Por Antonio Carlos Mazzeo
Maquiavel dizia que a virtude (virtùs) é fundamental para o governo do príncipe. Seu olhar direcionava-se para um mundo em construção, o mundo burguês que se descortinava e construía normas de organização ideológica e política. Aliás, a política constitui o centro de suas preocupações e a virtude do governante a base da política. Um dos grande estudiosos de Maquiavel, Lucio Villari, agudamente acentua a dramaticidade do período de afirmação societal da burguesia, onde o projeto maquiaveliano de Estado tenta operar como uma "obra de arte" mas com fria lógica, juntamente com a imaginação e improvisação. A ideia maquiaveliana da força política revolvente e envolvente constitui a "necessária criatividade que deve compor essencialmente a virtùs do governante.
No mundo moderno, como acentuou Gramsci, o príncipe só pode existir como príncipe intelectual-coletivo (o Partido político de novo-tipo), aquele em que a virtùs materializa-se coletivamente, quando "encarna", entende e expressa a vontade coletiva, na perspectiva da maioria do povo, os trabalhadores (Note sul Machiavelli). A leitura leninista de Gramsci da organização política pressupõe a organização da cultura, como construção de uma hegemonia para uma nova forma de sociabilidade. Era a contrapartida gramsciana às posições de Georges Sorel, para quem o príncipe deveria ser a figura mítica inspiradora e doutrinária da política. Ao limite, um líder (condottiero) fantasioso e inexistente na realidade histórica com fins de cooptação ideológica para uma "ética" abstrata e principista. Sorel insistia que esse condotiero não estava na organização (da vontade coletiva) dos trabalhadores; não encontrava-se na finalidade (teleologia) do movimento social, mas na prática pois a vontade já era atuante por si mesma! Na perspectiva soreliana, o único válido é a vontade espontânea, não organizada.
Como sabemos, o PT enquanto organização de trabalhadores, nunca se propôs a ser um intelectual coletivo do proletariado, mas apenas um organizador das lutas espontâneas dos trabalhadores. Isso explica porque nunca tenha sido elaborada uma "teoria do Brasil" ou uma proposta para a revolução brasileira por parte do PT. Que fique claro, me refiro ao PT como organização. Algumas correntes internas até propuseram esse caminho, mas foram derrotadas na selvagem luta interna, quando saem vitoriosos a socialdemocracia-tardia em aliança com o sindicalismo economicista e espontaneísta. Isso explica, também, o PT como gigante com pés de barro.
De fato, o PT se compõe na contramão do projeto pensado por Lenin e Gramsci. Desde seus inícios, ouvia-se que "a teoria do PT era sua prática". E muitos honestos combatentes sociais e revolucionários caíram nesse canto de sereia. O PT, na verdade, deixou de ser o Moderno Príncipe, o intelectual coletivo que organiza a cultura e constrói a hegemonia do proletariado, para encarnar o mito soreliano da espontaneidade e como diz Gramsci, quando se abandona a perspectiva da ação política revolucionária organizada acaba-se indo para uma atividade passiva, que não pensa teoricamente a ação política (Note sul Machiavelli) e que limita-se ao aspecto preliminar dos movimentos sociais, isto é, limita-se às reivindicações imediatas postas pelo movimento, como aumento de salário, luta contra o custo de vida e assim por diante, deixando de lado o projeto de construção de uma nova forma de sociabilidade.
Essa opção petista pelo espontâneo o fez um partido geneticamente oportunista. Seus zigue-zagues políticos atestam esse oportunismo que oscilou da posição extremista de não alianças com setores progressistas da sociedade, num momento político delicado, às amplas alianças espúrias de hoje!
Esse comportamento errático e oportunista, com ausência da centralidade do trabalho e de finalidade socialista em suas ações políticas, nos explica também seu deslocamento para o campo do Bloco Burguês. Mas houve uma reviravolta na política do PT. De encarnação do condutor-mítico soreliano, passa a ser o líder real da política capitalista. Na verdade, o projeto proletário que nunca se concretizou e que sempre esteve idealisticamente nas intenções petistas, é substituído por outro real e paupável, o projeto de gerenciar a modernização conservadora de reinserção subalterna do capitalismo e da burguesia brasileira aos pólos centrais do capital.
A história tem demonstrado que as organizações de massas com propensões espontaneístas podem oscilar entre a extrema esquerda e a extrema direita, e não esqueçamos das origens populares dos partidos fascistas e de seus líderes. Os fascistas tradicionais criaram a "teoria" da "flexibilização ideológica", para adequar seus discursos e, principalmente suas práticas, à conciliação de classe, onde o proletariado encontrava-se subordinado ao projeto do capital. Assim foi principalmente a ação política de Mussolini. Mas o Duce utilizava o discurso nacionalista-chauvinista em voga na época, o da grande pátria e o do desenvolvimento nacional. A contradição fundamental não era entre capital e trabalho, mas sim contra o inimigo externo, ou dizendo de outra maneira, as burguesias inglesas e estadunidenses em disputa interimperialistas com a Itália e a Alemanha. Esse foi o "caldo de cultura" de justificação ideológica para a expansão imperialista e colonialista dos países que chegaram "atrasados" ao capitalismo industrial.
O Brasil, país que chega ao capitalismo industrial hipertardiamente constituiu uma burguesia que sempre esteve arrimada num Estado autocrático e na ausência de uma revolução democrático-burguesa, tônica dessa burguesia tupiniquim, mas nunca em sua história nacional, pois em sua gênese é umbilicalmente ligada aos centros hegemônicos do capitalismo. Todos os processos de modernização capitalista foram realizados "pelo alto" através de ditaduras bonapartistas. Deodoro e Floriano Peixoto, Getúlio e os 5 milicos de plantão que se revezaram no poder de 1964 a 1985, sem contar ainda, com a autocracia burguesa institucionalizada da República Velha e os dois imperadores anacrônicos. Os que nos interessam mais de perto, dados os limites desse pequeno artigo de cunho jornalístico, Getúlio e os 5 milicos de plantão, utilizaram de muitas práticas fascistas: a cooptação do proletariado para o projeto do capital, a repressão brutal e o nacionalismo. Mas, ironicamente, apesar de autocracias ditatoriais, essas ditaduras jamais foram fascistas no sentido do conceito objetivo e por um simples motivo: o Brasil sempre foi uma economia complementar e subalterna das economias capitalistas centrais e o fascismo tem por pressuposto uma economia imperialista. Pode ter sido um fascismo de "forma", ou um "colonial-fascismo", mas isso é discussão que não acaba mais e um bom tema para um ensaio.
A novidade é o novo momento de modernização capitalista engendrado a partir da década de 1990. A burguesia brasileira procurou criar situações de cooptação desde a crise dos governos militar-bonapartistas para construir o novo Bloco Burguês. O processo passou por esvaziar as movimentações populares pelas Diretas-já, com a conciliação de gabinete que elegeu Tancredo Neves pelo voto indireto (com a derrota da proposta da emenda constitucional pelo voto direto no Congresso) e tentou costurar seu bloco hegemônico com pouco sucesso, até 2002. Faltava uma costura fundamental para essa soldagem que os partidos burgueses não estavam conseguindo, isto é, trazer grandes parcelas do proletariado para essa costura. O PT fez esse papel, com a hegemonização da socialdemocracia-tardia em aliança com o sindicalismo economicista liderado por Lula. Não houve necessidade de um outro golpe autocrático ou bonapartista, o PT fez a ligação, trazendo a CUT para o Bloco Burguês em unidade com a Força Sindical. Mais ainda, Lula, espontaneísta de origem faz sua guinada à direita e se transforma no condottiero de massas necessário para a soldagem do novo Bloco de Modernização Conservadora. Conservadora porque não aprofunda a democracia no Brasil e atrela o movimento operário ao projeto do capital, com o discurso "desenvolvimentista" de um capitalismo subordinado e de uma burguesia subimperialista. Sua virtùs de lider operário limita-se virtuosamente a implantar o novo momento da acumulação capitalista no Brasil. O PT transforma-se em Partido da Ordem (do capital) e Lula num líder demagógico de conciliação e cooptação de classe e de caráter bonapartista.
Há que se romper esse Bloco Burguês liderado por Lula, pelo PT e seus aliados. Apostamos nas mobilizações futuras do movimento proletário e dos movimentos sociais, quando a onda de crescimento for atingida pelo fim desse "ciclo" positivo, típico das oscilações da economia capitalista e agravado pela crise permanente e estrutural do capitalismo hodierno.
Há que se compor, desde já o Bloco proletário e popular, anticapitalista e antiimperialista. Esse é o futuro se quisermos ser, os socialistas e comunistas, alternativa de poder no Brasil
15 de setembro de 2010
Antonio Carlos Mazzeo, formado em sociologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1974), mestre em Sociologia (1986) e doutor em História Econômica.(1997) pela USP, fez pós-doutorado em Filosofia Política na Università di Roma (2000) e Livre-Docência na Universidade Estadual Paulista (2004); foi professor na PUC-SP (1979-1982) e desde 1986 é professor de Ciência Política junto ao Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Faculdade de Filosofia e Ciências - UNESP. É presidente do Instituto Caio Prado Jr - Estudos Políticos Econômicos e Sociais e editor da Revista de debates teóricos Novos Temas. É membro do Comitê Central do PCB.
Exelente texto, mostra muito bem oque aconteceu com o PT. Mas é como disse, ainda tem muita gente boa lá dentro, e eu espero que esses acordem pra vida e tenham coragem de "peitar" os humanizadores do capitalismo.
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