Crédito: PCB | |
Organização e movimento de massas na Grécia – a experiência do dia 17 de novembro.
Por GCR (PCB-RJ)
Parece haver consenso entre os historiadores da antiguidade grega a respeito do advento de uma nova modalidade de guerra que surgira por volta do século VII ou VIII A.C. O combate tipicamente heróico-aristocrático do período homérico antecedente - aqueles em que a habilidade pessoal dos grandes príncipes e heróis era o que determinava a vitória ou a derrota em guerra – perdia lugar para a ascensão do exército-cidadão, sintetizado na imagem do novo tipo de combatente, o guerreiro hoplita. O modelo de luta baseado na virtude excepcional do guerreiro-herói individual foi sendo substituída, na transição para o período arcaico, pela “guerra de massas” que opunha exércitos de guerreiros bem treinados e disciplinados, mas, sobretudo, dotados da dignidade de cidadãos. O guerreiro lutava não mais em nome de sua glória pessoal, mas pelo bem de seus pares, por algo que lhe ultrapassava, a república.
O hoplita é o guerreiro de infantaria pesada, protegido pela panóplia e armado de grande lança, o que impedia a movimentação rápida típica das guerras narradas por Homero. O desempenho de cada hoplita dependia, necessariamente, do desempenho de toda a falange, composta de outros guerreiros iguais, submetidos a uma mesma rigidez disciplinar e obstinação intrépida. Reunidos sob uma mesma carapaça compacta de armaduras e escudos, atuando como uma espécie de estrutura compósita que ultrapassa os indivíduos, cada guerreiro era o responsável pela proteção do companheiro ao lado sob seu escudo, atuando uns com os outros em movimento sincrônico, plenamente coordenado e planejado. Se nos confrontos heróicos a virtude guerreira mais valorizada era a hýbris, definida como excesso, arrogância e ímpeto, marcas registradas de uma aristocracia que devia se destacar pela excelência bélica, no combate de cidadãos, segundo o modelo da falange hoplítica, a virtude a se buscar era a sophrosyne, ou o equilíbrio, disciplina, o domínio de si próprio em nome do conjunto.
Justifico, agora, esta breve digressão que não pretende ser, de modo algum, uma referência caricatural à Grécia Antiga - o que penso ser bastante enfadonho para um povo que já construiu mais de dois milênios de história desde este período pelo qual são constantemente lembrados e a que são tão associados. Se faço esta referência ao passado, posso dizer que o objetivo foi melhor descrever uma experiência bastante atual. No dia 17 deste mês, em Atenas, ao lado de camaradas e amigos do KKE (Partido Comunista da Grécia), tive a oportunidade de participar de uma grande passeata organizada pela PAME (Frente Militante de Todos os Trabalhadores) e outros movimentos (como o MAS, frente estudantil).
A ocasião da passeata era a homenagem anual prestada à insurreição dos estudantes e trabalhadores da Universidade Politécnica de Atenas, em 1973, contra o governo militar da Junta dos Coronéis. O movimento foi brutalmente massacrado pelo exército, com a entrada de tanques dentro do campus universitário, matando e ferindo os insurretos. O 17 de novembro ficou, assim, marcado como dia cívico em memória deste episódio trágico. Anualmente, durante a manhã e o início da tarde, os portões da Universidade ficam abertos e montanhas de flores e objetos são depositados em memória dos mortos da ditadura. Ao final da tarde costumam ocorrer as grandes manifestações. Foi com grande alegria que pude participar da passeata da PAME nesta última quinta-feira, numa marcha que saiu do centro de Atenas e terminou em frente à embaixada dos Estados Unidos – aliado e cúmplice do governo ditatorial grego, repetindo naquele país sua história de conivência com os regimes de exceção no Brasil e América Latina.
Uma característica do movimento que me saltou aos olhos foi a organização, que não seria tão perceptível se não fosse associada a uma outra característica absolutamente marcante do atual momento grego: a enorme quantidade de participantes, algo por mim nunca antes visto em quase 15 anos de militância carioca. A quantidade de pessoas concentradas nas proximidades da Praça Omonia era ao mesmo tempo aterradora e revigorante. Além disso, pensar em atos políticos bem organizados e planejados não parece verossímil num contexto de manifestação de massas, como foi a que pude presenciar. Entretanto, a relação entre “movimento de massas” e “organização”, que parecia inicialmente contraditória, tornou-se posteriormente plena de sentido na visão de um brasileiro que se esforça por entender o fenômeno helênico da forte ascensão organizacional dos trabalhadores e dos movimentos sociais em geral. A coluna de trabalhadores, estudantes, mulheres, crianças, idosos, cadeirantes, jovens, etc. estendia-se por quilômetros de grande densidade humana. O frio, acompanhado de gotas de chuva, não os atemorizava. A polícia - em especial as tropas de choque que espreitavam a cada esquina em pequenos pelotões protegidos por máscaras anti-gás e enormes escudos - também não amedrontava sequer os manifestantes que poderíamos considerar mais vulneráveis no caso de um ataque.
O fato é que esta capacidade de se fazer um ato de massas capaz de reunir uma diversidade grande de grupos sociais e faixas etárias estaria diretamente associada ao fator organizativo. Confesso que fiquei impressionado com a capacidade do povo para organizar o complexo arranjo da auto-proteção proletária, que pude presenciar e que pretendo aqui relembrar a partir do que pude observar e deduzir – muito pouco me foi informado expressamente a respeito.
Cada setor do mundo do trabalho organiza-se em um bloco específico da passeata. Trabalhadores da saúde, educação, setor público, bancários, etc. organizam-se em grupos. A frente de cada um destes, duas ou três filas de proteção, normalmente compostas por homens, em sua maioria mais jovens, empunhando capacetes de motociclismo em uma mão, e uma bandeira vermelha de mastro curto e expesso na outra. Os seus braços entrelaçavam-se de modo a formar uma corrente, numa postura repetida pelas filas de manifestantes “comuns”, que lhes seguiam atrás, compondo fileiras cerradas que se seguiam, linearmente, umas às outras. Fui informado que a formação em corrente seria para evitar a entrada de provocadores no meio da passeata, de modo a facilitar o controle de entrada e saída dos participantes do movimento por parte dos próprios.
Os grupos profissionais-setoriais que, juntos, formavam a grande marcha, chegavam na área de concentração aos poucos, entoando palavras de ordem e recebendo a saudação dos já presentes. Um grupo, contudo, recebeu uma saudação mais efusiva: tratava-se de um destacamento de militares, devidamente uniformizados, que marcharia ao lado do povo – atitude que, ao contrário do que temos Brasil, não parece ser formalmente proibida na Grécia, mas que certamente requer coragem dos que se colocam contra o Estado ao mesmo tempo em que dele estão dentro, compondo sua estrutura mais repressora.
Os estudantes do MAS eram bastante numerosos e pareciam oferecer enormes contingentes de seus braços fortes e juvenis para a proteção do ato. Era frequente a observação de grupamentos do MAS, empunhando as características bandeiras de mastro curto e expesso – assim concebidos para converterem-se em armas de ataque e defesa -, cruzando a multidão ou ultrapassando em fila indiana a marcha principal a fim de, mais a frente, posicionarem-se numa área crítica ou vulnerável da passeata. A engenharia da proteção operava em paralelo à evolução do movimento principal. Nos momentos em que as avenidas percorridas se abriam para outras ruas largas, que poderiam tornar-se flancos vulneráveis, a concentração de protetores com seus capacetes e bandeiras-armas era impressionante. Filas duplas, triplas, de militantes posicionados lado-a-lado, cobrindo todo o espaço possível e impedindo o acesso hipotético de quaisquer elementos estranhos ao movimento.
Talvez o leitor deste relato possa achar exagerada a valorização da segurança da própria passeata, mas me parece correto avaliar que esta é condição fundamental para sua própria garantia como movimento de massas. Afirmo não se tratar de exagero, mas da observação de uma necessidade do movimento dos trabalhadores que atingiu um patamar determinado de acúmulo e mobilização. O acirramento da luta de classes, em qualquer contexto em que se inscreva, reserva novos perigos e desafios àqueles que pretendem organizar a revolução. Vemos, aqui, a maneira pela qual os camaradas gregos vêm enfrentando estas novas adversidades. Recentemente, no site do KKE, foi publicado um vídeo que retrata um episódio marcante ocorrido uma manifestação no final do mês de outubro. Um enorme ato da PAME foi interceptado por militantes de movimentos que se intitulam ultra-esquerdistas/anarquistas utilizando capuzes, gás e outras armas. As inúmeras confusões e manifestações de violência provocadas por estes grupos – há quem diga que com participação de policiais infiltrados – são comumente veiculadas pela mídia como síntese de todo o movimento social grego. No caso em específico, a vitória da organização dos trabalhadores se deu na capacidade destes em mobilizarem imediatamente um contingente de enfrentamento que conseguiu garantir a integridade da passeata e a continuidade de seu percurso, em segurança. Para proteger o ato pacífico, trabalhadores da PAME destacados para o enfrentamento tiveram que fazer valer seus capacetes e bastões.
A mesma mídia que fecha os olhos às grandes manifestações de massas da PAME é a que explora em seus noticiários as bravatas violentas destes pequenos grupos. Segundo bem definiu recentemente Aleka Papariga (secretária-geral do KKE), trata-se daqueles que acham que fazem a revolução quebrando vitrines de lojas e arremessando coquetéis molotov.
De um lado, portanto, o movimento dos trabalhadores precisa providenciar seus mecanismos de proteção contra os ataques violentos destes grupos, seja quando os ataques são voltados para alvos externos à passeata, - mas que pode possivelmente provocar uma repressão policial ao próprio movimento pacífico -, seja quando o alvo é a própria PAME e o KKE. Eu, no núcleo do pacífico movimento de massas, não vi qualquer traço de conflito, mas escutava sons e sentia o cheiro acre das armas químicas que, ao longe, indicavam a presença do conflito. Fiquei sabendo que estes costumam ocorrer no rastro da passeata, por grupos radicais que são impedidos de a integrarem formalmente. Contra o arrivismo dos que se consideram heróis capazes de promover, solitários, a mudança da sociedade atual, opõe-se a proposta dos comunistas, fundada no princípio da organização democrática e solidária, em que cada um, desempenhando com disciplina sua função, garante o sucesso da batalha. As grandiosas manifestações e passeatas organizadas pelos camaradas gregos são a demonstração de que, hoje em dia, mais do que de demonstrações desregradas de de um pretenso heroísmo, precisamos de unidade de ação, planejamento cuidadoso e disciplina revolucionária.
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