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Atílio Borón
Neste 4 de fevereiro, completam-se 50 anos de um dos documentos políticos mais importantes da história do movimento revolucionário latino-americano e caribenho: a Segunda Declaração de Havana. Suas palavras tiveram – e ainda têm – um valor profético de alcance comparável somente com aquelas escritas por Marx e Engels no Manifesto Comunista. Mas não somente profético: também como palavras que despertaram a consciência de nossos povos e inspiraram, concreta e imediatamente, o começo de grandes lutas pela justiça, pela dignidade, pela democracia; palavras que mobilizaram massas e que, de uma forma ou de outra, pelos mais diversos (e às vezes impensáveis) caminhos, mudaram a fisionomia da Nossa América. Se hoje essa região não é a mesma que há meio século; se aqui se derrotou a ALCA, se há governos e povos que resistem e lutam contra o imperialismo; se o centro de gravidade da política latino-americana virou-se para a esquerda, tudo isso devemos, em uma medida muito maior do que habitualmente se reconhece, a esse grito lançado por Fidel desde Havana, plantando uma semente que germinaria mil flores. Um documento de enorme valor histórico e de rigorosa atualidade, que as novas gerações de lutadores anti-imperialistas e anticapitalistas têm de ler, estudar e, o mais importante, levá-lo à prática.
A continuação, um breve estudo introdutório que escrevi há alguns anos, onde se examina o contexto no qual surge esse documento e suas teses principais. Soma-se a tudo isso o endereço do texto completo da Segunda Declaração de Havana, na versão taquigráfica original. Um documento, diga-se de passagem, que a direita e os imperialistas almejam por enterrar e desaparecer porque sabem muito bem que é uma arma da revolução e que todos nós devemos conservar e difundir.
Endereço: <https://docs.google.com/document/d/1F4_ANjW8J0-0leCws5Zs51-sVp5pK_5Pk6myYDHN0dQ/edit>
Primeira e Segunda Declaração de Havana
Atilio A. Borón [1]
O presente volume reúne dois documentos de grande importância: as Declarações de Havana, produzidas em setembro de 1960 e fevereiro de 1962. Na realidade, se a Primeira Declaração de Havana é um texto notável, o passar do tempo consagrou, com razões justas, a Segunda Declaração de Havana como um documento histórico de excepcional transcendência. Por isso, devemos celebrar a decisão de voltar a publicá-lo, facilitando que as jovens gerações latino-americanas possam encontrar em sua leitura renovadas fontes de inspiração para sua imaginação e sua práxis política.
As coordenadas históricas
Dizíamos, pois, que se trata de um documento histórico. No entanto, tal qualificação seria apenas uma meia verdade. A Segunda Declaração de Havana é muito mais do que isso.
Diríamos que é um texto vivo, histórico e atual; reflexo fidelíssimo de uma época, de uma conjuntura internacional, o começo dos anos de 1960, mas ao mesmo tempo diagnóstico certeiro dos males que ainda hoje nos afligem e de nossas questões pendentes. A época em que vem a público, 4 de fevereiro de 1962, não poderia ser mais significativa. Todo o intenso dramatismo desse tempo, quando a América Latina se encontrava em uma encruzilhada, em um ponto a partir do qual somente Cuba soube tomar a direção correta, é recriado em suas páginas, brilhantemente escritas, com uma força extraordinária. É um texto que surge três anos depois da Revolução Cubana, quando já não havia um só analfabeto na ilha e quando já haviam sido arquitetadas as grandes medidas que consolidariam a transformação revolucionária da economia cubana. Mas também é um texto que aparece logo depois de dois grandes acontecimentos que marcariam indelevelmente a história das relações de Nossa América com o imperialismo: a Conferência de Punta del Este, na qual a Administração Kennedy lançara a mal nascida e pior falecida Aliança para o Progresso, e a invasão mercenária à Playa Girón, articulada, financiada e realizada por Washington e que foi exemplarmente rechaçada e derrotada pelo povo cubano em heróicas jornadas de luta.
Na Conferência de Punta del Este se consumou, como moeda de troca falaciosa, diante da “generosidade” do império pelo obséquio da Aliança, a expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos e, de fato, seu ostracismo regional. Pensavam que, dessa maneira, submeteriam um povo que já levava um século lutando por sua liberação; sua ignorância era tão notável e seu cretinismo jurídico tão grande que acreditavam que bastaria uma resolução final de tão ilustres conferencistas reunidos em Punta del Este para colocar de joelhos o povo e o governo cubanos, aterrorizados ante as iras do império e seus alcaguetes, obrigando-os a retroceder a marcha da revolução. Em perfeita sequência, os governos “democráticos” do continente procederam, para sua eterna desonra, ao rompimento das relações diplomáticas com Cuba. Afortunadamente, o impulso ainda vivo da Revolução Mexicana fez com que houvesse uma exceção ante tanta infâmia, e o México negou-se a se submeter ao edito estadunidense. É difícil transmitir hoje, quando a OEA é um cadáver fétido a espera de uma alma caridosa que lhe ofereça piedosa sepultura, a indignação que causara nesse tempo ver esses personagens de opereta apressar-se rasteiramente em cumprir as ordens da Roma estadunidense, como dissera José Martí, procurando cada um deles obedecer de maneira mais estrita possível o mandado imperial. Indignação não isenta de seu lado cômico, pois outra coisa não poderia ocorrer quando alguém via que, no bando dos democratas e dos amantes da liberdade adotado pela Casa Branca, se encontravam figuras tão excelsas como “Papa Doc” Duvallier, amo e senhor do Haiti; Anastasio Somoza, o gendarme sobre quem Franklin Delano Roosevelt disse: “é um filho da puta, mas, senhores, é nosso filho da puta”; o general Alfredo Strossner, arauto da democracia hemisférica, e outros fantoches de semelhante forma cujos nomes há anos foram parar na lixeira da história. De fato, quem poderia se recordar de apenas um desses personagens que, ajoelhados, condenaram Cuba? Em troca, quem poderia se esquecer da estatura olímpica do delegado que a ilha enviou a dita Assembléia, ninguém menos que Ernesto “Che” Guevara, um personagem histórico universal, como diria Hegel, e cujo discurso foi uma verdadeira pérola da literatura política latino-americana?
A Segunda Declaração expressa a indignação cubana ante a traição dos governos latino-americanos que a expulsaram da comunidade hemisférica. O país agredido, invadido, bloqueado foi posto no banco dos réus, e o agressor conseguiu que a vítima fosse condenada, com a cumplicidade dos representantes da liberdade e da democracia na região. Mas não há somente indignação nesse texto. Também há dor, muita dor, ao ver mais além da capitulação dos dirigentes, ao ver a persistência do drama humano e social em que se debatiam – e ainda se debatem – as sociedades latino-americanas. E também há certo diagnóstico sobre a realidade da época e um prognóstico sobre os difíceis tempos que se aproximavam. Mais além dos acordos que hoje poderiam suscitar tal ou qual frase, ou de alguns erros de apreciação e previsão, estamos ante um documento excepcional, comparável em certos aspectos, por sua precisão analítica, caráter pedagógico e eloquência discursiva, ao Manifesto Comunista. Suas fontes políticas e intelectuais são principalmente duas: uma mergulha profundamente na história cubana e latino-americana, e vem de muito longe, notavelmente de José Martí, mas também de Simón Bolívar; a outra fonte remete ao marxismo clássico, à obra de Marx, Engels e Lenin.
Os eixos temáticos
Convém repassar, a modo de introdução, alguns dos temas principais abordados na Segunda Declaração. Começa reivindicando a exatidão do diagnóstico martiano, “que chamou o imperialismo por seu nome” e a caracterização da Roma estadunidense, “esse Norte revoltoso e brutal que nos despreza”. Não é necessário ser demasiado perspicaz para compreender a vigência de tais afirmações. Em primeiro lugar, por isso de chamar o imperialismo por seu nome, em momentos que proliferam interpretações volúveis, que nos falam de um “Império” virtual, sem centro nem periferia, sem hegemonias nacionais em jogo e, o cúmulo dos cúmulos, sem relações imperialistas de dominação [2]. Por outro lado, ante os bizarros esforços por assimilarmos a cultura imperial dominante, apresentada pelos artífices da globalização neoliberal como a “única” congruente com a lógica competitiva dos mercados, é oportuno recordar o racismo do centro imperial, manifestado de mil e uma maneiras, algumas sutis, outras toscas, mas todas igualmente depreciativas de nossa gente, nossa cultura e nossos valores. A tal ponto chegou esse processo de colonização cultural que um teórico conservador como Samuel P. Huntington disse a um destacado governante latino-americano a quem estava entrevistando: “Mas vocês querem ser como nós!”, a que o sujeito em questão respondera: “Sim. Trata-se disto: queremos ser iguais a vocês.” Precisamente, disto se trata: de sermos nós mesmos, e não de procurar, estupidamente, ser como eles. Uma das pré-condições para a libertação nacional na América Latina, para a soberania e para pôr um fim a toda forma de exploração e opressão, é a ruptura da vassalagem colonial existente nas mais diversas ordens da nossa vida social. Esse colonialismo tem tido, como mostra a brilhante obra de Roberto Fernandez Retamar, consequências gravíssimas para as sociedades latino-americanas. Sugiro ao leitor o referido texto, para uma profunda reflexão sobre essa temática [3].
O texto prossegue com uma breve síntese do processo de desenvolvimento capitalista e sua expansão internacional, perguntando-se pelas causas subjacentes a tão extraordinária difusão. Obviamente, não se tratou de razões de índole moral, como tantas vezes se alegou, muito menos à “missão civilizadora do homem branco”, mas, como afirma a Segunda Declaração, à “sede de ouro”, ao “afã de lucro”. E o mesmo princípio está por trás das políticas do imperialismo, em sua fase atual, na América Latina. Essa parte do texto culmina com uma síntese do surgimento das novas idéias da ilustração e do liberalismo, o caráter revolucionário das mesmas em contraposição à insensatez da ordem social feudal e a identificação, por parte dos autores inscritos no novo universo discursivo, do caráter histórico e, portanto, passageiro do antigo regime. A consequência desse processo, quando a burguesia já havia triunfado e estabelecido seu domínio, é a crescente concentração dos meios de produção e da riqueza em poucas mãos, e a formação de cartéis, trustes e consórcios que, progressivamente, vão substituindo a livre competição das fases anteriores do desenvolvimento capitalista pela primazia dos monopólios.
Como consequência desse processo, a extraordinária riqueza produzida pelo trabalho de milhões de homens gera um excedente de capital que, para que não desapareça, requer sua expansão aos mais longínquos rincões do planeta. Assim, começa um violento processo de “repartição do mundo”. Isso implica no apoderamento dos mercados dos países mais débeis e de suas riquezas e recursos naturais. Mas a finitude do planeta é um obstáculo para a ganância dos imperialistas, que, mais cedo do que nunca, dão inicio a disputas de todo tipo para redefinir, em melhores termos, as condições de sua participação no butim. À luz da Guerra do Iraque, compreende-se a sinistra atualidade da Segunda Declaração de Havana, posto que a aventura belicista de George W. Bush representa quase paradigmaticamente toda a miséria e a crueldade das políticas imperialistas. Em todo o caso, retomando o fio de nossa argumentação, as longas séries de guerras coloniais culminaram nas duas grandes guerras mundiais do século XX, ou, como prefere Immanuel Wallerstein, uma grande guerra que começara em 1914, acordara um armistício provisório que detonou nos ares em 1939, para finalizar em meio a uma matança de mais de 80 milhões de pessoas em 1945. A declaração assinala que, chegado a esses limites, o sistema inicia sua decadência. “Desde então, até nossos dias, a crise e a decomposição do sistema imperialista tem acentuado incessantemente. Essa situação, unida à erupção da Revolução Russa, da Revolução Chinesa e do despertar dos povos coloniais, “marca a crise final do imperialismo”, afirma, equivocadamente, em nosso humilde saber e entender. Tratou-se de uma crise, muito grave, é certo. Mas não foi a crise final porque, lamentavelmente, o que a história demonstrou é que o imperialismo não é algo tão simples de erradicar.
Seguidamente, o texto se pergunta pelas razões do “ódio ianque à Revolução Cubana”. A resposta que ali encontramos é o medo da revolução, da insurreição dos povos contra seus opressores. Entretanto, além da polêmica que a mesma pode suscitar, essa consideração abre portas para uma reflexão muito interessante – e atual, sobretudo atual – acerca das condições do processo revolucionário. Seguindo a tradição marxista, a Declaração distingue entre as condições objetivas e as subjetivas, colocando de maneira taxativa uma tese que desmente toda a imputação de subjetivismo ou voluntarismo, e que é conveniente recordar. Em suas próprias palavras, “as condições subjetivas (...), ou seja, o fator consciência, organização, direção, pode atrasar ou acelerar a revolução segundo seu maior ou menor grau de desenvolvimento, mas, cedo ou tarde, em cada época histórica, quando as condições objetivas amadurecem, a consciência se adquire, a organização se conquista, a direção surge e a revolução se produz”.
Certamente os redatores da Declaração pensariam hoje duas vezes antes de reescrever essa frase. Por quê? Porque se há algo que a história recente da América Latina nos ensinou é que a defasagem entre o amadurecimento das condições objetivas e o das subjetivas tem sido extremadamente marcante. A experiência argentina nesse último ano e meio demonstra o impressionante amadurecimento das chamadas condições objetivas. Mas a agudização das contradições sociais, a mobilização popular, a emergência de novas formas de organização e o enfrentamento não têm tido como resultado, lamentavelmente, o surgimento de uma consciência socialista que identifique com clareza a natureza estrutural dos problemas que o capitalismo argentino gera, nem, muito menos, uma direção à altura dos desafios que a atual conjuntura impõe.
A rígida articulação que o documento propõe ao vincular desse modo as condições objetivas e as subjetivas explica, do mesmo modo, o excessivo otimismo observado em algumas passagens do texto. Assim, por exemplo, afirma que “em muitos países da América Latina a revolução é, hoje, inevitável”. E esse diagnóstico se baseia no jogo de quatro fatores: “as espantosas condições de exploração em que vive o homem americano, o desenvolvimento da consciência revolucionária das massas, a crise mundial do imperialismo e o movimento universal de luta dos povos subjugados.” Devemos esclarecer, no entanto, que ali não se afirmava que a revolução fosse inevitável em todos os países, mas em muitos, o que assim foi somente em alguns casos. O golpe militar no Brasil, em 1964, teve uma natureza preventiva diante da crescente revolta popular que atormentava a direita brasileira e seus sócios imperialistas. Na Argentina, em 1966 e, sobretudo, em 1976, com o terrorismo de Estado, procurou-se impedir uma situação na qual a mobilização popular, combinada, na década de 1970, com o auge de uma guerrilha urbana, colocava em xeque, apesar de sua inorganicidade, os fundamentos da ordem burguesa. Mas em outras latitudes a situação adquiria tonalidades mais definidas. A tentativa revolucionaria liderada por Francisco Caamaño Deño na República Dominicana, em 1965, foi derrotada por obra e graça do banho de sangue causado pela invasão estadunidense, em uma típica manobra imperialista que implicou no desembarque de aproximadamente 40 mil marines para restaurar a ordem subvertida pelos revolucionários dominicanos. No Chile, em 1970, chegava ao poder o governo da Unidade Popular, com Salvador Allende na liderança. Isso representava uma canalização pelas vias da institucionalidade burguesa do impressionante ascenso da luta de massas que, se não chegou a se concretizar no formato clássico de uma revolução, continha um potencial que não passou despercebido pela Casa Branca, que de imediato ordenou pôr em marcha um programa de desestabilização que culminaria, em 1973, com o sangrento golpe militar de Pinochet. Pouco depois, a ascensão dos movimentos sociais e os avanços da luta armada provocariam, em 1979, a derrota militar e política de uma das ditaduras mais tenebrosas da América Latina, a de Anastasio Somosa filho, na Nicarágua, enquanto que, em El Salvador e na Guatemala, a situação não se pintava com cores mais otimistas para as classes dominantes. Em outras latitudes, enquanto isso, processos similares confirmavam, de certa maneira, as previsões da Segunda Declaração. Mencionemos apenas os mais importantes: o Maio francês de 1968, o “outono quente” italiano em 1969, e a frustrada “Revolução dos Cravos” que, em 1974, pôs fim à ditadura fascista de Oliveira Salazar, em Portugal. Por outra parte, e já no Oriente Médio, em 1979, a irrupção das massas iranianas dava lugar, mediante uma inesperada combinação com o fundamentalismo xiita, ao destronamento de um dos baluartes do imperialismo na região, talvez seu gendarme melhor armado e treinado: o Xá do Irã.
Entretanto, se o prognóstico contêm certos elementos excessivamente otimistas, não o era no momento de advertir sobre os perigos que pairavam sobre a nossa região. O documento sinaliza que a “intervenção do governo dos Estados Unidos na política interna dos países da América Latina foi sendo cada vez mais aberta e desenfreada”, coisa que efetivamente aconteceu. E também tem razão quando afirma que “o Comitê Interamericano de Defesa [...] foi e é o ninho onde se incubam os oficiais mais reacionários e pró-ianques dos exércitos latino-americanos, utilizados depois como instrumentos golpistas a serviço dos monopólios”. O papel das missões militares estadunidenses nas nossas capitais, dos cursos de atualização organizados principalmente na Zona do Canal do Panamá e seus similares organizados pela CIA são adequadamente descritos no documento, e o veredicto da história nos anos seguintes não pode senão conceder a razão a ele. Esses instrumentos atuaram tal qual se prognosticou em 1962, como comprova a triste galeria de ditadores que assolaram a América Latina durante décadas.
Era racional esperar algo da Aliança para o Progresso? A declaração insiste em sinalizar o caráter ilusório da ajuda prometida, levando em conta a história do imperialismo nessa parte do mundo e seus interesses atuais. Além disso, não deixa de indicar um fenômeno muito importante como o fracasso moral de seus agentes na Conferência de Punta del Este. Pouco se podia esperar de quem tramou os mais inescrupulosos argumentos e apelou a uma aberta compra de votos para prevalecer na conferência. Sua imoralidade era uma lápide que sepultava, para sempre, a veracidade de suas altruístas promessas. Em Punta del Este, diz o documento, se fez uma grande batalha ideológica entre o imperialismo e a Revolução Cubana, o primeiro representando os monopólios, o intervencionismo, o capital externo, o latifúndio e a ignorância, enquanto Cuba representava os povos, a autodeterminação nacional, a soberania econômica, a reforma agrária e a alfabetização universal, além de muitas outras coisas.
A Conferência foi o certificado de morte para a OEA, convertida num infame “ministério de colônias ianques, uma aliança militar, um aparelho de repressão contra o movimento de libertação dos povos latino-americanos”. Uma organização que fazia caso omisso da contínua perseguição a que Cuba era submetida, aos inúmeros atos de sabotagem de todo tipo e aos ataques armados contra a revolução. Impassíveis e indiferentes ante a aberta agressão, os ministros de relações exteriores da região se reuniram em Punta del Este e, com a bênção da OEA, expulsaram a vítima sem sequer advertir verbalmente os agressores. Enquanto "os Estados Unidos têm pactos militares com países de todos os continentes, [...] com tantos governos fascistas, militaristas e reacionários que existem no mundo, a OTAN, a SEATO e a CENTO, em que agora há que agregar a OEA [...] os chanceleres expulsam Cuba, que não tem pactos militares com nenhum país. Assim, o governo que organiza a subversão em todo o mundo e forma alianças militares em quatro continentes expulsa Cuba, acusando esse país de subversão e de vínculos extracontinentais”. Uma vez mais, o veredicto sem apelação da história outorga toda razão à Segunda Declaração de Havana. A política do imperialismo se modificou em alguma coisa?
O que é que não se perdoa em relação a Cuba? Por que Cuba é acusada de subversiva? O documento elabora alguns argumentos mais específicos: porque transformou em realidade a reforma agrária, acabou com o analfabetismo, expandiu os serviços médicos, nacionalizou os monopólios, armou o povo, recuperou a soberania nacional e concretizou reivindicações amplamente sentidas pelos cubanos. Frente a isso, o que o imperialismo podia oferecer? O que os pobres, os índios, os negros e os camponeses podiam esperar do imperialismo, se este era a causa principal de seus sofrimentos? O texto se interroga, por exemplo, em que “aliança [...] vão acreditar esses povos indígenas, maltratados por séculos, mortos a tiros em ocupações de suas terras, mortos a pauladas aos milhares por não trabalharem mais rápido?”. E o negro? O que podem lhes oferecer aqueles que, no seu próprio país, praticam o mais desenfreado racismo, impedindo que compartilhem sequer um ônibus com os brancos, para não mencionar a segregação nas escolas e nos hospitais? A análise aqui se estende meticulosamente, demonstrando a incongruência entre as promessas imperialistas e seu registro histórico. Esse balanço, que, por um momento, adquire uma contundência angustiante, culmina com um verdadeiro final wagneriano, quando afirma que “neste continente de semicolônias, morrem de fome, de doenças curáveis ou velhice prematura, perto de quatro pessoas por minuto, 5.500 por dia [...]. Duas terceiras partes da população latino-americana vivem pouco, e vivem em permanente ameaça de morte [...]. Enquanto isso, da América Latina flui para os Estados Unidos uma corrente contínua de dinheiro: quatro mil dólares por minuto, cinco milhões por dia [...] Para cada mil dólares que se vão, fica um morto [...] Esse é o preço do que se chama imperialismo!”.
Para a desgraça de nossos povos, esse quadro sinistro não fez nada além de se agravar desde sua formulação original em 1962. Passaram, desde então, a Aliança para Progresso, a “década do desenvolvimento” e, de maneira cada vez mais acentuada, as políticas ortodoxas e neoliberais do Consenso de Washington, com os as consequências que estão à vista e que dispensam comentários. A justeza da análise contida na Segunda Declaração, que em seu tempo muitos desqualificaram, acusando-a de ser a expressão ressentida da “derrota” sofrida em Punta del Este, se potencializa quando se examinam algumas de suas previsões. Uma delas, a que antecipa que “os Estados Unidos preparam para a América Latina um drama sangrento”, se converteu em dolorosa realidade em pouco tempo, quando nossa região se converteria em um conjunto de regimes militares que fizeram do terrorismo de Estado seu princípio constitutivo. Os assassinatos, desaparecimentos, sequestros de pessoas, roubo de crianças, roubo das residências das vítimas, torturas, estupros e campos de extermínio se converteram em práticas cotidianas, contanto para isso com a justificativa da Doutrina da Segurança Nacional elaborada pelo Pentágono e por outras agências do governo estadunidense. Além disso, essas agências participaram abertamente no feroz trabalho repressivo, desde o treinamento de militares em algumas bases do Comando Sul, onde se instruíam as mais recentes técnicas de tortura, até o fornecimento de armas, equipamentos, cobertura internacional e dinheiro para levar à prática o chamado “combate à subversão”.
Perspectivas da revolução socialista
As últimas páginas da Declaração culminam com um chamado à revolução. O diagnóstico foi suficientemente eloquente e preciso para acabar com qualquer expectativa em relação à possibilidade de que o capitalismo produza outros frutos diferentes dos já conhecidos. Se bem que no texto não se descarta a possibilidade de alguns avanços políticos no marco das instituições estabelecidas, também se sinaliza explicitamente que, na situação de nossos países, somente por exceção tais possibilidades poderiam ser oferecidas. O texto nos diz “onde estão fechados os caminhos dos povos, onde a repressão aos operários e camponeses é feroz, onde é mais forte o domínio dos monopólios ianques, [...] não é justo nem correto entreter os povos com a vã e acomodada ilusão de arrancar, por vias legais que nem existem nem existirão, às classes dominantes [...] um poder que os monopólios e as oligarquias defenderão a sangue e fogo com a força de suas políticas e de seus exércitos”.
A afirmação é de uma contundência extraordinária, dotada do rigor de um silogismo inevitável. A questão central é a caracterização, em cada conjuntura particular, das condições políticas imperantes e, particularmente, a existência ou não de caminhos abertos ou fechados às aspirações dos povos. O liberalismo e, em geral, todas as variantes do pós-modernismo, seja de origem socialista ou não, coincidem nas ilimitadas possibilidades que, sempre e em todo lugar, o capitalismo contemporâneo ofereceria. Os primeiros por uma convicção tradicional e os segundos, os pós-modernistas, por sua recente capitulação, por sua “conversão” à ideologia dominante. Em virtude disso, existe quem – como Chantal Mouffe, Ernesto Laclau e Ludolfo Paramio, para citar apenas alguns dos mais conhecidos – propõe “aprofundar a democracia”, esquecendo o fato de que o capitalismo impõe limites para expansão da democracia, tanto em seus aspectos formais quanto nos conteúdos substantivos da mesma. Postulam uma “democratização da democracia capitalista”, o que equivaleria, na geometria, descobrir a quadratura do círculo. Porque, na realidade, não existe democracia capitalista, ou burguesa. O que existe, em alguns países, é um capitalismo democrático, algo inteiramente diferente do anterior. Porque, se a expressão “democracia capitalista” assume que o substantivo é a democracia e que as características capitalistas são apenas um aditamento facilmente removível, com a frase “capitalismo democrático” está se sinalizando que, na experiência concreta das democracias “realmente existentes”, o substancial é o capitalismo enquanto que o democrático é uma incrustação produzida pelas lutas populares ao longo de séculos e imposta pela força à dominação burguesa [4].
A Segunda Declaração de Havana coloca um tema de excepcional importância, que exige um exame detalhado de cada situação. Não é exagero recordar nestas páginas a famosa sentença de Lênin, quando dizia que “o marxismo é a análise concreta de uma situação concreta”. Assim sendo, somente uma análise concreta de cada conjuntura particular pode determinar a existência ou não de vias pelas quais se pode avançar e até onde se pode chegar por esse caminho. Na caracterização que a Declaração fazia da conjuntura latino-americana no início dos anos de 1960 se estabelecia cuidadosamente, como uma clausula inicial, a necessidade de se distinguir situações que, mesmo não nomeadas, são nitidamente percebidas nos silêncios do texto. Por um lado, aquelas situações que demonstravam de forma conclusiva que os caminhos populares estavam fechados, e que constituíam a norma predominante na região. Mas havia outras situações, entre as quais se sobressaiam o Chile e o México, que representavam um caso excepcional, onde talvez poderiam ser esperados certos progressos significativos trabalhando no marco de uma institucionalidade burguesa, mas profundamente modificada pela eficiência dos longos anos de lutas populares. Colocava-se assim o dilema “reforma ou revolução”. O texto decide pela segunda porque não vê muitas possibilidades na primeira, salvo em situações muito, mas muito especiais. E, uma vez mais, o veredicto da história parece lhe dar razão. Porque, a via reformista, tentada principalmente no Chile de Salvador Allende, terminou com um banho de sangue e o início de uma das mais selvagens ditaduras conhecidas na América Latina. Outras tentativas, mais heterodoxas, também foram afogadas na sua infância. Por exemplo, a tentativa presidida pelo General Juan José Torres, na Bolívia, no início dos anos de 1970. Mas o certo é que a via revolucionária tampouco chegou a triunfar. Já nos referimos ao caso da República Dominicana, projeto tragicamente frustrado e que culminou com a ocupação militar da ilha por parte das tropas estadunidenses. A revolução também teve sua oportunidade na Nicarágua, mas foi cortada na raiz ante a reiteração da mais absoluta determinação do imperialismo de impedir, a qualquer custo, a consolidação do sandinismo e do triunfo da revolução. E teve também El Salvador, onde a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional precisou lutar, como os sandinistas, não somente contra as classes dominantes locais, mas também contra a formidável resistência imposta pela maior superpotência jamais surgida na história da humanidade, os Estados Unidos.
As lições que podemos tirar dessa história é que, no nosso continente, as reformas são sufocadas com toda a força da contrarrevolução e com a onipresente colaboração do imperialismo. Que as mais tímidas expressões de reformismo iniciadas por alguns governos da região foram agredidas com sanguinária ferocidade pelos elementos conservadores de nossas sociedades. Quais são os caminhos que hoje se encontram abertos na América latina, especialmente na Argentina? Passaram-se mais de 40 anos desde o diagnóstico feito pela Segunda Declaração. Como avançar num projeto que objetive a abolição de toda a forma de exploração do homem pelo homem? Como avançar para uma nova sociedade, emancipada de todos os vestígios que o capitalismo produziu ao longo dos séculos?
Obviamente, a Declaração não pode dar resposta a essa questão em relação a cada país e a cada situação particular. Mas oferece um guia muito sugestivo, de especial relevância para os argentinos, levando em conta a nossa secular incapacidade de construir uma alternativa progressista capaz de colocar um ponto final à dissolução nacional. E esse guia é um chamado enérgico à unidade de todos os que lutam por uma sociedade melhor. Assim, nos afirma que “o divisionismo, produto de toda classe de idéias falsas e de mentiras; o sectarismo, o dogmatismo, a falta de amplitude para analisar o papel que corresponde a cada camada social, a seus partidos, organizações e dirigentes, dificultam a unidade de ação imprescindível entre as forças democráticas e progressistas de nossos povos”. Unidade de ação que não conseguimos construir e que se manifestou, em toda sua insensatez, nas eleições presidenciais de 2003, quando o país pedia aos gritos uma alternativa ante o continuísmo das fórmulas políticas tradicionais e o campo progressista se fragmentou em mil pedaços, como um espelho quebrado que, em sua desintegração, refletia a tragédia de nossa própria decadência como nação. E prossegue a Segunda Declaração dizendo que “na luta anti-imperialista [...] é possível mobilizar a imensa maioria do povo na meta da liberação [...] Nesse amplo movimento podem e devem lutar juntos pelo bem de suas nações, pelo bem dos seus povos e pelo bem da América, desde o velho militante marxista até o católico sincero que não tenha nada a ver com os monopólios ianques e os senhores feudais da terra”. Tomara que a publicação desse iluminado documento, produto de uma extraordinária direção política que soube concentrar sua lucidez para analisar o existente com uma grande dose de coragem e vocação utópica para transformá-lo, sirva para estimular um debate mais do que nunca necessário em nossos países e para a elaboração de políticas de esquerda capazes de colocar um ponto final ao holocausto social que está presente em Nossa América.
[1] Este texto é o “Prólogo” ao livro Primera y Segunda Declaración de La Habana (Buenos Aires: Ediciones Nuestra América, 2003).
[2] Examinamos criticamente a teorização de Michael Hardt y Antonio Negri no nosso Imperio & Imperialismo (Buenos Aires: CLACSO, 2002).
[3] Roberto Fernández Retamar, Todo Caliban (La Habana: Casa de las Américas, 2001).
[4] Examinamos esse assunto in extenso no nosso Tras el Búho de Minerva. Mercado contra democracia en el capitalismo de fin de siglo (Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2000) y en Estado, Capitalismo y Democracia en América Latina (Buenos Aires: CLACSO, 2003)
Traduzido pelo Coletivo Paulo Petry, núcleo da UJC/PCB formado por estudantes de Medicina em Cuba.
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