradantes constatadas pelo Grupo Móvel, a Coagro, que é formada por produtores rurais, terceiriza mão-de-obra ilicitamente ao instituir o Consórcio de Mão-de-Obra de Empregados Rurais (Comagri) como responsável pelos trabalhadores, quando na verdade é a própria cooperativa que gerencia toda a mão-de-obra. Outra irregularidade jurídica apontada pelos procuradores trata-se da formação ilegal da Coagro e da Comagri. Ambos são constituídos por pessoas físicas e jurídicas. Segundo o procurador do Trabalho Marcelo José Fernandes da Silva, o artigo 25-A, da Lei 8.212, de 2001, estabelece que os empregados do consórcio só podem trabalhar em terras de produtores rurais, que são pessoas físicas?, registrou o site da Comissão Pastoral da Terra, em matéria sobre a operação.
Além de irregularidades trabalhistas, foram encontradas pelo Grupo Móvel ?a ausência de registro em carteira, não fornecimento de equipamentos de segurança, falta de instalações sanitárias nas frentes de trabalho, inexistência de local adequado para refeição e para o acondicionamento da comida levada pelos trabalhadores, e a não concessão de água potável?, relatou a CPT.
A Coagro foi obrigada pelos auditores a anotar os contratos de trabalho na carteira dos empregados encontrados sem registro, além de pagar verbas rescisórias e por dano moral individual estipulado em R$ 260 mil pelo Ministério Público do Trabalho ? que vão para o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) .
Despedida
O corpo de Dona Nolinha foi sepultado sob forte comoção em um pequeno cemitério de área rural, a poucos quilômetros da sua casa e à beira da estrada entre Ponta Grossa e Tocos, por onde passam, todos os dias, os ônibus dos trabalhadores que comandava. Dona Maria Candido ainda aguarda vir da cidade a foto emoldurada que ficará sobre o jazigo da filha. No domingo que seria o de seu aniversário de 50 anos, seu túmulo foi visitado por parentes e amigos, que levaram flores e fizeram orações. Pediram que ela descanse em paz. E que seja feita justiça.
Postado por Vitor Menezes
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