Os acontecimentos de 2001 nos demonstram que a dinâmica do capitalismo traz consigo uma contínua recriação de contradições e conflitos entre trabalhadores, empresários e o Estado. Por Horacio Vergara Tello
Antecedentes.
Os eventos conhecidos como o “Argentinazo” ocorreram durante os dias 19 e 20 de dezembro de 2001 e foram parte de um ciclo histórico de lutas (com altos e baixos níveis de conflito) iniciado em 1993 na província de Santiago del Estero, onde os trabalhadores do Estado iniciaram uma greve para resistir aos processos de ajuste aplicados a este setor pelas medidas neoliberais do governo de Menem. Essa greve, após ser duramente reprimida, teve uma contundente resposta unificada por parte do povo santiagueño, o qual se amotina e transborda à polícia, ataca e queima as casas de políticos (alguns chegam a ser linchados) e as sedes dos três poderes da província.
De dezembro de 93 a dezembro de 2001, segundo historiadores transandinos, foram registrados um total de 7.643 focos de rebelião, sendo que a insurreição espontânea de 2001 foi o ápice da agitação política e um acontecimento significativo na história política da Argentina, já que rapidamente o povo a transformou em uma crise múltipla, ou seja, de uma crise econômica a uma crise do sistema político em seu conjunto (principalmente de legitimidade da classe política que dominava naqueles anos), deixando somente o poder do Estado em pé, questão que veremos brevemente mais adiante.
Ao analisar a história, é possível sustentar que aquele ciclo ascendente de lutas a que nos referimos (1993-2001) experimentou seus altos e baixos. Por exemplo, observando os registros de imprensa, é possível ver a estagnação das greves gerais (uma medida de repercussões nitidamente políticas) e os bloqueios de rua (os que ajudam a medir os níveis de conflito da classe trabalhadora desempregada) durante o lapso compreendido entre os anos 1997 e 1999, já que, durante este período, se convocaram 3 greves gerais (2 em 97 e 1 em 99) em comparação com as 8 declaradas entre 1994 e 1999.
Todo este ciclo de lutas viria a se encerrar no ano 2002 com o massacre da Ponte Pueyrredón, em que os companheiros Darío Santillán e Maximiliano Kosteky foram baleados pela Polícia Federal Bonaerense, a qual recebeu a ordem do carniceiro Duhalde, que atualmente – após as ocupações de terreno em Villa Soldati, em dezembro de 2010, que resultaram na morte de 3 pessoas – é candidato presidencial e segue agitando para que a repressão aos que lutam seja o caminho da ordem e da paz social.
“Bloqueio de rua e assembléia”. A origem do movimento piquetero.
É o desgaste do neoliberalismo e de suas medidas de crescimento econômico para os ricos o que viria a engendrar o movimento piquetero e a Argentina de 2001. Mas pontualmente, sua origem pode ser rastreada a partir do ano 1996, quando as demissões na YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales) levaram os trabalhadores a bloquear a rua na praça Cutral-Co e Huincul, buscando desta forma desabastecer de insumos a produção de hidrocarbonetos e, por sua vez, cortar a distribuição e venda do mesmo.
Em meio a este acontecimento e com a rápida massificação dessa forma de luta no país (bloqueio de ruas) surgem os piqueteros. Movimento composto por trabalhadoras e trabalhadores desempregados, os piqueteros articularam com outros setores do povo, que também lutavam contra os ajustes do neoliberalismo (docentes e trabalhadores de empresas estatais) e que, nos fins da década de 90, se transformaram no elemento mais dinâmico da classe trabalhadora transandina.
Para conhecer detalhadamente este movimento social teríamos que dedicar mais alguns parágrafos, mas o que nos importa aqui é mencionar que os piqueteros fazem seus dois métodos para pautar suas reivindicações no centro das questões nacionais: o bloqueio de rua resgatado dos Montoneros e a tomada de decisões em assembléias (meio e fim para um processo revolucionário) pelo conjunto dos implicados nas lutas.
“Que se vayan todos, que no quede ni uno solo”. Os acontecimentos do 19 e 20.
A rebelião de dezembro tem seus antecedentes diretos no pacote de medidas antipopulares (as mais recorrentes foram os aumentos de impostos, a redução de salários e de aposentadorias) impulsionadas pelo ministro da economia para poder pagar a grande dívida externa criada pela convertibilidade (o “um para um”, ou seja, um peso equivalia a um dólar, uma bomba relógio que necessitou de empréstimos do FMI para se manter em pé, os quais foram aplicados com o suposto objetivo de frear o veloz e incontrolado aumento dos preços ou hiperinflação, o que significa que o dinheiro perde constantemente o seu valor), as quais foram enfrentadas com variadas manifestações de descontentamento.
No dia 1 de dezembro o governo dá ordem ao Banco Central para que decrete o “corralito”, o qual nega a possibilidade de retirar dinheiro dos bancos, criando desta forma um descontentamento nos setores médios e altos do país, derivando na unidade do “piquete e do panelaço” nas ruas.
Enquanto o governo buscava um meio de pagar a dívida, a fome seguia crescendo, o desemprego superou 20%, levando a incrementar as medidas de força dos piqueteros assim como seu respectivo nível de organização nos MTDs (Movimentos de Trabalhadores Desempregados), os quais começaram a proliferar e coordenar-se em nível nacional.
O detonador final seria o chamado do dia 13 a uma paralização geral por parte das centrais sindicais que começou a se interligar lentamente com saques que se prolongariam de forma ascendente até o dia 19.
O tempo se esgotava para a classe dirigente, a qual apelando à sua última medida de força declara o Estado de Sítio, militarizando os bairros e cortando o transporte para que os bairros periféricos e cidades do entorno de Buenos Aires não confluíssem para as áreas centrais. A indignação e a revolta por falta de pão e trabalho rapidamente se fez sentir com a consigna “que se vayan todos” soando por todos os rincões da cidade de Buenos Aires e do país, o povo se apodera das ruas deixando claro que a democracia representativa já não mais os representava. Desempregados, classe média, os eternamente postergados, os poupadores, todos os oprimidos se expuseram sem distinção até as quatro da madrugada exigindo a renúncia dos políticos que exerciam cargos.
Ninguém deixava a barricada na Praça de Maio apesar da forte repressão com balas de borracha e a chuva que em algum momento silenciou: “no se va, el pueblo no se va”, “y llueve y el pueblo no se mueve” eram as consignas que agitavam a resistência.
Ao meio-dia do dia 20, o povo novamente toma as ruas, era o momento de lutar ombro a ombro, inclusive os que trabalhavam abandonaram seus respectivos trabalhos e se somaram à rebelião, a solidariedade de classe se manifesta para qualquer um que se encontrasse com problemas, a repressão se intensifica mas ninguém retrocede seus passos.
Finalmente, após 39 mortos e 80 sequestros de pessoas, o governo desmorona e De la Rua não tem outra saída a não ser deixar a presidência e fugir da Casa Rosada em um helicóptero, começando assim uma maravilhosa história de resistência, organização e luta, de ocupação de bancos, terrenos abandonados e fábricas sob autogestão operária; um momento onde as assembléias se massificam e se estendem por todas as partes com a participação de centenas de pessoas de forma horizontal e participativa.
O papel dos meios de comunicação e apontamentos para um balanço.
Os meios de comunicação desempenharam dois papéis fundamentais que buscavam um objetivo comum. Por um lado como promotores da desestabilização, dando cobertura aos saques realizados por aqueles que não tinham o que comer. Com isso se buscava claramente demonstrar a ausência de governo, criar um medo nos setores mais conservadores e buscar elevar as ideologias fascistas para uma possível saída militar.
Por outro lado, buscavam o conflito entre pobres para evitar sua unidade, fazendo correr o boato de possíveis saques nos bairros, de tal forma que as pessoas se armaram para defender o pouco que tinham em casa (a mesma artimanha utilizada durante o último terremoto no Chile). Ambos papéis buscavam criar um desfecho favorável à burguesia: uma mudança de governo antecipada, com contornos progressistas (anti-neoliberal) para deixar o poder do Estado intocável e assim manter o seu posto de poder e privilégios.
A mudança de dirigentes buscava a imposição de um programa burguês renovado, com características nacionais e populares para lograr uma influência no amplo campo progressista. Um objetivo que alcançaram facilmente devido a falta de amadurecimento das experiências do movimento operário, ausência de programa revolucionário (como e por quê, por sua vez, reflexo do avanço real da maioria) e objetivos de longo prazo, o que se traduz na baixa inserção das idéias de intenção revolucionária (forte influência do peronismo e sua lógica vertical e de clientelismo) e a falta de autonomia das iniciativas.
As próprias restrições da experiência (as quais necessitavam um balanço mais profundo), a cooptação (mediante o clientelismo e a reivindicação dos direitos humanos) de amplos setores do movimento popular (MTDs e Madres de Plaza de Mayo) por parte do kirchnerismo e o terrorismo de Estado (massacre da Ponte Pueyrredón em 2002, 300 sequestros em 2003) para os setores classistas e combativos que mantiveram a autonomia e a independência de classe para impulsionar suas reivindicações, limitaram as possibilidades de transformação social para o povo.
Por outro lado, ainda que a burguesia soubesse manejar a seu favor o processo e conseguiu recuperar seu lugar hegemônico, nada pode negar o que foi acumulado pelos setores populares: as organizações da classe trabalhadora se constroem com os valores e formas da sociedade revolucionária, ou seja, a democracia de base e a ação direta de grandes grupos.
Os acontecimentos de 2001 nos demonstram que a dinâmica do capitalismo traz consigo uma contínua recriação de contradições e conflitos entre trabalhadores, empresários e o Estado. Se bem que é certo que em momentos de crise o capitalismo busca se acomodar para que os empresários não sejam tão golpeados, este reordenamento sempre deriva em uma nova ordem social e, portanto, traz junto dela novas formas para encarar a luta e novas camadas de trabalhadores as enfrentam para dar o golpe final na sociedade de classes. Por exemplo, dessa forma é que os trabalhadores vão se deparar com a subcontratação (terceirização e outras formas atuais de contrato) imposta pelos de cima e necessitamos impulsionar novas formas de luta que nos sejam capazes de garantir novas conquistas.
Somente o povo organizado é capaz de conseguir um avanço de sua consciência e dessa forma se criam as condições de elaborar um programa sustentado em sua experiência prática, em sua história de lutas passadas e recentes. Um programa que seja capaz de acabar com a realidade que nega a vida livre e solidária, que nos ajude a destruir um sistema que promove e origina o pior da humanidade, ou seja, os privilégios, o egoísmo, a injustiça social, etc.
Tradução: Daniel Augusto de Almeida Alves
Publicado originalmente no jornal chileno Solidaridad, disponível aqui.
http://passapalavra.info/?p=50944
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