sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Descaminhos da Revolução Brasileira: o PCB e a construção da estratégia nacional-libertadora (1958-1964)



Ricardo da Gama Rosa Costa (Rico)

Professor e coordenador do Curso de História da Faculdade de Filosofia Santa Doroteia, Nova Friburgo-RJ.

Diretor da Associação de Docentes da FFSD e do Sindicato dos Professores (Sinpro) de Nova Friburgo e Região. Membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Introdução: 1964 e o golpe da burguesia monopolista

O golpe perpetrado em 1964 pelas frações monopolistas das classes dominantes no Brasil foi responsável, dentre outras inúmeras consequências que deixaram marcas profundas na sociedade brasileira até os dias atuais, pelo início do desmonte, no seio do pensamento de esquerda, da chamada concepção dualista da realidade brasileira, que começou então a ser revista e gradualmente abandonada após a derrota imposta aos setores populares pelas forças de direita. A tese, na época hegemônica entre os opositores do capitalismo, havia produzido um projeto político marcado pela viabilidade de uma alternativa nacional ao imperialismo e pela aposta de que este movimento de libertação, no qual se destacava o viés nacionalista, poderia contar com a participação e até mesmo a condução da burguesia industrial nativa.

A burguesia brasileira, no entanto, manteve a aliança já alinhavada com o capital internacional, fazendo parte das articulações em torno do golpe civil-militar de 1964 e contribuindo para desbaratar o movimento de massas então em ascensão no país. A efervescência política e cultural experimentada pelos brasileiros em princípios da década de 1960 denotava a passagem para uma sociedade de tipo “ocidental”, para usar terminologia gramsciana, consolidando um processo que já se verificava nas décadas anteriores. O célere desenvolvimento capitalista no país criava novas situações de conflitos e contradições sociais que eram acompanhadas pela formação e dinamização de novos sujeitos coletivos, os aparelhos privados de hegemonia, possíveis de se identificar tanto nas organizações comprometidas com a formulação de projetos alternativos ao capitalismo, quanto nos grupos representativos das classes que agiam em favor da manutenção e do aprofundamento do sistema.

O quadro de uma clara socialização da política, com a participação de amplas camadas trabalhadoras, urbanas e rurais nos embates políticos do período, demonstrava ser este o verdadeiro fato novo na vida brasileira. Se a mobilização social não colocava imediatamente em xeque a ordem capitalista, não deixava de representar uma séria ameaça aos interesses das classes dominantes, pois poderia desaguar num processo profundo de reformas democráticas e sociais, de caráter anti-imperialista e antilatifundiário, conforme apontavam os movimentos articulados em torno das reformas de base (NETTO, 1998: 22-24). A resposta dos setores mais dinâmicos das classes dominantes, constituídos pela burguesia industrial e financeira monopolista, foi a preparação de um movimento reacionário para conter de pronto a ameaça que vinha das massas trabalhadoras, excluindo-as de qualquer possibilidade de participação em instâncias do aparelho estatal.

Todo este processo de embates políticos que explodiu no início da década de sessenta, redundando na solução de força adotada por setores da classe dominante, expressou o acirramento da luta de classes no Brasil, num quadro que pode ser descrito como o da “crise orgânica” indicada por Gramsci. Seu conteúdo foi a crise de hegemonia no interior da classe dirigente, provocada, entre outros fatores, pela ativa movimentação de amplas massas, as quais, em seu “conjunto desorganizado”, podiam fazer emergir uma situação revolucionária. No entanto, como afirma Gramsci, a crise cria situações imediatas perigosas, já que os diversos estratos da população não possuem a mesma capacidade de se orientar rapidamente e de se reorganizar com o mesmo ritmo (GRAMSCI, 2000: 60-61). Sendo assim, frações da classe dominante foram capazes de se articular para retomar o controle da situação e esmagar o seu adversário principal, impondo uma “solução orgânica” evidenciada na unificação de forças em torno de uma só direção, um único “partido”, eficaz na política repressiva necessária para afastar o “perigo mortal” naquele momento.

Esta solução representou o rearranjo das forças políticas no núcleo central do poder, ao desfazer o “pacto populista” existente, afastando os setores burgueses considerados ultrapassados para o modelo de desenvolvimento econômico que se pretendia fazer aprofundar. Através de seus aparelhos privados de hegemonia, com destaque para as associações empresariais e entidades como o IPES e o IBAD, além dos aparatos tipicamente coercitivos, como o Exército e a Escola Superior de Guerra, a burguesia monopolista organizou a difusão da ideologia anticomunista e do discurso do “perigo vermelho” que contagiou parcelas significativas das camadas médias, atraindo-as para o apoio ao golpe de 1964. Deste modo, a solução para a crise de dominação burguesa, inscrita num processo de “revolução passiva”, significou o desfechar de duro golpe no movimento operário em ascensão, para que a atualização do projeto capitalista se desse sem maiores obstáculos, garantindo a consolidação e a expansão do capitalismo monopolista no Brasil.

O PCB e a estratégia nacional-libertadora

As bases empíricas e teóricas adotadas para a elaboração da estratégia revolucionária do Partido Comunista Brasileiro, calcadas, respectivamente, numa interpretação imprecisa da realidade brasileira e na tradição do pensamento oriundo da III Internacional, acabaram por dificultar a capacidade de vislumbrar toda a preparação dos grupos fundamentais da classe dominante em direção ao golpe de Estado, por não permitirem enxergar as transformações estruturais na sociedade brasileira, responsáveis pela promoção de novos arranjos de classe, a prever a necessidade de uma nova forma de dominação burguesa no país.

O PCB, por um lado, com a Declaração de Março de 1958, havia imprimido importante mudança de rumo na sua linha política, ao reconhecer o desenvolvimento capitalista em curso dentro do país, ao mesmo tempo em que passava a perceber a importância de se lutar pela consolidação e ampliação da legalidade democrática, resgatando o papel da democracia, há muito negligenciada nas discussões internas. Tais conclusões passavam a indicar a necessidade da interferência dos comunistas nos rumos deste processo, organizando as pressões populares sobre o Estado, e apontavam ainda para a possibilidade real de se conduzir a revolução brasileira por meios pacíficos. Daí a participação cada vez maior do PCB junto aos movimentos nacionalistas e, em princípios dos anos de 1960, na campanha pelas reformas de base, compondo um amplo arco de alianças que apostava numa alternativa de desenvolvimento econômico anti-imperialista.

Por outro lado, os dirigentes do PCB ainda viam como necessária a ultrapassagem dos “resquícios feudais” que insistiam em identificar na realidade brasileira, o que os mantinham presos à perspectiva etapista da plena realização do capitalismo como forma de iniciar a transição para a sociedade socialista. Havia a firme compreensão de que o desenvolvimento econômico capitalista no Brasil entraria em choque com a exploração imperialista, fazendo aprofundar a contradição entre as forças nacionais e progressistas em crescimento e o imperialismo norte-americano, visto como principal obstáculo para a sua expansão.

A etapa da revolução brasileira, naquele momento histórico, seria, portanto, principalmente, nacional e anti-imperialista e, secundariamente, em favor do desenvolvimento das forças produtivas para ultrapassar a sobrevivência das relações “feudais” e “escravistas” no campo. Disso resultava a estratégia centrada na formação de uma frente única nacionalista e democrática, partindo do princípio segundo o qual o embate central se daria entre nação e povo contra interesses imperialistas estrangeiros e não entre proletariado e burguesia.

É preciso levar em consideração que o ambiente intelectual das esquerdas no pré-64, tendo o PCB como centro hegemônico, mas incluindo socialistas, trabalhistas, nacionalistas e desenvolvimentistas que se opunham ao domínio imperialista, só fazia estimular a crença na viabilidade de um projeto nacional autônomo no âmbito do capitalismo, num contexto internacional reforçado pelas vitórias dos movimentos de libertação nacional na Ásia e na África e da Revolução Cubana.

Não se tornara ainda perceptível para muitos a inevitabilidade da associação dos capitais privados nacionais com os monopólios estrangeiros, como uma tendência inerente à conjuntura econômica caracterizada pelo aprofundamento das relações capitalistas no Brasil e no mundo. Na avaliação de Ricardo Bielschowsky:

... nos anos 50, ainda estavam em plena implantação as estruturas industriais nos países subdesenvolvidos, e ainda se iniciava o atual padrão de internacionalização de capitais, processos casados cuja interação não podia ser percebida em sua plenitude. É natural, portanto, que a compreensão da novidade histórica fosse confusa (BIELSCHOWSKY, 2000: 196).

Não seria menor a dificuldade em analisar o processo de complexificação da sociedade civil no exato instante em que ele se verificava. Além disso, o instrumental teórico à disposição dos comunistas do PCB, fundamentado nas categorias stalinianas das teses da III Internacional, ainda dominantes nas resoluções da maior parte dos partidos comunistas em todo o mundo, não obstante a política de desestalinização em curso, orientava no sentido de esquemas explicativos simplificados, expressos, por exemplo, na visão dualista da realidade brasileira e na noção da revolução por etapas .

Ocidente e Oriente nas representações da sociedade brasileira




Utilizando as categorias teóricas de Antonio Gramsci, em especial os conceitos “Ocidente” e “Oriente”, é possível depreender que, de acordo com a percepção dos principais intelectuais e articulistas ligados à linha política do PCB, a formação social brasileira era basicamente configurada por elementos “orientais”, se aplicarmos esta designação às caracterizações de “atrasada”, “retrógrada” ou “semifeudal”, dedicadas à estrutura econômica marcada pelo monopólio do latifúndio. Não se descarta a existência de traços “ocidentais”, pois se reconhece a expansão de formas capitalistas de produção, inclusive no campo brasileiro, mas, na linha hegemônica pecebista, o “Oriente” suplanta o “Ocidente”.

Representando a visão corrente encontrada nos textos editados na imprensa comunista entre 1958 e 1964, podemos destacar a lógica interpretativa de Alberto Passos Guimarães, importante formulador teórico pertencente aos quadros do PCB, em artigo publicado na revista Estudos Sociais no ano de 1964. Para o autor, a produção agrícola baseada no latifúndio escravista teria imprimido uma marca originalmente negativa ao processo evolutivo da sociedade e da economia no Brasil. O tipo de colonização aqui empregado teria gerado um crescimento distorcido da riqueza social: Nosso ponto de partida foi o monopólio da terra, a concentração da propriedade elevada ao mais alto grau, o controle absoluto dos meios de produção nas mãos de uma casta que soube mantê-lo por vários séculos (GUIMARÃES, 1964: 229).

Dentro de sua ótica, as forças produtivas não podiam se desenvolver plenamente, em função dos entraves impostos pelo latifúndio, dos privilégios concedidos pela Coroa portuguesa aos intermediários de negócios e às proibições às atividades manufatureiras na colônia. E em pleno século XIX continuariam predominando os entraves à livre concorrência e as restrições à expansão de formas embrionárias da propriedade burguesa: o campesinato não se desenvolvera como classe, o artesanato era escasso e era quase inexistente a população livre dos centros urbanos, quadro que impedia a formação de uma base social necessária à “missão histórica” reservada à revolução burguesa. Tal situação teria começado a sofrer alterações quando o eixo da economia brasileira deslocou-se para o Centro-Sul, mas a cadeia de privilégios aristocráticos seria mantida à revelia do surto industrial na virada do século, pois as novas oligarquias burguesas, capitaneadas por barões e viscondes, vieram suceder as antigas oligarquias feudais, disputando privilégios e favores do Estado (GUIMARÃES, 1964: 231).

Alberto Guimarães destacava que o alto grau de concentração dos meios de produção na estrutura agropecuária brasileira seria acompanhado por um nível igualmente exagerado de centralização na indústria, superior ao encontrado nos países de capitalismo avançado. Esta tendência seria reafirmada mesmo após a crise mundial de 1929, quando a intervenção do Estado varguista reduziu os reflexos da depressão econômica junto aos grandes proprietários de café, garantindo as posições de domínio do monopólio da terra. A intervenção estatal teria incentivado ainda a criação de situações de monopólio nos principais setores da indústria, como no caso do cartel formado pelas usinas de açúcar e do alto grau de concentração no ramo têxtil, dominado por um pequeno número de grandes empresas. A tendência à concentração da produção e à centralização dos capitais, reforçada após a Segunda Guerra Mundial, indicaria que: as formas ultraconcentradas da produção existentes em nossa economia não são decorrentes, em geral, do processo evolutivo espontâneo, mas de medidas artificiais que tiveram consequências desastrosas para a livre expansão das forças produtivas e o rápido desenvolvimento da economia nacional (GUIMARÃES, 1964: 235).

Na concepção do articulista, portanto, as práticas monopolistas, já presentes na formação histórica brasileira desde a colonização predatória fincada no latifúndio escravista, por si só responsável por frear o desenvolvimento das forças produtivas e a constituição de um mercado interno, teriam sido reforçadas pela ação do Estado brasileiro durante o século XX, criando uma situação artificial e oposta ao que deveria ocorrer de forma espontânea, em condições presumivelmente “naturais” de florescimento das relações capitalistas e de crescimento espontâneo da indústria. A maior penetração dos capitais estrangeiros após a Segunda Guerra Mundial confirmaria em essência o subdesenvolvimento brasileiro, pois o autor havia de caracterizar os monopólios estrangeiros pelo seu parasitismo. Ao agir como um parasita da economia nacional, o capital estrangeiro impediria o desenvolvimento de um capitalismo genuinamente brasileiro, o que, por conseguinte, frearia o curso “natural” do processo histórico, atrasando ou obstando a evolução rumo ao socialismo.

Igualmente características da concepção dominante no PCB sobre a questão agrária eram as opiniões do dirigente comunista e deputado constituinte de 1946-47 Carlos Marighella, conforme expressas no artigo “Alguns aspectos da renda da terra no Brasil”, publicado na Revista Estudos Sociais nº 1, de maio/junho de 1958. O texto de Marighella partia do pressuposto de que dois tipos de renda, a pré-capitalista e a capitalista, conviviam simultaneamente na estrutura agrária brasileira. Ao analisar a renda da terra na cultura do café, apresentava a figura do colono como a de um trabalhador submetido tanto à exploração da renda trabalho, típica das sociedades pré-capitalistas, quanto ao regime do salariado, próprio do capitalismo.

A primeira forma de exploração revelar-se-ia no trabalho realizado exclusivamente na terra do fazendeiro, ficando mais nítida quando, em determinados dias do ano, o colono era obrigado a prestar serviços gratuitos ao seu senhor, tais como consertar estradas e cercas e limpar pastos. Tais serviços receberam do autor do artigo a denominação de “corveia”, como se de fato existissem relações inerentes ao feudalismo no campo brasileiro. Dentro desta mesma linha, asseverava a total dependência do colono para com o dono da terra, expressa também na apropriação, pelo fazendeiro, do produto suplementar do plantio realizado na parcela do terreno concedida ao trabalhador, além de outras formas de coerção extra-econômica, como a proibição de caçar, pescar e tirar lenha das matas da fazenda, características ilustrativas da servidão, forma de trabalho dominante no feudalismo.

Mas, ao mesmo tempo, para Marighella, o colono era um trabalhador assalariado, em virtude de a fazenda de café ser também um empreendimento capitalista. Argumentou tratar-se, na verdade, de um semiproletário, pois a condição, segundo ele, para o trabalhador se afirmar como assalariado, isto é, receber em dinheiro, nem sempre acontecia, já que o fazendeiro lhe reservava o vale, como complemento do que consumia no barracão da fazenda, outro instrumento de dominação a retirar o caráter de liberdade da força de trabalho, também visto como “remanescente do feudalismo” (MARIGHELLA, 1958: 22). Historicamente, o quadro era explicado como resultado da passagem do fenômeno da parceria, pela qual o braço estrangeiro importado para a lavoura de café entregava a renda produto ao dono da terra, para a condição de trabalhador semiproletário, na qual o colono perdia totalmente a ilusão de tornar-se um produtor independente, mas não se transformara plenamente ainda num assalariado, devido às revivescências da servidão, como referido acima.

O articulista explicava tal situação híbrida pelo fato de a produção de café ser principalmente destinada ao comércio exterior, servindo quase exclusivamente aos interesses do imperialismo e dos latifundiários e pouco contribuindo para o desenvolvimento do mercado interno, menos ainda para a circulação de dinheiro no meio rural. A possibilidade de junção, em uma mesma realidade social, de duas formas de exploração historicamente separadas, era vista como exemplo da singularidade de um país oprimido e dominado pelo imperialismo, onde o monopólio da terra é lei geral (MARIGHELLA, 1958: 20), impondo a sobrevivência de resquícios feudais no campo. Além disso, a maior parte das fazendas de café (88%, conforme destacado no texto) continuava a ser tocada por colonos, fato que constituiria uma prova da permanência dos restos feudais.

Outros exemplos discriminados no artigo serviam para reforçar as conclusões já verificadas. Eram registradas diferenças marcantes, em relação à agricultura cafeeira, nos casos das culturas canavieira e algodoeira. Na primeira, a usina de açúcar era descrita como superior – na perspectiva de um empreendimento capitalista – à fazenda de café, ao encarnar nitidamente a união entre agricultura e indústria, fazendo do usineiro um industrial do campo, ao contrário do fazendeiro de café. Mas, ao mesmo tempo, o usineiro era também um latifundiário a explorar, em suas terras, trabalhadores vinculados a outras culturas (café, algodão, arroz), sujeitando-os igualmente às formas de exploração semifeudais, assim como o fazia em relação aos plantadores de cana, apontados como semiproletários, tais quais os colonos de café. O fornecedor de cana independente, o antigo senhor de engenho, identificado agora como capitalista, camponês ou fazendeiro rico a explorar a renda produto do pequeno arrendatário (ou pequeno camponês) e a mais-valia do trabalhador rural, estaria de fato subordinado ao grande poderio do usineiro, imposto, centralmente, através do monopólio da terra.

No outro exemplo, a cultura do algodão era apresentada como desenvolvida à base do arrendamento da terra, tendo criado a figura do arrendatário pobre, submetido a contratos tão extorsivos quanto os do colono de café, ao ser obrigado a entregar produto excedente ou a prestar trabalho ao latifundiário. Este, ao contrário do fazendeiro do café e do usineiro, os quais encarnariam a aliança da terra com o capital, somente seria capaz de extrair renda da terra se explorasse a miséria dos inúmeros arrendatários. Segundo o dirigente comunista, a renda apropriada pelo latifundiário do algodão seria toda ela pré-capitalista, não existindo, assim, a figura do trabalhador assalariado, a não ser no caso da indústria do beneficiamento do produto, conservada em mãos de empresas imperialistas, totalmente separada da exploração agrícola, monopolizada pelos grandes proprietários.

A solução para o enfrentamento político de tal quadro, registrada no final do artigo, estaria em eliminar o monopólio da terra, medida a ser precedida pela extinção das formas feudais de exploração, cuidando para que ficassem resguardados, porém, os empreendimentos industriais do campo, pois, assim, desde que garantida a aplicação da legislação trabalhista na área rural, estariam criadas as novas condições para o desenvolvimento das forças produtivas (MARIGHELLA, 1958: 43).

O “ocidentalismo” de Caio Prado Júnior

No campo oposto às análises produzidas pelos defensores da linha política oficial do PCB, as formulações de Caio Prado Júnior aproximavam-se do que se pode enxergar como um viés “ocidentalista” na interpretação da realidade brasileira contemporânea, sem que isso significasse a negação total da existência, dentro dela, de sobrevivências “orientais”. As sobrevivências pré-capitalistas na estrutura agrária brasileira (aquilo que os dirigentes comunistas chamavam de “restos feudais” e que, para Caio Prado, poderiam ser denominados de “restos coloniais” ou “escravistas”) deveriam ser compreendidas como integrantes do modo de produção capitalista brasileiro, tendo, na verdade, contribuído para o seu desenvolvimento, ao permitirem uma superexploração do trabalho.

Caio Prado Júnior afirmava que não havia resquícios feudais a serem ultrapassados no Brasil, tendo em vista que um tal sistema feudal jamais fez parte da formação histórica brasileira, vinculada, de outro modo, a um tipo de colonização e de ocupação territorial voltada a atender as exigências de um empreendimento mercantil: a produção de objetos demandados pelos mercados europeus (PRADO JÚNIOR, 1960a: 199). Deduzia que as relações de produção e de trabalho eram determinadas pela grande exploração agromercantil, cuja posição dominante na estrutura agrária impunha a divisão das classes em, de um lado, grandes proprietários e empresários agrícolas a deter em suas mãos a imensa maioria das terras ocupadas e, de outro, a população trabalhadora, à qual não restava alternativa senão fornecer a mão de obra necessária ao grande negócio. Como atividade secundária, havia a possibilidade de os trabalhadores dedicarem-se, nas sobras de terra e de tempo, ao plantio de subsistência.

Segundo Caio Prado, o essencial das relações de produção e trabalho na zona rural envolvia o binômio grande proprietário x trabalhador - fornecedor de mão de obra e de serviços e não grande proprietário x pequeno proprietário ou camponês. Neste quadro, eram apontadas três formas de remuneração do trabalho no campo, passíveis de serem combinadas a depender do momento e do lugar: o pagamento em dinheiro (salário), em parte do produto e no direito de ocupar, para culturas próprias, parte das terras do proprietário. Geralmente, seriam formas de pagamento em troca dos serviços prestados pelos trabalhadores. De acordo com o renomado historiador, a prestação de serviços constituiria a essência das relações de trabalho na agropecuária brasileira.

Caio Prado argumentava, outrossim, que o pagamento por serviços na base da concessão ao trabalhador de produzir para si próprio nas terras do empregador ou por meio de produtos levava a que se confundissem tais situações com a parceria, elemento invariavelmente apontado pelos formuladores da linha política pecebista como característico da natureza semifeudal da economia brasileira. Na verdade, tratar-se-ia simplesmente, na imensa maioria dos casos, de uma relação de emprego em que parte da remuneração do trabalhador era paga in natura, com parte do produto, não se configurando, por tal motivo, numa forma anacrônica ou obsoleta de exploração sobrevivente de um passado feudal. Isto porque não se observava, nas relações entre proprietários e trabalhadores rurais, nada que se assemelhasse a uma sociedade entre as partes, menos ainda à transferência de posse da terra ao empregado, situações típicas da parceria clássica.

A parceria ou meação estaria perfeitamente inserida no quadro de desenvolvimento das relações capitalistas no país, conforme buscou demonstrar o articulista ao registrar que tal prática teria se difundido no Estado de São Paulo, principal centro produtor brasileiro, posteriormente a 1930, ligada especificamente não à economia cafeeira, mas à cultura do algodão, cujas relações de produção, em virtude do cultivo em larga escala, se baseavam em serviços prestados com participação no produto. O intelectual paulista assegurava, portanto, que a parceria, longe de conformar um tipo exemplar das sobrevivências feudais no campo brasileiro, além de ter sido prática quase desconhecida nas fazendas de café, constituía uma forma de trabalho adotada em particular na cultura algodoeira, num momento em que o sistema capitalista há muito era hegemônico no país. Ao contrário do que Marighella havia sugerido em seus estudos a respeito da cultura do algodão, na visão de Caio Prado não se configuraria aí a predominância da renda pré-capitalista, mas uma forma de exploração do trabalho superior até ao salariado. O regime de meação, dominante na cultura algodoeira, além de ter sucedido cronologicamente o pagamento por salários, representaria um benefício maior para o trabalhador, pois abriria a possibilidade de acesso à propriedade explorada pelo meeiro e as condições de vida seriam, em geral, melhores que as do colono das fazendas de café.

Caio Prado enfatizava ainda não haver como estabelecer comparações entre a figura clássica do camponês europeu (detentor dos meios de produção e proprietário de fato da terra em que produzia) egresso do feudalismo e o trabalhador rural brasileiro, em sua grande maioria, obrigado a vender a força de trabalho ao grande proprietário para sobreviver. Buscava comprovar que a grande propriedade rural brasileira, com origem histórica marcada pela necessidade da produção em larga escala voltada ao mercado externo, somente possível de ser realizada com a introdução do braço escravo em altas quantidades, impediu o florescimento da pequena propriedade e do campesinato.

O que poderia ser entendido como a constituir uma economia propriamente camponesa no Brasil, segundo o autor, representava um setor residual da estrutura agrária, como no caso da colonização estrangeira ao sul do país. Atestava que, abolida a escravidão, as relações de trabalho servis foram substituídas por prestações de serviços ou empregos, mesmo que o pagamento nem sempre se fizesse por meio de salários, existindo, dentre suas formas mais comuns, a concessão ao direito de plantar produtos de subsistência no terreno do proprietário. Este “trabalho livre” jamais poderia ser confundido com o de um camponês, tendo em vista a submissão do trabalhador, na sua atividade produtiva, ao poder do verdadeiro dono da terra, via de regra, um latifundiário. Tratar-se-ia, portanto, não de um pequeno proprietário, de alguém que detivesse de fato a propriedade da terra por ele ocupada, mas de um trabalhador obrigado a vender sua força de trabalho, em troca de um salário ou da permissão em plantar no terreno do proprietário.

Por fim, cabe destacar o alerta do historiador para o fato de a expressão “feudal” estar sendo usada, em muitas ocasiões, como um sinônimo para formas brutais e vis de exploração do trabalho no campo. De qualquer modo, ele rejeitava o uso do conceito, considerando ser mais apropriado falar em “restos escravistas” ou “relações semiescravistas”, termos que aludiam ao passado colonial brasileiro, em que a escravidão serviu de base a uma economia mercantil. Ademais, no presente, as relações sociais não seriam presididas por estatutos pessoais, como no feudalismo, mas por relações mercantis, através das quais os proprietários compravam e os trabalhadores vendiam a mercadoria força de trabalho, num regime de liberdade jurídica. Aduzia que, se a transação não se realizava exclusivamente por intermédio do pagamento em dinheiro, assumindo também formas não monetárias, tal fato não se daria por força de alguma restrição de ordem jurídica ou institucional, mas por causa de determinadas circunstâncias ou conveniências práticas.

No entanto, formas “ocidentais” quase puras são depreendidas da interpretação feita pelo escritor paulista acerca da questão agrária, pois sua concepção a respeito da formação histórica brasileira levava à consideração da economia forjada no período colonial como a integrar, desde o seu nascedouro, o sistema capitalista mundial. O momento da transição do feudalismo para o capitalismo era confundido com um “primitivo capitalismo comercial”, em função da prioridade dada, pelo historiador paulista, ao papel desempenhado pela circulação de mercadorias na análise das transformações econômicas e sociais. O capital mercantil assumiria, assim, função preponderante na condução da economia, daí redundando que: desde o escravismo já estariam dadas praticamente todas as condições do capitalismo ou o conjunto de seus elementos estruturais, excluindo, assim, a possibilidade de existência de modos de produção pré-capitalistas (MANTEGA, 1992: 241).

Por sua vez, a mão de obra escrava não apresentaria características absolutamente opostas às do trabalho assalariado, uma vez que ambas as formas de exploração eram designadas como “força de trabalho”, pois estariam, em momentos históricos singulares, subordinadas, no fundamental, aos mesmos interesses e objetivos da grande propriedade monocultora: a produção em larga escala voltada ao mercado exterior.

Superestimando a associação de determinadas formas de exploração do trabalho rural ao assalariamento, como no caso dos estudos sobre a parceria, Caio Prado chegou a ponto de descrever o terreno no qual se travavam as relações entre proprietários e trabalhadores rurais como de um mercado livre de trabalho, em que proprietários e trabalhadores, na posição respectiva de pretendentes e ofertantes de força de trabalho, se defrontam e de comum acordo estipulam as condições em que se fará a cessão ou compra da mesma força (PRADO JÚNIOR, 1960a: 219). Tal configuração das relações de trabalho no campo brasileiro nublava as reais condições de superexploração a que estavam submetidos os trabalhadores, numa estrutura marcada por revivescências de formas de trabalho essencialmente coercitivas. Daí que se apresentasse como simplificadora e descolada do terreno histórico da luta de classes no país a proposta apresentada pelo historiador para o enfrentamento às formas brutais de exploração do trabalho na agropecuária brasileira: a extensão da legislação trabalhista, então já a fazer parte do cotidiano fabril e urbano, aos trabalhadores rurais. A simples aplicação da legislação na área rural seria capaz, na ótica de Caio Prado, de restringir a ação abusiva do proprietário no trato com seus empregados, transformando a relação empregador/empregado em mero contrato de trabalho, através do qual prevaleceria a igualdade jurídica entre as partes.

Quanto às relações com o imperialismo, para Caio Prado, o Brasil estaria submetido a um processo sui generis de industrialização, numa coleção desconexa de unidades filiadas aos trustes internacionais, meras extensões deles no país. Nas suas bases, a economia brasileira permaneceria a constar no sistema econômico internacional como produtora e fornecedora de produtos primários aos países centrais do sistema, com a diferença de que a troca passou a ser feita com as manufaturas produzidas dentro do próprio país, pelas filiais aqui estabelecidas das mesmas empresas estrangeiras. Assim, a economia nacional mantinha-se, sob a capa e com as insignificantes compensações de um progresso muito mais aparente e de fachada que real, num estágio inferior de desenvolvimento e sem a possibilidade de atender efetivamente às necessidades da grande maioria da população (PRADO JÚNIOR, 1960b: 4).

Para reverter tal quadro, seria preciso apostar em uma política nacionalista (pois não se trataria ainda, segundo Caio Prado, de engendrar planos utópicos) capaz de promover uma industrialização fundada na iniciativa nacional, privada e pública, voltada não para a exploração do restrito mercado suntuário de reduzidos setores privilegiados da sociedade, mas a serviço dos interesses e necessidades essenciais do país e das grandes massas. Na agenda da luta anti-imperialista, cumpriria tornar efetivo o monopólio estatal das transações financeiras com o exterior, a fim de evitar as remessas de lucros às matrizes dos trustes internacionais. A intervenção estatal na economia brasileira, visando promover uma industrialização com bases genuinamente nacionais, seria uma das chaves centrais na proposição caiopradiana, sob o argumento de que a contradição entre a intervenção do Estado no domínio econômico e a livre iniciativa privada constituiria uma das molas principais da futura transformação socialista do país.

O historiador rejeitava, por fim, a tese da burguesia como uma força revolucionária, assegurando que a burguesia brasileira era francamente favorável ao capital estrangeiro e ao estabelecimento de monopólios internacionais no país, razão pela qual até mesmo o açucarado e róseo reformismo teorizante da CEPAL (PRADO JÚNIOR, 1960b: 4) seria capaz de provocar graves apreensões e escandalizadas reações nos meios burgueses brasileiros. Declarava então que a única classe e categoria social capaz de propulsionar a revolução brasileira, de caráter agrário e nacional naquela fase histórica, seriam os trabalhadores, com o proletariado urbano na vanguarda, conduzindo os trabalhadores do campo.

As críticas de Caio Prado Júnior às teses oficiais PCB, sem dúvida, buscavam desenvolver uma análise mais rigorosa do processo capitalista no Brasil, ao descartar a matriz dualista e pôr em questão, embora de forma incompleta, uma estratégia etapista mais ortodoxa. Mas, ao subestimar e mesmo negar as possibilidades de progresso econômico pleno proporcionado pelas relações capitalistas no Brasil, não conseguiam ir muito além dos limites traçados pelo projeto nacionalista, propondo uma industrialização em bases nacionais e uma reforma agrária que ampliasse o mercado interno e garantisse melhores condições de vida à população. Neste processo, a necessária ação intervencionista estatal cercearia a iniciativa privada, abrindo caminho posterior para o socialismo. Não fica claro de que modo deveria se pensar a luta hegemônica dos trabalhadores na sociedade e no Estado, mesmo com a profissão de fé no proletariado brasileiro expressa pelo escritor, denotando inclusive uma visão eivada de romantismo em torno da questão.

O V Congresso do PCB: consolidando a estratégia nacional-libertadora

Em abril de 1960, o Comitê Central do PCB lançava, no Jornal Novos Rumos, o órgão oficial do PCB, as Teses do V Congresso para discussão, e o debate demonstrou, centralmente, a divergência existente entre dois grupos principais: de um lado, o núcleo dirigente consolidado no interior da direção partidária durante as discussões sobre o processo de desestalinização, do que resultou a elaboração e aprovação da Declaração de Março de 1958 (Prestes, Giocondo Dias, Marighella, Jacob Gorender, Mário Alves, Armênio Guedes, etc); de outro lado, o grupo stalinista (Maurício Grabois, Pedro Pomar, João Amazonas), que, derrotado no Congresso, fundaria o PC do B dois anos depois. As divergências relativas às análises sobre a realidade brasileira e seus desdobramentos políticos, presentes, por exemplo, nos questionamentos de Caio Prado Júnior e de Elias Chaves Neto, editores da Revista Brasiliense, foram tratadas de forma secundária durante o debate, por não representarem no fundo antagonismo com a linha nacionalista.

A pedra de toque da Resolução Política do V Congresso, aprovada em agosto de 1960, foi a definição da burguesia brasileira como uma classe a possuir duplo caráter: por conta de seus interesses imediatos, tendia a chocar-se com o capital monopolista estrangeiro, o qual representaria um obstáculo à expansão dos seus negócios. Ao pertencer a um país explorado pelo imperialismo, a burguesia nacional encerraria um potencial revolucionário, apresentando-se, aos olhos dos dirigentes comunistas, como uma força capaz de opor-se à dominação imperialista. Mas, em função de sua natureza de classe exploradora, da sua fragilidade econômica e política e dos laços inevitáveis com o sistema imperialista, também era levada a promover acordos e concessões com o capital estrangeiro, na defesa de seus interesses.

A burguesia brasileira, na concepção do PCB, apresentava-se como uma força anti-imperialista inconsequente, dividindo-se em um setor entreguista minoritário e uma facção vacilante majoritária, que poderia, mesmo assim, abraçar a causa nacionalista. Por conta disso, a revolução brasileira, naquela etapa histórica, era caracterizada como anti-imperialista e antifeudal, nacional e democrática. Um outro elemento a contribuir para tal caracterização da revolução brasileira era a conjuntura internacional, ao indicar que a superioridade crescente do socialismo sobre o capitalismo no plano mundial, o desenvolvimento ascendente do movimento de libertação dos povos e o consequente debilitamento do sistema imperialista (PCB, 1980: 46) exerceriam poderosa influência favorável ao crescimento das forças anti-imperialistas e democráticas no Brasil.

No PCB, continuava a imperar a noção de que o capitalismo, internamente, configurava um fenômeno de caráter progressista, em contraste com a suposta realidade de um sistema em acelerada decadência na arena internacional. A formação da aliança com a burguesia nacional, no entanto, deveria ser acompanhada da luta permanente contra a intensificação da exploração capitalista e contra as tendências burguesas de conciliação com o imperialismo. Na medida em que o proletariado se empenhasse em conquistar a hegemonia do movimento nacionalista e democrático, cada vez mais se colocaria na ordem do dia o antagonismo de classe entre trabalhadores e capitalistas brasileiros, na perspectiva de se criar, as premissas imprescindíveis ao salto qualitativo para a etapa socialista da revolução (GORENDER, 1960: 9).

Da parte dos pesquisadores que influenciaram o pensamento dos dirigentes pecebistas e de amplos setores da esquerda brasileira, há que destacar as formulações do historiador Nélson Werneck Sodré, que, no livro Introdução à Revolução Brasileira, por exemplo, via no nacionalismo o grande divisor de águas na história do Brasil recente, por seu conteúdo libertador na luta contra as forças econômicas externas, por estar imbuído do ideal democrático e popular dos grupos sociais em ascensão e por possuir caráter revolucionário, pela capacidade de superar o que no Brasil ainda havia de colonial. Havia o entendimento, da parte de Sodré, de que as classes sociais interessadas na transformação revolucionária da realidade nacional constituiriam o conjunto compreendido pelo campesinato, o semiproletariado, o proletariado, a pequena burguesia e as partes da alta e média burguesias que tinham seus interesses confundidos com o interesse nacional. Esta seria uma força majoritária inequívoca e invencível, se organizada, na luta contra os latifundiários, a alta e a média burguesia comprometidas com o imperialismo (SODRÉ, 1967: 208-209).

Para os formuladores da estratégia pecebista, as condições impostas pelo desenvolvimento das relações capitalistas no Brasil teriam colocado, objetivamente, a burguesia industrial brasileira em rota de colisão com o imperialismo. As condições subjetivas, porém, traduzidas na tendência a conciliações, vacilações e concessões ao inimigo externo, naquilo que, nos documentos dos comunistas, expressariam a natureza dúplice e conciliadora da burguesia, impediriam o pleno desafogo do processo em direção às transformações estruturais da sociedade brasileira.

Não se percebia que, justamente em função de garantir a expansão dos seus negócios em tempos de capitalismo monopolista, os setores mais ativos da burguesia brasileira já vinham se associando aos trustes internacionais, fato, contudo, identificado pelos dirigentes do PCB como “vacilação” e “conciliação” com o inimigo. Daí que o papel principal reservado à classe operária, dirigida por seu partido, seria pressionar a burguesia nacional a cumprir a sua “missão histórica”, a fim de que fosse concluído o processo evolutivo do capitalismo no país, possibilitando, em seguida, a passagem para a etapa socialista.

Conclusões
Ao acompanhar as perspectivas descritas acima, portanto, a estratégia do PCB acabou por não se concentrar na conscientização de amplos setores sociais visando a transformação da classe dominada em classe dirigente antes mesmo da tomada do poder, tampouco na criação de um sistema de alianças capaz de mobilizar a maioria dos trabalhadores contra o Estado burguês, com vistas à superação do sistema capitalista, como desejava Gramsci ao desenvolver a proposta de “guerra de posições”. O núcleo dirigente do PCB, ao contrário, agarrado à fórmula da “guerra de movimento”, herança das teses terceiro-internacionalistas, apostou na agudização da crise social para desencadear o choque frontal com os grupos reacionários, ao mesmo tempo em que a posição subordinada à “burguesia nacional” na política de alianças o fez investir na costura de um acordo com o governo, confiando centralmente no aparato militar deste para conduzir o confronto em favor das forças populares.

Tal posicionamento, entretanto, jamais poderia ser confundido com uma atitude meramente conspirativa ou “golpista”, como pretenderam indicar alguns historiadores, segundo os quais a postura de oposição cada vez mais dura às “vacilações” do governo João Goulart, associada a atos mais radicais como a aceitação da palavra de ordem “reforma agrária na lei ou na marra” e a solidariedade ao movimento rebelde dos sargentos e marinheiros, denunciariam que o PCB trabalhava a possibilidade de abraçar um caminho extra-legal, passando a secundarizar as instituições, a desprezar a legalidade democrática vigente (SEGATTO, 1995: 164-170).

Este tipo de interpretação não leva em conta que a estratégia nacional-libertadora estava inserida em projeto mais amplo da revolução socialista no Brasil, cujas regras sociais e políticas deveriam ser completamente diferentes das normas legais vigentes em um país como o Brasil, em que a chamada “legalidade democrática” nem de longe representava a superação das práticas autoritárias historicamente construídas pelas classes dominantes no exercício do poder. É preciso reconhecer que, no seu projeto de longo prazo, os comunistas desejavam ultrapassar os marcos institucionais existentes em favor das classes populares, para que estas deixassem de ser meras coadjuvantes ou expectadoras do processo político legal (ALMEIDA, 2003: 88). A luta pela ampliação dos espaços democráticos na sociedade brasileira de fato fazia parte do programa político mais geral abraçado pelos comunistas, os quais, em diversos documentos propuseram a implementação de medidas concretas neste sentido, como a extensão do direito de voto a analfabetos, soldados e marinheiros, assim como a legalidade plena para o PCB, em função das quais seria necessário promover alterações na Constituição em vigor.

É evidente que os comunistas do PCB não haviam despertado para a importância da questão democrática no grau de radicalidade que ela adquire em Gramsci, o qual prevê a necessidade da conquista de amplos espaços de participação política, com o crescimento da sociedade civil perante a sociedade política nas formações sociais de capitalismo avançado, a fim de que o partido revolucionário promova, no processo de construção da hegemonia, a reforma intelectual e moral necessária à luta pelo socialismo. A passagem do momento meramente econômico (egoístico-passional) para o momento catártico (ético-político), ou seja, a passagem da necessidade à liberdade, ou ainda, do determinismo econômico à liberdade política, momento no qual a classe, graças à elaboração de uma vontade coletiva, não é mais um simples fenômeno econômico, mas se torna, ao contrário, um sujeito consciente da história (COUTINHO, 2003: 71), não se realizaria sem a ampliação efetiva dos espaços democráticos.

Assim como as análises teóricas gramscianas, aprofundando dialeticamente inúmeras das determinações no campo do marxismo, somente puderam se desenvolver plenamente e adquirir sua forma madura nos tempos do cárcere, após a derrota do movimento operário e dos comunistas italianos para o fascismo, muitas das interpretações acerca da realidade brasileira, hoje hegemônicas no meio acadêmico, foram de fato produzidas após a grande crise sofrida pelos movimentos sociais no Brasil com a perpetração do golpe de 1964. As avaliações que definem o caráter das transformações econômicas no Brasil dos anos 1950 e 1960 como a significar a consolidação do capitalismo monopolista no país, processo no qual o papel reservado aos setores mais dinâmicos da classe dominante desmistificaria totalmente a noção de “burguesia nacional progressista”, sepultando até a expressão “burguesia nacional”, substituída por burguesia brasileira (GORENDER, 1989: 267), somente puderam ser desenvolvidas com profundidade após a conquista do Estado na ditadura, quando então ficaram transparentes as mudanças no sentido da monopolização do capital e as relações umbilicais entre capitais nacionais e internacionais.

Não cabe, pois, à historiografia julgar as atitudes dos sujeitos históricos, mas investigar de que modo e em função de quais condições elas foram produzidas, no contexto em que estavam inseridas. Cabe inferir que a derrota sofrida pela esquerda brasileira e, mais particularmente, pelos comunistas do PCB em todo esse processo, num período marcado por uma intensa agitação social na qual estes sujeitos políticos tiveram participação destacada, esteve intimamente vinculada à imagem de Brasil por eles elaborada. E, no essencial, faltou à esquerda brasileira a compreensão de que, antes mesmo da tomada do poder, a classe dominada precisa se tornar dirigente, para o que seria necessária uma análise criteriosa das condições de desenvolvimento capitalista no país e das relações de força na sociedade, sem o que a reforma intelectual e moral proposta por Gramsci, a ser promovida junto às amplas massas do povo no processo da luta revolucionária, jamais pode acontecer.

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