sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O Brasil reinventa o totalitarismo – a nova máquina policial


Estamos dentro de uma espiral de violência e repressão policial que ultrapassa a média histórica, já extremamente alta, que caracterizou sempre a história de um país elitista e discriminador.”

Bajonas Teixeira de Brito Junior*

Há muitos sintomas que hoje indicam a eclosão de uma forma peculiar de totalitarismo no Brasil. Thomas Mann, exilado durante a maior parte do tempo que durou o Terceiro Reich, definiu a Alemanha do período como o “bem que infeccionou”. O bem, porque o alemão era tradicionalmente conhecido por seu senso de ordem, disciplina, dedicação ao trabalho e obediência às leis. O agigantamento de alguns poucos sentimentos alemães (o anti-semitismo, o nacionalismo, a necessidade de obediência e hierarquia, o revanchismo, o misticismo) levaram à catástrofe. No Brasil de hoje, ainda temos que descobrir o que está por trás dos traços totalitários que se avolumam.

Observamos esses traços se ramificarem em diversas direções: nas alterações (sempre para cima) dos contratos bilionários das empreiteiras; nas concessões inconstitucionais para as obras da Copa e outros megaeventos esportivos — que, como tem enfatizado o professor Carlos Vainer, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da UFRJ, assumem a forma de um efetivo Estado de Exceção, com as garantias constitucionais anuladas em benefício da especulação imobiliária e outros grandes interesses econômicos; o mesmo aparece nos projetos colossais, como o do Plano Nacional de Banda Larga, em que salta aos olhos o modo com que, como faca quente sobre a manteiga, os “parceiros” do governo federal infringem ou denunciam os acordos no mesmo dia em que os firmam e obtém os privilégios que Estado algum concederia.

Por fim, o que provoca estremecimento e pavor, temos as operações policiais destinadas aos pobres e aos movimentos sociais, cada vez mais aparatosas em que se pode admirar a pujança do aparelhamento da repressão: helicópteros blindados em sobrevôo rasante, enormes carros blindados, viaturas novinhas em folha, armaduras articuladas com proteção amortecedora e design futurista, semelhantes às dos soldados americanos no Iraque, veículos especiais para transporte rápido de grande quantidade de cavalos, utilização da cavalaria como técnica de cerco e perseguição, etc.

Uma atenção especial merece esse último aspecto, a força repressiva, em vista da escalada da violência policial que se cristalizou em diversos acontecimentos repulsivos nos últimos tempos. Para entender suas causas é preciso, primeiro, mostrar os fatos que se acumulam e, em seguida, buscar as raízes do presente surto de totalitarismo no país. Citamos alguns dos fatos marcantes:

1. 02 junho de 2011. Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Durante uma manifestação contra as altas tarifas dos ônibus e melhoria do transporte público, a tropa de choque local atua com grande violência contra estudantes universitários e secundaristas. O vídeo no You Tube pode ser visto aqui. E reproduzo parcialmente o pequeno, mas preciso, relato que acompanha o vídeo:

“Durante manifestação pacífica, o BME-ES (Batalhão de Missões Especiais do Espírito Santo [...] ) age com bombas, tiros de balas de borracha (muitos à queima-roupa), spray de pimenta e tapas/pontapés contra manifestantes desarmados (em sua maioria estudantes).

Detalhe 1: a tropa atira nos manifestantes antes de qualquer iniciativa de confronto por parte deles, apontando para dentro da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), ferindo gente desde o pescoço (!) até o pé, inclusive acertando pessoas que não estavam na manifestação.

Detalhe 2: A tropa age sob ordem do governador Renato Casagrande, que havia baixado nota dizendo que abria mesa para diálogo com os manifestantes, mas não atenderia a nenhuma das reivindicações (no entender da autoridade fascista, isso é abertura para diálogo).”

2. 21 de Outubro de 2011. Durante a greve de professores e estudantes da Universidade Federal de Rondônia (Unir) — contra a administração corrupta do reitor Januário Amaral, que se viu ao fim obrigado a renunciar e é hoje acusado pelo promotor do Ministério Público Estadual de Rondônia (MPRO) Pedro Abi-Eçad de ter liderado uma organização criminosa dentro da universidade — a Polícia Federal (PF) efetuou a prisão, não do reitor, mas de um professor presente nos protestos, o professor e doutor em história Valdir Aparecido de Souza. É interessante observar a perfeita calma e autocontrole do professor, característica da coragem sem arrogância, em contraste com a histeria dos policiais federais, que chegam a mostrar uma arma no momento da prisão arbitrária do docente. Parecem duas vertentes da humanidade, entre as quais não há ponte possível. O vídeo não deixa dúvidas.

3. 08 de novembro de 2011. A desocupação da USP. Um policial aponta a arma para o rosto de uma aluna. Cavalaria, tropa de choque, alarido de sirenes, explosões, bombas de gás lacrimogêneo, helicópteros voando próximos ao prédio. A moradia estudantil (CRUSP) fica sitiada por grande contingente policial. Enfim, cenas de horror e desespero. O saldo de 73 estudantes presos.

4. 09 de janeiro de 2012. Um estudante negro na USP foi tratado com extrema violência por um policial militar, levou tapas, foi arremessado contra os móveis que estavam no caminho, humilhado de forma assombrosa por um agente público em serviço. Isso foi feito, sem o menor escrúpulo e sem qualquer hesitação, diante de câmeras. Fica-se a imaginar o que acontece longe das câmeras.

5. 03 de janeiro de 2012. Longe das câmeras, acorrem as abordagens sempre cruéis e marcadas pela brutalidade. Um doutorando em Filosofia, em Barão Geraldo, Campinas, se atreveu a questionar a forma de tratamento dada por policiais aos jovens pobres e negros da localidade. Recebeu uma série de ameaças e teve que enfrentar vários constrangimentos, inclusive desfile de viaturas na sua porta. Não se intimidou e, num segundo questionamento das abordagens policiais, foi preso por “desacato”. Ele fez então, por temer represálias ainda mais graves, o relato dos fatos que foi publicado no site do Yahoo, na coluna de Walter Hupsel.

6. 05 de janeiro de 2012. Com os métodos truculentos que se tornaram a rotina da atividade policial nas ruas, se procede à “limpeza” da região da Cracolândia em São Paulo. O pretexto é o revigoramento do Centro. O motivo real, apontado por todos os movimentos sociais, é a simbiose de interesses políticos e especulação imobiliária. Na desocupação de Cracolândia, não só se desconsiderou qualquer ação para amenizar a síndrome de abstinência dos dependentes químicos, mas se explicitou o que está no íntimo do tratamento brutal oferecido pela polícia, e a política, aos miseráveis da sociedade brasileira: a Prefeitura de São Paulo declarou que sua estratégia se baseava em “dor e sofrimento” para atingir os seus objetivos. Veja-se a matéria do Estadão: SP usa ‘dor e sofrimento’ para acabar com cracolândia.

7. 22 de janeiro de 2012. Desocupação de Pinheirinho em São José dos Campos (SP). Reproduzo o texto de Raquel Rolnik que, junto com Walter Hupsel, tem sido uma das poucas vozes indignadas com a escalada policial: “Milhares de homens, mulheres, crianças e idosos moradores da ocupação Pinheirinho são surpreendidos por um cerco formado por helicópteros, carros blindados e mais de 1.800 homens armados da Polícia Militar. Além de terem sido interditadas as saídas da ocupação, foram cortados água, luz e telefone, e a ordem era que famílias se recolhessem para dar início ao processo de retirada. Determinados a resistir — já que a reintegração de posse havia sido suspensa na sexta feira – os moradores não aceitaram o comando, dando início a uma situação dramaticamente violenta que se prolongou durante todo o dia e que teve como resultado famílias desabrigadas, pessoas feridas, detenções e rumores, inclusive, sobre a existência de mortos.”

Os fatos listados deixam pouca margem a dúvidas. Sua concentração em janeiro de 2012, é sintomática. Estamos dentro de uma espiral de violência e repressão policial que ultrapassa a média histórica, já extremamente alta, que caracterizou sempre a história de um país elitista e discriminador. Um tripé repressivo, que envolve o judiciário, a polícia e a política, manipulando uma consciência pública cada vez mais debilitada, em que os próprios intelectuais praticamente se recolheram ao mais absoluto mutismo, salvo raríssimas exceções, está bem montado e, tudo indica, atuará daqui para frente sempre com maior ferocidade. Estamos já muito além de acontecimentos episódicos e passageiros. Há por trás de tudo isso um comércio de armamento, viaturas, blindados, helicópteros, munições, armas, etc. O Rio de Janeiro já é palco de uma das maiores feiras mundiais, a Feira Internacional de Segurança, para a aquisição de armamentos destinados à repressão pública.

O que já está em prática é um projeto, que foi articulado pelo então ministro da defesa, Nelson Jobim, que evocou à época a “expertise” adquirida pelo exército em conflitos urbanos na missão do Haiti, e cujos aspectos mais perturbadores tentamos apresentar num artigo publicado aqui nesse site em 2008 — Nelson Jobim e o projeto de super polícia. Uma conclusão que se pode tirar nessa altura é a seguinte: se um ministro da defesa é quem articula um projeto policial, em que o exército, a marinha e aeronáutica são peças decisivas, então o inimigo contra o qual o país pretende se defender é um inimigo interno. Ao longo da história, nos regimes totalitários, o ponto crucial foi sempre o domínio sob o aparato policial visando a liquidação do “inimigo interno”.

O que não é fácil de compreender é como, no governo de um partido que sempre se disse comprometido com as causas populares, foi chocado o ovo da serpente. Enquanto há pouco mais de uma década discutia-se ainda o absurdo da existência de duas polícias, a militar e a civil, e se falava na extinção de uma delas para a consolidação do sistema democrático, o que acompanhamos nos últimos tempos foi o reforço de toda a maquinaria policial: o uso da Polícia Federal contra mobilizações sociais (como no caso da Unir, citado acima), a criação da Força Nacional de Segurança Pública, a mobilização das Forças Armadas para operações em favelas, o fortalecimento da divisão da polícia em Civil e Militar, a quase que autonomia dos batalhões especiais, como o Bope.

Surtos de totalitarismo se deram em muitas partes do mundo. Hannah Arendt e Herbert Marcuse, para citar um caso, apontaram diversos desses sintomas nos EUA nas décadas posteriores à Segunda Guerra. Pode-se dizer que desde a chamada guerra ao terror esses traços não só retornaram como se revestiram de evidência muito maior. No cenário da crise econômica iniciada em 2008, originada de acordo com vários economistas pelos gastos astronômicos da guerra no Iraque e no Afeganistão, o combate ao terror teve sua prioridade rebaixada. Já o Brasil, nesse mesmo período, criou sua própria versão da guerra ao terror, na forma da guerra contra o tráfico. Para compreender seu sentido, é preciso dar uma passada de olhos sobre nossa história colonial e ver, como nela, se enraíza a figura do “inimigo interno”. Só assim compreenderemos como o nosso Ministério da Defesa pode, hoje, estar envolvido no combate dentro do front interno.

O inimigo a ser erradicado, desde os primórdios da colonização, tem sido entre nós principalmente o inimigo interno. Esse inimigo foi, primeiramente, desenhado pela pena da teologia dos padres como o portador por excelência do mal. Primeiros foram os indígenas, depois os escravos, quilombolas, negros livres e mestiços, e, atualmente, esses inimigos são os que se abrigam em favelas, ocupações e invasões. O historiador inglês Charles Boxer definiu o princípio fundamental da colonização portuguesa nos termos seguintes: “Salvar suas as almas imortais associado com o anseio de escravizar os seus corpos vis”. Trata-se de uma troca metafísica, em que os padres e a Igreja Católica representam a salvação, impondo o cristianismo aonde chegavam e, como complemento inseparável, os traficantes escravistas, os bandeirantes, os capitães-do-mato e as forças policiais, garantiam a subjugação.

Ser escravo era o preço pago por ser cristianizado e adquirir uma alma imortal. O Brasil, ou aquilo que veio a ser chamado Brasil, era visto como um paraíso terreno (o que, na perspectiva portuguesa, significava um campo aberto à exploração extrativa indefinida) habitado, porém, por demônios que deviam ser redimidos ao mesmo tempo pela cruz e pela espada. Um dos melhores exemplos dessa parceria é a do major Vidigal, chefe de polícia no Rio de Janeiro na época em que a Corte esteve no Brasil. Além de reprimir barbaramente qualquer rebeldia negra na cidade, Vidigal destruía os quilombos próximos e, em troca, recebia presentes e homenagens.

Como é bem conhecido, os monges beneditinos o presentearam com uma grande área no Morro Dois Irmãos, em 1820, por serviços prestados. Que interesses teriam os beneditinos? Um viajante, poucas décadas antes, anotou que eles possuíam 1,2 mil escravos, que usavam na exploração de quatro enormes engenhos de açúcar. Assim, o major Vidigal, na sua época, foi uma engrenagem fundamental para assegurar os bens da ordem. Isto talvez já estivesse esquecido, ou enterrado sob grossa crosta de dissimulação histórica, não fosse um detalhe irônico: o terreno doado a Vidigal foi ocupado posteriormente por Sem Tetos, e recebeu o nome de Favela do Vidigal.

O Brasil foi dominado por quatro séculos por traficantes. As maiores fortunas nesses 400 anos de escravidão eram as dos traficantes de escravos e, abaixo deles, a dos exploradores de mão de obra escrava nas monoculturas, como os beneditinos (ver o livro de João Luis Ribeiro Fragoso, Homens de grossa aventura). Mas esses traficantes, motores de uma trama genocida que trucidou mais de 10 milhões de escravos, só na América, nunca foram punidos. Ao contrário. Foram presenteados com títulos de nobreza, premiados, promovidos, honrados e festejados. Como paradoxo histórico bem característico do Brasil, deparamos hoje com uma guerra aberta contra os descendentes das vítimas da escravização. E essa guerra foi chamada de guerra contra o tráfico.

A nossa guerra contra o tráfico segue o modelo colonial da guerra ao inimigo interno. Em todas as justificativas dos atos violentos praticados pelas forças policiais, se repete o mesmo relatório: “foram encontradas tais e tais armas e munições; tantos e tantos quilos de cocaína; presos diversos evadidos do sistema prisional, etc.”. A lógica permanece, sem tirar nem pôr, a lógica da colonização sendo os lugares atacados os que abrigam os maiores contingentes de herdeiros do pesadelo escravista, isto é, o maior contingente de negros e mestiços. Por isso é engraçado ler coisas como essa:

“O ministro Gilberto Carvalho (Secretaria-Geral da Presidência) disse nesta segunda-feira que a Policia Militar transformou em “praça de guerra” a ação de reintegração de posse da área invadida do Pinheirinho, em São José dos Campos (97 km de São Paulo), determinada pela Justiça estadual.” Folha.com: Ministro chama de “praça de guerra” episódio em Pinheirinho.

Mas como é possível tanto cinismo, se os instrumentos dessa guerra foram criados por esse governo e por sua base política?

Enquanto isso os grandes interesses, os negócios gigantescos, predatórios para o Estado, mas indispensáveis para a política, têm seus contratos bilionários sempre reajustados para cima, recebem todo tipo de incentivo, e se esquivam a toda responsabilidade. Compara-se isso com a explosão dos trabalhadores dos canteiros de obras de Jirau, que forma um afresco histórico dos mais claros sobre o Brasil de hoje. Milhares de trabalhadores em condições miseráveis de trabalho aguardam providência de um Estado que não passa de um simulacro de garantidor do interesse público. Em 2009, 38 trabalhadores foram libertados de condições de trabalho análogo à escravidão; em 2010, já foram 330 os autos de infração por crimes trabalhistas e em 2011, no mês de abril, depois de compreenderem que nenhum apoio viria do governo federal, os trabalhadores cederam ao desespero e promoveram uma explosão de fúria. Só então o Estado se fez presente: a Força de Segurança Nacional, veloz como um raio, apareceu e tocou para longe os trabalhadores, demitidos e expulsos da área. Nenhuma reparação lhes foi dada ou prometida. Agora, surge o conflito entre as empreiteiras e as seguradoras para o pagamento dos prejuízos e, como era de se esperar, o BNDES já entrou na discussão. E a discussão diz respeito ao pagamento, ao consórcio construtor, de uma soma que pode chegar a US$ 1,3 bilhão. Indenização alguma cabe aos trabalhadores tratados como bestas de carga.

É interessante notar que, ao que parece, todas aquelas operações grandiosas da polícia federal contra os muito ricos (como a Operação Satiagraha), não deram em nada. Ou entraram no processador lento dos tribunais, na caverna obscura na qual muitos processos entram, porém, raros saem. Serviram só para proibir as “humilhações” e “exposições” a que antes eram sujeitos banqueiros ou especuladores: fim das algemas, imposição do segredo de justiça, etc. Por outro lado, na esfera dos conflitos sociais normais em toda sociedade democrática, a polícia das balas de borracha, dos gases de pimenta e lacrimogêneo, das pancadas e humilhações, das mortes que no meio do tumulto nunca são responsabilidade dos agentes públicos, avançam sobre um território novo e inexplorado: o público universitário.

Ao mesmo tempo em que se reforça sobre as periferias, favelas e ocupações, em que intimida e maltrata mais os negros e mestiços do que nunca, a polícia começa a sentir o gostinho de estender a mão também a um público mais seleto, carne nova, de classe média, que, até pouco tempo, não fazia parte do seu cardápio habitual: alunos do ensino secundário, estudantes de universidades federais, doutorandos, professores doutores.

Como foi possível ao PT criar esse aparelho repressivo? Foi possível porque para os intelectuais, políticos e setores religiosos que formam o partido, a grande referência permanece a Europa e a sua brancura mítica. Ao pensar em refazer as estruturas sociais do país, em desenvolvimento e modernização, o inconsciente do PT almeja por algo parecido com o que considera o Bem, isto é, algo semelhante a um país europeu e uma população branca. Nessa lógica, as massas de negros, mulatos, mestiços, e também índios, não esqueçamos deles — todas essas faces estranhas e inquietantes para quem só vê beleza em corpos brancos — aparecem como um estorvo estético, um desvio moral e um sinal da vocação para o crime. As classes dominantes delinqüentes sempre fizeram assim: transferiram a sua própria carga criminosa para seus subordinados sociais.

O que fazer com eles? O PT pôs em prática a mesma teologia e a mesma interação de público e privado da nossa história colonial. Os brancos, e quanto mais brancos melhor, os donos de empreiteiras, bancos, latifundiários, especuladores, etc., afiguram o Bem. A ‘plebe’ descendente da escravidão, surge como a raiz de todo Mal. Esse mal, o pior mal, o mais concentrado, foi fixado na figura do traficante — síntese e prova do mal que se engendra nas favelas. Os pobres, em sua grande maioria negros e mestiços, os índios, devem ser salvos pelo Bem, mas por essa salvação têm que pagar um preço muito alto. Esse preço é hoje, não mais a cristianização meramente cosmética, mas a submissão à ordem pela violência, como se, em sua essência, esses setores constituíssem focos de infecção social. As UPPs, em cujo projeto inicial se incluía muros e guaritas em torno das favelas (Ver o nosso artigo publicado aqui no site: A Alpha Ville das Comunidades – a Alpha Vella) mostram claramente isso. Repetem os aldeamentos e missões, em que os índios eram totalmente extraídos de sua cultura original e submetidos a mais rígida ordem sob a vigilância cruel dos monges.

O que o PT parece perder de vista é que, como sempre acontece na história com os partidos fracos, gelatinosos, dispostos a todas as concessões e vilanias, a sua política policial se voltará, mais cedo ou mais tarde, contra ele mesmo. E isso pode acontecer logo que, despido de sua auréola e credibilidade, por força da violência que criou e tem gerido, deixe de ser um instrumento útil nas garras da fauna de bilionários que hoje se alimenta do Estado. Nesse momento, o criador será entregue como repasto para sua criatura.

PS: Tenho muita simpatia pelos meus colegas que se dedicam aos estudos pós-coloniais, especialmente pela seriedade de seus trabalhos acadêmicos e pelo seu engajamento crítico, mas, não obstante isso, para o caso brasileiro, não posso deixar de alimentar sérias dúvidas. Em que sentido o Brasil se mostra como uma sociedade pós-colonial? O que caracteriza a nossa história são as mudanças sem rupturas, as transições transacionadas. Assim, falar em “pós” pressupõe um corte efetivo, coisa que nunca ocorreu em nossa história marcada pela ambivalência. Parece-me muito mais explicativa a idéia de neo-escravismo, sublinhando a velha continuidade da corrupção, da violência contra os cativos, dos privilégios escancarados para as elites.

*Doutor em Filosofia, autor dos livros Lógica do disparate, Método e delírio e Lógica dos fantasmas. Foi duas vezes premiado pelo Ministério da Cultura por seus ensaios sobre o pensamento social e cultura no Brasil. É coordenador da revista eletrônica, Revista Humanas , órgão de divulgação científica da Cátedra Unesco de Multilinguismo Digital (Unicamp) e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Ufes
GRIFO MEU (PK)

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