Gerardo Silva
Professor da Universidade Federal do ABC

No momento em que foi anunciado que o Rio de Janeiro seria sede dos jogos olímpicos de 2016, pela primeira vez a serem celebrados no continente sul-americano, a cidade comemorou – além da multidão em Copacabana reunida para esse fim. Por um lado, não era a primeira vez que a cidade apresentava sua candidatura (já tinha sido preterida duas vezes, para sediar as Olimpíadas de 2004 e 2012); pelo outro, já tinham sido realizados os Jogos Pan-Americanos em 2007 e tinha sido confirmada, aproximadamente na mesma época, a realização da copa do mundo de futebol no Brasil em 2014[1]. A grande novidade do anúncio, entretanto, foi a grande popularidade internacional do presidente Lula e, sobretudo, o alinhamento político entre os níveis de governo federal, estadual e municipal para levar adiante a iniciativa. Sem dúvida, esse alinhamento tornou-a viável, tanto em termos institucionais quanto financeiros, fazendo com que o projeto, classificado em quinto lugar na candidatura anterior, passasse agora em primeiro.

Passado esse momento de euforia, entretanto, os problemas começam a aparecer. O primeiro é a clara determinação institucional de blindar o projeto e oferecer o mínimo de informação para o debate público. A população vai conhecendo os detalhes dos projetos através da mídia, a qual, por sua vez, participa ativamente dessa blindagem. Nenhuma voz discordante tem lugar nos principais meios de comunicação massiva (mesmo quando esses meios estejam posicionados contra o governo Lula). O segundo é a distribuição territorial das atividades olímpicas, que tende a privilegiar a já privilegiada Barra da Tijuca[2]. Esse fato não se deve apenas aos interesses imobiliários e/ou das incorporadoras em jogo (já fortemente concentrados nessa região da cidade), mas à própria determinação do COI (Comitê Olímpico Internacional), que vetou, por exemplo, uma iniciativa da Prefeitura do Rio de Janeiro para levar o Centro de Mídia e algumas provas esportivas para o centro da cidade[3].

Esses dois problemas não são, porém, em minha opinião, os mais importantes. A questão principal hoje reside no fato de que o projeto olímpico coincide com o projeto de governo do atual prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, chamado extra-oficialmente de “choque de ordem”[4]. Se, por um lado, a experiência de Barcelona é considerada uma das principais referências internacionais na organização dos jogos (de fato, o antigo prefeito de Barcelona entre 1982 e 1997, Pasqual Maragall, foi contratado como assessor pela prefeitura do Rio de Janeiro), pelo outro, as medidas que estão sendo tomadas pelo governo municipal no plano social espelham-se mais na política de “tolerância zero” implementada pelo ex prefeito de Nova York entre 1994 e 2002, Rudolph Giuliani. Ou seja, o projeto das Olimpíadas transformou-se numa poderosa justificativa para a repressão do trabalho informal (em um país onde o mercado de trabalho formal não alcança os 50% da população economicamente ativa), e, sobretudo, para a remoção de favelas (quando o que se impõe, na maioria dos casos, é sua urbanização), a expulsão da população de rua e o despejo das ocupações do centro da cidade[5]. Entre os movimentos sociais que começam a esboçar alguma resistência já se fala do “choque de ordem” como uma operação de “limpeza social”.


Informe da Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada[6]

Atento aos enormes impactos causados pelos grandes eventos esportivos (as Olimpíadas em particular) nas cidades sede e considerando, sobretudo, as conseqüências sociais regressivas em termos de moradia e habitação que têm acompanhado esses megaeventos, a Relatoria Especial da ONU elaborou um informe amplamente documentado sobre essa problemática questão[7]. Nesse informe, que podemos considerar uma primeira grande tentativa de resistência institucional pelo modo em que são viabilizados os projetos e seus vultosos investimentos, destaca-se o seguinte, com relação às remoções, expulsões e despejos:

28. O legado negativo dos megaeventos incide particularmente nos setores mais desfavorecidos da sociedade. Esses grupos vêm-se afetados desproporcionadamente pela tendência aos despejos forçados, deslocamentos, diminuição da disponibilidade de habitação social, redução da acessibilidade à moradia, carência de lar, distanciamento da comunidade e das redes sociais existentes, restrição das liberdades civis e punição da carência de lar e das atividades marginalizadas. Os deslocamentos e despejos forçados que têm origem no embelezamento e no aburguesamento afetam normalmente a população de baixa renda, as minorias étnicas, os imigrantes e os idosos, a quem se obriga abandonar seus lares e se reassentarem em zonas distantes dos centros da cidade. Da mesma forma, as políticas e leis especiais adotadas para ‘limpar’ (sic) a cidade, resultam na remoção de pessoas sem lar, mendigos, camelôs, trabalhadores sexuais e outros grupos marginalizados das zonas centrais e no seu reassentamento em áreas especiais ou fora da cidade” (2009, p. 11).

Além dessa profética advertência, o documento aborda questões relacionadas com os princípios que orientam a realização dos jogos, principalmente no que diz respeito às dimensões éticas que devem ser respeitadas na sua concepção, organização e realização. Todos os procedimentos do Comitê Olímpico Internacional (COI) relativos à pré-seleção e seleção das cidades candidatas, com efeito, se regem pela Carta Olímpica e pelo Código de Ética da instituição, que estabelecem o sentido humanista dos jogos (de colocar sempre o esporte “a serviço do desenvolvimento harmônico do homem [e] de favorecer o estabelecimento de uma sociedade pacífica e comprometida com a dignidade humana”), e que definem as normas e exigências contratuais que fazem parte do processo, incluindo garantias de transparência e de respeito aos direitos humanos. Porém, a dinâmica de implementação nem sempre é capaz de garantir esses preceitos. Em resumo, o informe nos alerta sobre a existência de elementos de contradição entre a declaração de princípios, a dimensão comercial ou de grandes negócios e a capacidade real do COI de interferir na gestão dos impactos sociais que o megaevento pode vir ocasionar. As condições de realização vão depender, em grande medida, do alcance das ações de inclusão social que cada cidade sede é capaz ou está disposta a promover.


Carta ao COI da Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo – AMPVA

A Carta ao COI é na verdade uma notificação ao COI por parte da Coordenadoria de Regularização Fundiária e Segurança da Posse da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro[8], com base numa solicitação de representação da AMPVA sobre a proposta de remoção da Comunidade Vila Autódromo para definição de um perímetro de segurança para os Jogos Olímpicos de 2016. Essa notificação é mais um capítulo da saga de resistência de um núcleo de 950 famílias de baixa renda que há quarenta anos (quando a região da Barra da Tijuca era uma grande gleba de terras sem futuro definido) ocupam uma área adjacente ao Autódromo Internacional Nelson Piquet ou Autódromo de Jacarepaguá[9]. Desde a década de 1990, com efeito, quando a dinâmica de valorização imobiliária da região alcançou seu ápice, a Prefeitura do Rio de Janeiro vem tentando por diferentes meios remover essa comunidade, alegando motivos tais como “danos estéticos, urbanísticos e ambientais”, entre outros. Essa tentativa tornou-se mais agressiva no contexto dos Jogos Pan-Americanos de 2007, celebrados na cidade.

Ora, no dia 02 de outubro de 2009, quando Rio de Janeiro foi escolhida cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 2016, centenas de moradores da Vila Autódromo tomaram conhecimento, mais uma vez, por meio da imprensa nacional, que deveriam ser removidos para criação de um “corredor de segurança” para garantia do evento, contrariando uma reivindicação histórica da comunidade pelas melhorias urbanísticas e investimentos públicos no local. Assumindo a defesa jurídica da Vila Autódromo a Defensoria Pública encaminha então a notificação, considerando que com essa medida não apenas se estaria violando o direito dos moradores de permanecer no lugar (uma vez que não existe causal de risco a sua própria segurança), mas também os procedimentos estabelecidos na legislação brasileira sobre as remoções, que exigem, no mínimo, a participação direta dos afetados – e o que é mais importante, a comunidade da Vila Autódromo manifesta na Carta ao COI sua firme determinação de não ser removida[10].

Os considerandos da notificação também denunciam a violação dos princípios da Carta Olímpica, a violação da Resolução da Organização das Nações Unidas relativos aos direitos econômicos, sociais e culturais e das recomendações do Informe da Relatoria Especial da ONU sobre moradia adequada e megaeventos, e a violação da legislação interna brasileira e do Estatuto da Cidade[11]. Na conclusão, o documento assinala que “É dever da cidade anfitriã realizar os festejados jogos de forma a não só proteger os direitos fundamentais, mas também promovê-los e assegurar um novo e mais avançado patamar de democracia política, econômica e social”. Abre-se dessa forma, com a atitude da Defensoria Pública e a Carta ao COI, uma possibilidade efetiva de questionamento ao projeto olímpico e de debate público sobre sua necessidade de adequação aos problemas sociais da cidade. Contudo, ela não possui meios nem atribuições para iniciar esse debate que deveria ser apropriado pelos movimentos.


O Conselho Popular e o REME (Rede Megaeventos Esportivos)

Por enquanto, as ações dos movimentos sociais e o debate público sobre os grandes eventos permanecem difusos e fragmentados. Nos últimos tempos, vários eventos têm acontecido na cidade (e vários estão previstos) alertando sobre os rumos claramente autoritários e perversos que estão adotando tanto o projeto olímpico quanto a Copa do Mundo de Futebol. O resultado, porém, não tem sido muito satisfatório em termos de articulação e organização dos movimentos. No caso do Conselho Popular do Rio de Janeiro, por exemplo, que reúne várias comunidades, a Pastoral de Favelas, os Movimentos Sociais Contra a Remoção e pela Moradia Digna, a Defensoria Pública e outros militantes, a questão dos megaeventos só agora começa a entrar com firmeza na pauta principal do conjunto de reivindicações políticas[12]; já para o REME (Rede Megaeventos Esportivos), que reúne um grupo ainda pequeno e variável de lideranças comunitárias, pesquisadores universitários e militantes, o desafio atual é o de ganhar fôlego na sua capacidade de mobilização dos atores sociais interessados no debate sobre quais poderiam ser os caminhos de uma “Olimpíada para todos”, visivelmente mais democrática do que está aparecendo em cena – enquanto isso, decisões estão sendo tomadas e investimentos estão sendo feitos! Nesse sentido, resulta imperativo neutralizar o quanto antes o “choque de ordem” implementado pelo atual prefeito Eduardo Paes para poder enxergar de maneira mais estratégica o que realmente está em jogo por trás dos Jogos.



Notas


[1] E também as Olimpíadas Militares de 2011, a segunda maior competição do mundo, que servirá como teste para 2016.


[2] A Barra da Tijuca é uma das regiões economicamente mais expressivas da cidade do Rio de Janeiro, e uma das que mais crescem. Grandes empresas migraram para a Barra da Tijuca na década de 1990 em decorrência do boom da construção civil e da oferta de espaços e novos empreendimentos empresariais. Atualmente também é considerado um dos principais centros gastronômicos e de entretenimento da capital.


[3] Não considerada na proposta original dos Jogos Olímpicos, que se concentra na zona oeste, principalmente na Barra da Tijuca, vislumbrou-se a possibilidade de atrair parte de seus benefícios para a região central da cidade. Propôs-se então o projeto “Porto Maravilha” como uma operação de revalorização do centro da cidade a partir da recuperação urbanística de um dos antigos cais do porto, à maneira de Barcelona, Buenos Aires e outras experiências internacionais já consagradas. Para isso, o projeto pleiteou a construção do centro de mídia dos jogos (que o projeto original prevê concentrar na Barra da Tijuca, junto com maioria das atividades esportivas), o deslocamento de uma parte da vila de mídia e a realização de algumas provas olímpicas tais como boxe, levantamento de peso, tênis de mesa e badmington. Essa mudança foi vetada pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), em maio de 2010, por entender que comportaria problemas “logísticos” de difícil solução. Também foi descartada a relocalização do centro de mídia (impressa e televisiva). Contudo, concordou-se em trazer para o centro do Rio de Janeiro boa parte de Vila de Mídia e da Vila de Árbitros que, ao todo, representariam mais de 8000 unidades habitacionais novas na região.


[4] Logo depois de assumir o seu mandato, que abarca o período 2009-2013, o atual prefeito (que antes foi subprefeito da Barra da Tijuca e Jacarepaguá) criou a Secretaria Municipal de Ordem Pública, órgão responsável pela implementação do “choque de ordem”. Sobre a relação de total cumplicidade entre esta política e a mídia hegemônica, ver Pablo Laigner e Rafael Fortes, “A criminalização da pobreza sob o signo do ‘choque de ordem’: uma análise dos primeiros cem dias de governo Eduardo Paes a partir das capas de O Globo” in: Comunicação & Sociedade, Ano 31, n. 53, jan./jun. 2010.


[5] A pressão sobre a população de rua e as ocupações do centro da cidade se deve principalmente ao projeto “Porto Maravilha”, que assume claramente uma dimensão de especulação imobiliária de natureza financeira (cf. Eduardo Domingues, Operações Urbanas Consorciadas e o Projeto Porto Maravilha, 2010, mimeo).


[6] O informe foi elaborado pela Relatora Especial em exercício Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista brasileira. Suas opiniões sobre este e outros assuntos relacionados com as problemáticas da habitação social e da cidade podem ser acompanhados no seu blog: http://raquelrolnik.wordpress.com.


[7] Na verdade, o informe tem como foco o direito à moradia adequada, como consta no título, mas ele é muito mais abrangente e inclui questões tais como: efeitos positivos e negativos nas transformações urbanas, marco de direitos humanos aplicáveis aos megaeventos, procedimentos e regulamentações dos Jogos Olímpicos e Copa Mundial de Futebol, processos de licitação e seleção, o papel das cidades e dos patrocinadores, etc.. No final são apresentadas recomendações, tanto para os Estados quanto para o COI e a FIFA.


[8] A Coordenadoria de Regularização Fundiária e Segurança da Posse da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, através do Núcleo de Terras e Habitação, é a principal instituição de defesa jurídica das comunidades do Rio de Janeiro, zelando pelo direito a moradia das populações de baixa renda.


[9] O Autódromo Internacional Nelson Piquet, mais conhecido como Autódromo de Jacarepaguá, por estar localizado às margens da lagoa homônima, foi inaugurado em 1978, e até 1989 sediou as provas do GP do Brasil de Fórmula 1. Parte da comunidade da Vila Autódromo trabalhou na sua construção.


[10] O caso da Vila Autódromo é citado no Informe da Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada.


[11] O Estatuto da Cidade é a denominação oficial da lei 10.257 de 10 de julho de 2001, que regulamenta o capítulo "Política urbana" da Constituição brasileira.

[12] Favela também é cidade”, manifesto do Conselho Popular do Rio de Janeiro e dos Movimentos Sociais Unidos contra a remoção, (Revista Global/Brasil nº. 12, 2010).
[Edición electrónica del texto realizada por Miriam-Hermi Zaar]

© Copyright Gerardo Silva, 2010
© Copyright Biblio3W, 2010

Ficha bibliográfica:

SILVA, Gerardo. Olimpíadas, choque de ordem e limpeza social no Rio de Janeiro. Algumas resistências em curso. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, Vol. XV, nº 895 (18), 5 de noviembre de 2010. <http://www.ub.es/geocrit/b3w-895/b3w-895-18.htm>. [ISSN 1138-9796].

Fonte:http://www.ub.edu/geocrit/b3w-895/b3w-895-18.htm