Aline Nunes F. de Souza
Técnica em Assuntos Educacionais (UFF) e Mestranda em Educação (UFRRJ)
nineferreirinha@bol.com.br
Viviane de Souza Rodrigues1
Técnica em Assuntos Educacionais (UFF) e Mestranda em Educação (UFRRJ)
nineferreirinha@bol.com.br
Viviane de Souza Rodrigues1
Técnica em Assuntos Educacionais (UFF) e Mestre em Educação (UFF)
Introdução
O presente artigo visa apontar alguns aspectos que norteiam as reformas na educação superior brasileira processadas tanto no período da ditadura militar como mais recentemente no governo Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010), tendo como pressuposto a existência de um “padrão dependente de escola superior” (FERNANDES, 1975) que atravessa a história da educação superior em nosso país.
Desse modo, compreendemos que as mudanças educacionais engendradas sob o governo ditatorial, as anteriores e as atuais reproduzem as estruturas arcaicas do passado remoto e/ou recente sem romper com as amarras da dependência econômica e cultural de nossa sociedade, cultivadas por diferentes instâncias sociais, como a educação superior. Isso porque a operacionalização do capitalismo em nosso país é marcada por um desenvolvimento desigual e combinado, articulado tanto pela burguesia internacional para reprodução do capital frente as suas crises cíclicas, bem como pela burguesia interna dos países dependentes para atendimento privado de seus interesses. Esse mecanismo é um traço estruturante que perpassa o desenvolvimento capitalista de nosso país direcionando e organizando os rumos da educação superior brasileira.
Nesse sentido, na primeira sessão desse capítulo buscamos sinalizar os resultados da imposição da Reforma Universitária estabelecida pela lei 5.540/68 durante a ditadura militar no Brasil (1968-1985), expondo os reflexos e consequências das mudanças introduzidas por esta nas universidades públicas brasileiras e sua estreita ligação com a política educacional e com o projeto do governo militar de implantação de uma economia capitalista dependente.
Na segunda e última sessão apresentamos de forma sintética as alterações mais recentes na política de educação superior no governo Luís Inácio Lula da Silva que continuou e aprofundou tanto a nossa condição de país capitalista dependente, bem como um padrão dependente de educação superior. Em destaque, as suas ações para expansão de vagas no setor privado e nas universidades públicas, seja para garantia de mercado para aquela, seja de precarização desta, mas ambas sob um processo de certificação em larga escala.
- A Reforma Universitária do período da ditadura militar no Brasil (1964-1985)
O início dos anos 60 do século XX foi problemático para as elites brasileiras, pois o país enfrentava uma crise econômica e política de grandes proporções. Esta crise de acordo com Mendonça e Fontes (2006: 5) (...) significa a ruptura política com o populismo e o aprofundamento das tendências econômicas preexistentes e forneceu a moldura para algumas transformações expressivas na sociedade e nos rumos do capitalismo brasileiro. Até então havia uma espécie de acordo entre diversos grupos classistas nacionais em prol da industrialização do país. A burguesia nacional e internacional, o operariado, as forças de esquerda, as classes médias, entre outros grupos se uniram em torno do projeto de industrialização do Brasil, porém, com motivos divergentes que os moveram na mesma direção. Quando este objetivo parecia alcançado, os grupos se dividiram novamente e em busca de seus novos objetivos. Os operários e as forças de esquerda passaram a clamar por reformas de base (tributária, educacional, financeira, agrária, etc.), nacionalização de empresas, entre outros, já a burguesia buscou consolidar seu poder e evitar que este fosse posto em risco.
A partir do ano de 1961 o Brasil passou a ser governado por João Goulart, que pretendia estabelecer reformas no país que não agradavam as classes dominantes. Foi considerado um governo nacionalista que acabou sendo destituído pelo golpe militar, iniciado no alvorecer do dia 1º de abril de 1964, golpe este que posteriormente enveredou pelo caminho do fechamento político e da instauração de uma ditadura militar que, de acordo com Germano (2005: 48), (...) foi uma intervenção duradoura, mediante a implantação de um regime político, de cunho ditatorial, num momento em que os militares (em associação com as classes dominantes) estiveram diretamente à frente do aparelho de Estado. Este golpe foi fruto da articulação de setores da classe dominante formado pela burguesia nacional e internacional, latifundiários e militares, unidos a uma camada de intelectuais e com o apoio irrestrito estadunidense. Apesar de iniciado e apoiado por um grupo de civis, foi executado pelos representantes das Forças Armadas, em especial do exército, que assumiram o controle do poder Executivo no nosso país por um extenso período de 21 anos.
O golpe de 1964 instituiu no nosso país um regime ditatorial através de um regime repressivo e violento que visava “eliminar” a subversão e o perigo comunista e atender aos anseios e interesses da burguesia nacional e internacional. A contradição entre o discurso liberal-democrático dos detentores do poder e a prática militar repressora era latente.
O período denominado ditadura militar no Brasil (1964-1985) foi uma época de muitas prisões, inquietação e grande silêncio nos meios estudantis, sindicais, artísticos e intelectuais. Nele houve uma espécie de acordo entre o Estado e a burguesia: ela abria mão dos controles políticos tradicionais e de instrumentos como a liberdade de imprensa, o pluripartidarismo e o habeas corpus; ele, o Estado, por seu lado, mantinha a ordem a qualquer custo e assumia os interesses dos empresários como se fossem os de toda a Nação.
Durante o governo dos militares no Brasil houve, por parte destes, interferência direta na educação, adotando-se uma política educacional fundamentada nos seguintes eixos: 1) controle político e ideológico da educação escolar, em todos os níveis; 2) estabelecimento de uma relação direta e imediata, segundo a “teoria do capital humano” (ARAPIRACA: 1982), entre educação e produção capitalista; 3) incentivo à pesquisa vinculada à acumulação de capital; 4) descomprometimento com o financiamento da educação pública e gratuita, negando, na prática, o discurso de valorização da educação escolar, e concorrendo decisivamente para a privatização do ensino, transformado em negócio rendoso e subsidiado pelo Estado (GERMANO: 2005, pp. 105/106).
Foi neste contexto que acabou sancionada a lei de Reforma Universitária, a lei 5.540/68, baseada nos interesses do regime estabelecido, dente eles: contenção do movimento estudantil universitário, incentivo a medidas de privatização do nível superior de ensino no nosso país, reduções de investimentos nas universidades públicas gratuitas, entre outros. Esta reforma proposta e instaurada pelo regime militar brasileiro trouxe consigo uma série de medidas que mudaram inúmeros aspectos das universidades públicas nacionais.
Antes da imposição da lei 5.540/68 que estabeleceu a Reforma Universitária no nosso país, o setor privado que atuava no ensino superior já estava em busca da demanda não atendida pelas insuficientes vagas oferecidas nas universidades públicas nacionais. Por conta disso, os empresários do ensino privado que eram maioria no Conselho Federal de Educação “esqueceram” a orientação relacionada a fazer da universidade o modelo preferencial de organização do nível superior brasileiro. Estes mesmos conselheiros não tiveram problemas em criar todas as facilidades possíveis para que os estabelecimentos particulares proliferassem, mesmo sem instalações adequadas, sem laboratórios e bibliotecas, com professores despreparados. Assim, a ideia de se fazer da universidade a regra do ensino superior no nosso país, como na maioria dos outros países do mundo, foi atropelada pela própria política educacional criada pela ditadura, política esta que fora direcionada por organismos internacionais, principalmente estadunidenses, e que serviu como um dos principais pilares para a intensificação do padrão de país capitalista dependente durpectos das Ul universitário, o regime ditatorial.
Assim sendo, podemos afirmar que a presença cada vez maior e mais influente do setor privado na expansão do ensino superior no Brasil foi impulsionada durante o período da ditadura, já que seus representantes faziam parte dos quadros “aliados” aos militares instalados no governo do nosso país. Estes representantes, defensores do privatismo na educação, buscaram desmontar ou, pelo menos, desacelerar o crescimento da rede pública de ensino. E, mais ainda, trataram de possibilitar que a utilização de verbas públicas destinadas ao ensino fosse transferida às instituições particulares. Foi, então, no nível superior que a acumulação de capital no campo do ensino se fez de forma mais intensa e escandalosa. Como afirma Cunha e Góes (2002, p. 48):
O aumento da procura de ensino superior nos anos 60, ao mesmo tempo em que o governo federal freava o crescimento das universidades públicas (e gratuitas) fez com que aumentasse enormemente a demanda pelo ensino particular (pago). O governo recebia muito bem esse crescimento das escolas particulares, pois isso facilitava sua desobrigação para com a manutenção do ensino público e gratuito.
Do ponto de vista teórico, a política educacional do regime militar se pautou na “teoria do capital humano” (Arapiraca: 1982). Nesse sentido, tentou estabelecer uma relação direta, imediata e mesmo de subordinação da educação à produção e tentou também implementar uma política descompromissada com o financiamento da educação pública e gratuita concorrendo decisivamente para a privatização do ensino, transformado em negócio lucrativo e, em muitos momentos, subsidiado pelo Estado. Esta teoria de origem estadunidense buscou direcionar a política social dos países capitalistas dependentes propondo que o processo de educação escolar fosse considerado como um investimento que pudesse resultar em maior produtividade. As habilidades e os conhecimentos obtidos com a escolarização formal representariam o “capital humano” que cada trabalhador se apropriava. A teoria propunha que bastaria investir nesse capital para que o desenvolvimento pessoal e social acontecesse. Enfim, ela incentivou os aspectos quantitativos do sistema escolar, buscando obter mais rentabilidade com maior economia de recursos.
A reforma do ensino nos anos 1960 e 1970 vinculou-se aos termos precisos do novo regime. Desenvolvimento, ou seja, educação para a formação de “capital humano”, vínculo estrito entre educação e mercado de trabalho, modernização de hábitos de consumo, integração da política educacional aos planos gerais de desenvolvimento e segurança nacional, defesa do Estado, repressão e controle político-ideológico da vida intelectual e artística do país (SHIROMA: 2007, p. 29). Todo este aparato educacional influenciado diretamente pelos estadunidenses refletia a relação de dependência do capitalismo brasileiro em relação aos países ditos desenvolvidos.
A partir de 1964, acordos foram feitos entre o Ministério da Educação (MEC) e a United States Agency for International Development (USAID), abrangendo todos os níveis do ensino. Além disso, assessores norte-americanos, a serviço do MEC, como Rudolph Atcon, se envolveram também na definição da Reforma Universitária. Desse modo, a tônica do chamado Relatório Atcon (1966) recaía sobre a necessidade de disciplinar a vida acadêmica, coibindo o protesto, reforçando a hierarquia e a autoridade. Este relatório enfatizou a importância de racionalizar a universidade, organizando-a em moldes empresariais, privilegiando, assim, a questão da privatização do ensino. Em consonância com as afirmações de Fernandes (1989, p. 85):
O padrão dependente de escola superior é aprofundado na medida em que passava a subordinar a universidade às diretrizes internacionais marcadas pela lógica privatizante. Não por acaso, ao mesmo tempo, descortinou-se um grande incentivo por parte do Estado à privatização da educação. Desta forma: os recursos economizados através dessas ‘políticas’ são deslocados para o ensino universitário particular, a indústria bélica e os incentivos à indústria privada e a uma ‘tecnologia avançada’ de efeitos demonstrativos.
Somando-se ao Relatório Atcon, encontra-se o Relatório Meira Mattos, presidido por um militar brasileiro, que apresentava a necessidade de ampliar o sistema de ensino superior existente, mas, ponderando sobre a escassez de recursos, recomendava racionalidade nos investimentos, entretanto este relatório apontou suas principais sugestões no sentido de organizar dispositivos que permitissem intervir na universidade e estudar os movimentos estudantis de modo a identificar suas tendências e estabelecer as melhores formas de disciplinamento dentro da instituição.
Mais tarde, no ano de 1968, um acontecimento de destaque ocorreu: na noite do dia 13 de dezembro, o governo militar decretou o AI-5, instituindo verdadeiramente a ditadura “sem restrições”, o terror do Estado. Podendo se afirmar que a reforma educacional estava na ordem do dia.
Contudo, não é sensato afirmar que a Reforma Universitária de 1968 tenha se traduzido numa incorporação pura e simples das recomendações dos Relatórios Atcon e Meira Mattos e/ou numa imposição da USAID através dos seus grupos de assessores que trabalhavam junto ao MEC. É preciso relativizar a influência de tais assessores, tendo em vista o movimento interno em favor da modernização da universidade existente desde fins da década de 1940. Muitas das reivindicações de professores e dos movimentos estudantis universitários foram incorporadas à lei de Reforma Universitária, mas acabaram sendo adequadas pelo governo ditatorial aos seus interesses. De acordo com Fernandes (1975, pp. 52/60):
Este tipo de reorganização da educação superior de ‘universidade conglomerada’ pelo fato de continuar a reproduzir o ‘padrão brasileiro de escola superior’ de transmissão institucional de ‘conhecimentos e técnicas absorvidos do exterior’ e de difusão cultural de um conservadorismo exacerbado de bases arcaicas oligárquicas. Nesse sentido, a reconfiguração funcional da educação superior travestida de reforma universitária foi um meio estratégico do governo ditatorial de equacionar o fluxo modernizador e a pressão social, mas que não significou alterações substanciais de atendimento à demanda de reconstrução social e, portanto, a uma universidade ‘integrada e multifuncional’.
Algumas destas modificações estabelecidas pela lei de Reforma Universitária já estavam presentes na experiência da UnB, considerada avançada e progressista naquele período. É o caso do combate ao desperdício, a defesa pela racionalização e aumento da produtividade acadêmica, a adoção dos departamentos como unidades básicas, o estabelecimento do sistema de créditos e o período semestral, por exemplo. Todas estas inovações foram implementadas pela lei 5.540/68, visando minar o movimento estudantil e favorecer a rede privada de ensino, de acordo com o planejamento educacional do governo militar brasileiro.
Para SAVIANI (2006, pp. 86/87) a estratégia do “autoritarismo desmobilizador” aplicada à educação refletiu-se, também, na estrutura do ensino superior preconizada pela Reforma Universitária. Com efeito, a lei instituiu a departamentalização e a matrícula por disciplinas com o seu corolário, o regime de créditos, generalizando a sistemática do curso parcelado. Ora, tais dispositivos, aparentemente apenas administrativos e pedagógicos, tiveram, no entanto, o significado político de provocar a desmobilização dos alunos que, não mais organizados por turmas que permaneciam coesas durante todo o curso, ficaram impossibilitados de se constituírem em grupos de pressão capazes de reivindicar a adequação do ensino ministrado aos objetivos do curso, bem como a consistência e relevância dos conteúdos transmitidos.
Podemos, por conseguinte, afirmar que a Reforma Universitária do Regime Militar representou, sobretudo, uma incorporação desfigurada de experiências e demandas anteriores. Estas foram acrescidas das recomendações dos assessores da USAID, as privatistas de Atcon e as disciplinadoras de Meira Mattos, criadas para analisar e para propor modificações no ensino superior brasileiro. Todo este aparato teórico serviu para tentar inviabilizar, a todo custo, um projeto de universidade crítica e democrática ao reprimir e despolitizar o espaço acadêmico.
Então, a tão sonhada e planejada Reforma Universitária, do ângulo da sociedade civil e da União Nacional dos Estudantes (UNE), desde a década de 1940, foi outorgada pelo governo militar seguindo seus ditames, sem levar em consideração todas as aspirações democráticas e de autonomia que nortearam o movimento da década de 1940.
Em consonância com as afirmações já citadas, estava o descaso do Estado para com a educação, acentuado pela ditadura, que fez com que o Brasil se convertesse num dos países em que relativamente menos se aplica nesse setor. E, mais do que isso: a desobrigação do Estado para com a manutenção do ensino público e gratuito se tornou a contrapartida perversa do subsídio ao setor privado que buscava, no campo do ensino, acumulação de capital e influência ideológica.
Neste contexto, podemos afirmar que, a corrente privatista, principalmente do ensino superior, proclamava a necessidade de expandir o ensino e, ao mesmo tempo, de conter despesas, apontando a gratuidade do ensino como um grande obstáculo e um fator impeditivo de maior acessibilidade ao nível superior. De acordo com esta “ideologia” o mercado controlaria a educação e esta deveria ser considerada como uma mercadoria. Isto mostra que o capital privado estava de pleno acordo com a política econômica e educacional do regime militar, principalmente no nível superior.
- A Reforma da educação superior no governo Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010)
A dinâmica de desenvolvimento desigual e combinado e a inserção capitalista dependente de nosso país na economia mundial tem se processado ao longo dos anos com reflexos na educação brasileira. Os traços estruturantes que atravessam a história da educação superior se reproduzem e/ou se aprofundam na atualidade, como buscaremos destacar nesta sessão sobre a política educacional do governo Luís Inácio Lula da Silva para este nível educacional.
As alterações mais recentes, a partir dos anos de 1990, oriundas dos sujeitos coletivos do capital, sobretudo do Banco Mundial com diretrizes para os países de economia periférica, voltaram-se para a operacionalização da Reforma do Estado e as políticas de formação direcionadas à educação superior. Mais especificamente em nosso país, podemos apontar os ajustes estruturais e fiscais processados a partir dessas diretrizes, que ganharam repercussão através de ações de privatização, desregulamentação financeira, liberação comercial e reformas em diferentes sistemas de serviços públicos, iniciadas em certa medida pelos governos de Fernando Collor de Melo e Itamar Franco, sendo posteriormente ampliadas através do governo Fernando Henrique Cardoso pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE). Sob um caráter marcadamente privatista, o Estado alterou em grande medida a sua função de promotor a regulador e/ou subsidiário das funções dantes exercidas. No campo educacional em geral, tais alterações diminuíram as fronteiras entre o público e o privado com um forte apelo para que a educação deixasse de ser concebida como um serviço público estatal.
O governo Luís Inácio Lula da Silva, no período de 2003-2010, buscou se alinhar às diretrizes macroeconômicas ditadas pelo capital aos países periféricos trazendo elementos de continuidade e novidades em sua política governamental. Nesse sentido, identificamos diferentes ações processadas pelo MEC, em consonância com os pressupostos difundidos pelos organismos internacionais que têm acarretado no aprofundamento de nossa subordinação sociocultural, em destaque, no referido governo.
O projeto do governo Luís Inácio Lula da Silva para a educação superior foi executado sob diferentes faces: a de caráter privatista e de inserção da educação no mercado econômico; e a face de maior precarização da universidade pública, severamente atacada na sua perspectiva histórica, oriunda da luta dos movimentos a ela vinculada, e de suas ações de ensino, pesquisa e extensão. Este processo foi realizado pelo governo de forma diversificada, também sob o esforço de alianças entre as diferentes classes e frações sociais, no entanto, com caráter marcadamente privatista, mas falseado em grande parte pelo discurso de acessibilidade pública.
As políticas para a educação deste governo têm se pautado na manutenção de uma visão fiscalista/reguladora especialmente quanto aos investimentos em educação. O que tem provocado restrições aos investimentos, mas, ao mesmo tempo, uma maior intervenção do Estado e especificamente da União no financiamento e na expansão da educação superior, ainda que com um enfoque gerencialista2, nos termos do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), e sem dar conta das necessidades da expansão.
A intensa reformulação da educação superior neste governo, conforme aponta Lima (2009), foi operacionalizada a partir, sobretudo, de ordenamentos legais, dentre eles gostaria de destacar: 1) a criação em 2003, por decreto, do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para analisar a situação da educação superior brasileira e apresentar um plano de ação para a reestruturação e expansão das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES); 2) a PEC 217/2003 que versava sobre as fontes de financiamento das universidades; 3) o projeto de Lei Complementar nº. 118 sobre a Lei Orgânica da Autonomia Universitária; 4) a Lei nº 10.861/2004 que instituiu o Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior (Sinaes); 5) a Lei nº 11.096/2005 que criou o Programa Universidade para Todos (ProUni), com a proposta de oferecer a alunos de baixa renda bolsas de estudo em faculdades privadas, concedendo a essas isenção de alguns tributos fiscais; 6) a Lei nº 10.973/2004 de Inovação Tecnológica que versa sobre o estabelecimento de parcerias entre universidades públicas e empresas; 7) o Projeto de Lei nº 3.627/2004 com a criação do Sistema Especial de Reserva de Vagas; 8) a Lei nº 11.079/2004 com o Projeto de Parceria Público-Privada (PPP) que abrange um vasto conjunto de atividades governamentais; 9) o Decreto nº 5.205/2004, que regulamenta as parcerias entre as universidades federais e as fundações de direito privado; 10) o Projeto de Lei nº 7.200/2006 que trata da Reforma da Educação Superior e se encontra no Congresso Nacional; 11) o Decreto nº 5.800/2006 que instituiu o sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB); 12) o Decreto de nº 6.096/2007 que criou o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI); 13) a Portaria Interministerial nº 22 MEC/MP em 2007 que instituiu o “banco de professores-equivalentes” em consonância com a política do REUNI; 14) a Medida Provisória nº 435/2010 que busca legalizar as relações já existentes na universidade com as fundações de apoio; 15) o Decreto nº 7232/2010 que instituiu um mecanismo de gerenciamento do quadro dos servidores técnico-administrativos estabelecendo a possibilidade das IFES reporem as vacâncias existentes no seu quadro sob fiscalização do MEC; 16) o Decreto nº 7233/2010 que trata sobre a desobrigação de recolhimento dos recursos financeiros das IFES ao final de cada exercício pelo Tesouro Nacional; 17) o Decreto nº 7234/2010 com a criação do Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES); e 18) o Projeto de Lei 1749 que autoriza a criação de uma empresa pública de direito privado, chamada de empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, que faculta a prestação serviços à saúde e apoio administrativo aos hospitais universitários.
A política de educação superior do governo Luís Inácio Lula da Silva tinha como pauta principal a expansão. A ampliação de vagas se iniciou ainda no ano de 2003 através do Projeto Expandir do MEC, com previsão de investimento de R$ 592 milhões. O objetivo era expandir e interiorizar a educação superior no Brasil, criando, até 2006, 10 novas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) e 40 novos campi. Os dados dos Censos do INEP registram que, em 2003, quando iniciou o Projeto Expandir, havia 121.455 vagas nas Instituições Federais de Ensino Superior, e ao final do Projeto, em 2006, registrou 144.445 vagas (INEP: 2003; 2006).
A expansão também foi praticada pela criação de vagas públicas em instituições de ensino superior privadas com o PROUNI3 e a ampliação da modalidade de educação à distância (LIMA: 2007). O discurso oficial do governo proclamava que tais ações promoveriam ampliação de vagas na educação superior à população, mas, na verdade, como o caso do PROUNI, foi mais um mecanismo do governo voltado para garantia dos interesses do setor privado, visto que as IES privadas que tinham experimentado uma expansão recorde nos últimos anos, deparavam-se agora com uma crise frente à inadimplência generalizada do alunado, a ociosidade de vagas e uma crescente desconfiança em relação aos seus diplomas. Desta forma, as vagas públicas do PROUNI oferecidas no setor privado foram a saída encontrada, tendo este mecanismo propiciado renúncia fiscal a todas IES privadas, já que, até então, somente as instituições filantrópicas tinham esta prerrogativa.
Este programa, inicialmente, criou 116.339 novas vagas para estudantes de baixa renda, com oferta de 112.275 bolsas integrais e parciais, além de 4.064 bolsas reservadas pelas instituições filantrópicas de ensino. No programa foram incorporadas políticas de ações afirmativas, através da oferta de 49.484 bolsas no sistema de cotas étnico-raciais, como também com bolsas para professores da rede pública. Em 2011 foram oferecidas cerca de 250 mil bolsas para os dois semestres deste ano4.
Leher (2004) ao analisar a implantação do PROUNI salienta que tal programa se alinha as diretrizes dos organismos internacionais, como defende o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC) - através do Acordo Geral de Comércio de Serviços, na medida em que altera radicalmente as fronteiras entre o público e o privado, mormente por meio das Parcerias Público-Privado. Este fato se revela como mais um mecanismo dentro do escopo de privatização de esferas e serviços públicos, sob um discurso falseado de argumentos ora de democratização de acesso ora de garantia de qualidade pela “eficiência e competitividade” do setor privado em detrimento da administração pública.
Quando o Executivo apresenta o Programa Universidade para Todos (PROUNI) para a sociedade, o que é mostrado é sobretudo a imagem de que, doravante, os muito pobres, os negros e os egressos das escolas públicas finalmente terão acesso à educação superior. Somente com esforço teórico e analítico, é possível concluir que a sua essência é o estabelecimento de Parcerias Público-Privado também no campo da educação (ibidem: 871).
A ampliação da educação à distância na educação superior foi uma das bandeiras, mas que ganhou maior amplitude em 2006. Lima (2004) ressalta que desde o governo Fernando Henrique Cardoso este tem sido um mecanismo de massificação deste nível educacional, que também se utiliza do discurso do uso de novas tecnologias da informação e comunicação (NTIC) para democratização de acesso, todavia, na verdade, tem se relacionado diretamente à comercialização destes produtos5 como previsto e desejado pelo documento do Banco Mundial de 1999.
A partir de julho de 2005, as ações de expansão da educação superior foram intensificadas quando Fernando Haddad assumiu a gestão do MEC. As principais ações foram à instituição do sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB), a continuação do Programa Expandir e o Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI). Além disso, o PROUNI continuou a ser ampliado e o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES) sofreu algumas alterações, principalmente para atuar junto ao PROUNI em que as bolsas parciais de 50% foram complementadas com o financiamento do FIES.
O sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB) foi instituído pelo Decreto 5.800, de 8 de junho de 2006, como mais uma ação da política para expansão da educação superior através da educação à distância nas universidades públicas (federais, estaduais e municipais) e os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, voltadas principalmente para a oferta de cursos de licenciatura. Atualmente a UAB tem como prioridade a formação de professores da educação básica, para os quais estão reservadas 50% das vagas dos cursos da UAB. Para 2010 foram previstos mil pólos e cerca de 130 mil vagas6. Além do que salientamos acima sobre a educação à distância a partir das análises de LIMA (ibidem) é importante destacar que neste momento se afirma como mais um meio de privatização da educação superior, sob o discurso de ampliação de acesso a este nível educacional, na medida em que a EAD está sendo ofertada em sua maioria pelas IES privadas. De acordo com o censo de 2009 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) as vagas oferecidas na EAD totalizavam 1.561.715, sendo que destas vagas ingressaram7 259.609 alunos nas IES públicas e 665.429 nas instituições privadas.
Já o REUNI ganhou maior amplitude na política de expansão da educação superior nas universidades públicas. O mesmo foi instituído pelo Decreto de nº 6.096, de 24 de abril de 2007, tendo como objetivo a ampliação do acesso à educação superior, no nível de graduação, pelo aproveitamento da estrutura física e de recursos humanos existentes nas universidades federais. Com o REUNI, o MEC previa, já para o ano de 2009, a oferta de mais de 227 mil vagas na graduação nas universidades públicas federais, o dobro em relação aos números de 2003, quando a oferta foi de 113.938 vagas.
A proposta do REUNI encontra grandes similitudes com o “Processo de Bolonha”, que se iniciou na Europa em 1999, com implantação de um sistema de ciclos de formação e que tinha como meta o estabelecimento do Espaço Europeu de Ensino Superior até 2010. Em geral, busca criar uma competitividade do Sistema Europeu de Ensino Superior, um espaço de mobilidade acadêmica e de empregabilidade no Espaço Europeu (Declaração de Bolonha: 1999). Este tem sido o discurso oficial, todavia, a operacionalização deste “Processo” tem se realizado pela venda de serviços educacionais sob um forte viés de mercantilização da educação superior.
Por outro lado, o REUNI tem sua origem no Brasil através do “Projeto Universidade Nova”, elaborado pelo reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que tem como objetivo central a criação de Bacharelados Interdisciplinares (BI) através de currículos flexíveis, com cursos de formação geral que possam servir de requisito para a graduação de carreiras profissionais e para a formação acadêmica de pós-graduação. É importante salientar que as mudanças na estruturação do ensino proposta pelo “Projeto Universidade Nova” se assemelham às alterações oriundas do “Processo de Bolonha”. Assim, vemos que ambos incidem diretamente no projeto do REUNI, que busca alterar as universidades nestes moldes, condicionando o financiamento ao cumprimento de metas e prazos através de um contrato de gestão, o que reitera a visão gerencialista do governo que citamos anteriormente.
As principais diretrizes do REUNI são: a) expansão de vagas de ingresso e ocupação de vagas ociosas, sobretudo, no período noturno; b) implantação de regimes curriculares flexíveis; c) criação de novo sistema de títulos e mobilidade acadêmica interinstitucional; d) diversificação das modalidades de graduação; e) o uso de novas tecnologias para expansão da EAD e no ensino presencial; entre outras. Tais diretrizes, além de se aliarem às orientações dos organismos internacionais, como, por exemplo, as difundidas pelo Banco Mundial, também atendem aos interesses da burguesia brasileira, principalmente a de serviços educacionais, visto que a finalidade do REUNI de ampliação do quantitativo de vagas sob medidas racionalizantes incide na redução da qualidade do ensino. Dessa forma, tal possibilidade de massificação poderá desqualificar as universidades públicas, inscrevendo-as no mesmo patamar de instituições de ensino e das IES privadas, pela perda das condições que historicamente asseguravam a supremacia daquelas em comparação a estas.
Atualmente, o REUNI tem se desenvolvido com alterações substanciais na formação profissional dos estudantes e no trabalho docente. A criação do banco de “professores-equivalentes”8, em consonância com a política do REUNI, e o aumento do número de alunos por docente geraram ainda mais a precarização do trabalho e a impossibilidade de dedicação às demais atividades de pesquisa e extensão pelos docentes e, por conseguinte, a interlocução destas atividades com o ensino.
O Relatório de Acompanhamento do REUNI, elaborado pela ANDIFES (2010), traz dados da abrupta ampliação das vagas ofertadas pelas IFES nos cursos de graduação presenciais que, em 2006, ofereciam 122.003 vagas e que, no de 2010, passaram a oferecer o quantitativo de 199.282 vagas, ou seja, neste período, houve um acréscimo de 77.279 vagas, o que equivale a um aumento de 63%.
Ao mesmo tempo em que identificamos um forte processo de expansão da universidade pública pela sua precarização, observamos o crescente aumento das IES privadas. De acordo com os dados do censo de 2009 do INEP, em 2008, havia um total de 2.252 IES, sendo que 235 eram públicas e 2.016 eram IES privadas; em 2009, o total de IES aumentou para de 2.314, sendo que 245 eram públicas e 2.069 eram IES privadas. Quando comparamos ainda com os dados referentes ao final do governo Fernando Henrique Cardoso, vemos que, em 2002, o total de IES era de 1.637, sendo que 195 eram públicas e 1.442 privadas, o que atesta que a ampliação da rede privada de educação superior e a transferência de recursos públicos pelo PROUNI e o FIES foram aprofundadas pelo governo Luís Inácio Lula da Silva.
Considerações finais
As ações analisadas na totalidade do contexto ao qual estão inseridas nos levam a considerar que as políticas e o discurso de acesso “democratizante” falseiam a realidade quando observamos que as reformas na educação superior têm, ao longo de nossa história, conservado e/ou aprofundado a heteronomia cultural e a dominação imperialista, na medida em que não visam à produção de conhecimento científico e tecnológico, reforçando a ampliação do número de IES privadas e difundindo a concepção burguesa de mundo. O que se ajusta às análises de Fernandes (1975) no que se refere à condição de país dependente em que a educação em nosso país cumpre, em grande parte, o papel de formação para o trabalho simples, mesmo que este atualmente requeira algum conhecimento mais avançado em termos instrumentais, nos marcos da educação terciária9, como preconiza o Banco Mundial, sem cumprir o papel de produção autônoma nos diferentes campos do saber.
REFERÊNCIAS
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1 Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Superior (UFF), Trabalho Docente na Educação Superior (UERJ) e UNIVERSITAS/RIES (PUCRS).
2 Neste trabalho, gerencialismo é entendido como mecanismos de gestão privada introduzidos no setor público, com adoção de critérios, ações e controle nos moldes que o mercado busca o lucro. Tal preceito foi amplamente difundido por Bresser Pereira no governo Fernando Henrique Cardoso na Reforma do Aparelho do Estado (1995) através do conceito de administração gerencial para o setor público.
3 O Programa Universidade para Todos (PROUNI) foi instituído em 2004 pelo Governo Federal com a proposta de oferecer a alunos de baixa renda bolsas de estudo (integrais ou parciais) em faculdades privadas, concedendo a essa isenção de alguns tributos fiscais. Através do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) o aluno participa deste processo e as bolsas são distribuídas de acordo com a pontuação do aluno no exame.
4 Fonte: SISPROUNI - disponível em: http://prouniportal.mec.gov.br/images/arquivos/pdf/Representacoes_g.... Acesso em 04/11/2011.
5 Para aprofundar estas análises, consultar LIMA (2007).
6 Dados disponíveis em: http://www.uab.capes.gov.br/index.php?option=com_content&view=a.... Acesso em 09/10/2011.
7 Os dados apresentados por categoria administrativa das IES se referem às matrículas de alunos efetivadas nestas instituições.
8 Esse sistema classifica os regimes de trabalho docente – 20h, 40h e dedicação exclusiva – por pontuações que valem 0,5, 1,0 e 1,55 pontos, respectivamente. Na prática, essa classificação é utilizada para definir o número de docentes a que cada instituição tem direito, dando autonomia às universidades para repor o pessoal em caso de aposentadoria, demissão ou falecimento. No entanto, a primeira questão que se coloca é que ao fixar o número de códigos de vagas a que cada instituição tem direito, os Ministérios da Educação (MEC) e do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) congelaram o crescimento da folha de pagamento das universidades e o número de docentes que poderão contratar. A segunda questão é que esse quantitativo foi definido com base no exercício em 31/12/06, período no qual as universidades acumularam um grande déficit de professores e em que boa parte dos professores DE estavam sendo substituídos por professores de 20h.
9 Através da análise do documento publicado em 2002 pelo Banco Mundial (BM), Construir Sociedades de Conocimento: nuevos desafios para la educación terciária, podemos perceber a diretriz de desmantelamento da primazia do modelo das universidades públicas pela proposição de um sistema institucional diversificado denominado de “educação terciária”, conceituação da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) adotada pelo BM. Este conceito generaliza os cursos superiores em “pós-médio”, indicando “(...) o deslocamento central para a passagem: de educação superior a terciária”, conforme salientam Barreto e Leher (2008, p. 426).
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