segunda-feira, 18 de março de 2013

Democracia de cooptação e o apassivamento da classe trabalhadora



Mauro Luis Iasi#

“O Nada de qualquer coisa é uma nada determinado”
Hegel (Grande Lógica)

    O capital cumpriu sua tarefa, mundializou-se, monopolizou-se, estendeu suas garras dissolvendo as mais ternas ilusões românticas no frio calculo egoísta, subordinou ou campo à cidade, a ciência à indústria, a estética ao mercado, mercantilizou todas as esferas da vida. Na sua forma madura e parasitária, bem diversa daquela pela qual os ideólogos liberais projetavam seus mitos futuros, o capital assume a forma de sua negação tornando-se um enorme entrave à vida humana.
    Bom, então... “o invólucro rompe-se, soa a hora da propriedade capitalista” e... Nada!  Os expropriadores continuam expropriando e ideologicamente se produz uma inversão fantástica: é o projeto socialista e revolucionário que parece perder a atualidade sendo apresentado como pura anacronia.
    O capital em sua forma madura, parasitária, exige que seu domínio implique em um grau cada vez maior de cooptação e apassivamento do proletariado. Nas palavras de Gramsci, um “transformismo”, ou seja, uma “absorção gradual mas contínua, e obtida com métodos de variada eficácia, dos elementos ativos surgidos dos grupos aliados e mesmo dos adversários e que pareciam irreconciliáveis inimigos” (Gramsci, 2011: 318).
    É certo que pelo centro do sistema, nos EUA e Europa, os trabalhadores andam agitados e indignados, saindo as ruas e protestando, mas a ordem parece resistir à seus sinais de agonia e a esquerda declama Saramago numa profética sentença: “a juventude não sabe o que pode e os velhos não podem fazer o que sabem”.
Por aqui as coisas são mais prosaicas. O capital alcança taxas de acumulação inimagináveis (a Petrobrás lucrou R$ 35.189 bilhões em 2010, com elevação de 17% ante o ano anterior; o Bradesco obteve um lucro líquido de R$ 10 bilhões em 2010, resultado 25, 1% maior que o registrado em 2009, a Vale triplicou seu lucro chegando a 30,1 bilhões no mesmo ano) que refletem uma intensificação brutal da taxa de exploração acompanhada dos ajustes necessários à boa saúde das relações capitalistas, flexibilizando direitos e impondo perdas históricas aos trabalhadores. No entanto, diante de tal massacre, estamos no ponto mais agudo de uma defensiva da classe trabalhadora que parece respaldar os rumos da ordem capitalista, anestesiada, apassivada. Nada!
A mesma classe trabalhadora que entre o final da década de 1970 e boa parte dos anos 1990 equilibrou a correlação de forças e impôs patamares de resistência à acumulação de capitais, garantiu direitos e os inscreveu na ordem constitucional consagrada em 1988, parece assistir passiva ao desmonte destas garantias e direitos, emprestando, ainda que de forma não ativa, seu respaldo à atual forma de acumulação que se implantou no início do século XXI. A mesma classe que resistiu ao desmonte do Estado e das Políticas Públicas, alia-se aos seus antigos adversários para desarmar a classe trabalhadora diante da disputa do fundo público agora colocado a serviço da acumulação privada, em nome de um mito revivido: o desenvolvimento.
O principal trunfo do setor político que se mantêm no poder é o controle e o apassivamento da classe trabalhadora. O senhor Michel Temer, então candidato à vice presidente na chapa de Dilma Rousseff, acalmando uma platéia de investidores estrangeiros, declarou que o pais estava pronto para receber investimentos, uma vez se trata de um pais “internamente pacificado”, no qual se “os movimentos sociais não estivesses pacificados, se os setores políticos não estivessem pacificados (...) se aqueles mais pobres não estivessem pacificados (...) isto geraria uma insegurança” (Folha de São Paulo, 27 de agosto de 2010, caderno A, p. 8).
    Evidente que esse juízo geral não pode esconder a saudável e honrada resistência de vários setores da classe que se negam ao amoldamento, assim como as formas não explícitas de resistência, como por exemplo a apatia e a forma pouco séria com que os trabalhadores, com razão e prudência, tratam as coisas da pequena política. No entanto, devemos analisar aqui o sentido geral que marca o período e esse parece ser o do apassivamento.
    Como já nos dizia Hegel em sua Grande Lógica, “todo Nada é um nada determinado”, portanto, o que se nos impõe neste momento é perguntar sobre as determinações deste “nada”.

A critica à estratégia Democrática Nacional: o imperialismo e a luta de classes

    Quando estudamos o comportamento político da classe trabalhadora precisamos de partida evitar duas armadilhas: compreendê-lo como mera intencionalidade subjetiva, ou, inversamente, como simples determinação de uma objetividade dada. No primeiro registro o amoldamento da classe trabalhadora à ordem que queria enfrentar se explica por um desvio de direção que leva os trabalhadores ao pântano do pacto social; no segundo as determinações objetivas da crise, dos desenrolar dos fatos históricos dramáticos (a reestruturação produtiva do capital, a crise nos países em transição socialista, etc.), os momentos de crescimento econômico e as migalhas jogadas aos trabalhadores, explicariam a apatia e o amoldamento.
    Acreditamos que as coisas não são tão simples, trata-se de uma síntese de fatores subjetivos e objetivos, mas é preciso refletir sobre a objetividade contida nos ditos fatores subjetivos, da mesma forma que a maneira como a ação política da classe e suas direções incide concretamente no desenho final da objetividade que determinou esta ação. Por isso, quando falamos de um determinado comportamento da classe trabalhadora, devemos relacioná-lo à uma estratégia determinante em um certo período histórico, não como uma escolha arbitrária de uma certa direção ou vanguarda, mas como uma síntese que expressa a maneira como uma classe buscou compreender sua formação social e agir sobre ela na perspectiva de sua transformação.
     É assim que no ciclo histórico que marca a luta da classe trabalhadora brasileira entre os meados da década de 1940 até o golpe empresarial militar de 1964, a estratégia determinante foi a chamada Revolução Democrática Nacional e sua principal expressão política foi o PCB (Mazzeo, 1999; Koval, 1982). Isso não significa que apenas o PCB estava preso a esta formulação, ela consiste um universo programático fundado naquilo que Caio Prado Jr (1978) denominou de uma forma consagrada de compreender a revolução brasileira, “prejuízos herdados do passado que se consolidaram em concepções rígidas, verdadeiros dogmas, que contando como contam com tão longa tradição, se tornam por isso mesmo altamente respeitáveis” (idem: 30). Tal concepção acaba por se impor a todos, mesmo àqueles que empreendem o árduo caminho de criticar a visão “consagrada”.
    Em sua essência, esta maneira consagrada, reside na certeza que a formação social brasileira, pela sua história colonial e sua inserção no moderno sistema capitalista mundial, assumia uma contradição principal entre a prevalência de uma estrutura agrária tradicional e o imperialismo, por um lado, e os vetores que apontavam para o desenvolvimento de uma capitalismo nacional, por outro. Nessa leitura, tanto o imperialismo como o latifúndio (expressão mais nítida da estrutura agrária arcaica), impediam o desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Assim, as demandas de uma suposta burguesia nacional por um desenvolvimento autônomo do capitalismo brasileiro a faria se chocar com os interesses do imperialismo e de seus aliados internos, as oligarquias tradicionais, abrindo espaço para a aliança com o proletariado.
    Conclui, então, Caio Prado Jr.: “A sua etapa revolucionária seria, portanto, sempre dentro do mesmo esquema consagrado, o da revolução “demorático-burguesa”, segundo o modelo leninista relativo à Rússia tzarista” (idem: 36). No caso particular da formação social brasileira esta “etapa” assumiria a forma de uma luta “agrária”, “antifeudal” e “anti-imperialista”. Ainda nas palavras de Caio Prado Jr., agrária por se contrapor os supostos “restos feudais” que se apresentavam no corpo da estrutura agrária tradicional, anti-imperialista “porque oposta à dominação das grandes potencias ‘capitalistas’ (idem: 37).
    Aqui cabe um parêntesis que nos parece importante. Alem da conhecida critica sobre a impropriedade de se falar em feudalismo no Brasil, há um aspecto que fica obscurecido pela quase evidência desta primeira incorreção: a forma como se define imperialismo. Este obscurecimento pode levar a compreensão, ao meu ver equivocada, que a formulação da revolução democrática nacional é contraditório porque, por um lado erra ao identificar a estrutura agrária conservadora como feudal, ainda que acerte na luta anti-imperialista. Nos parece que há um erro também aqui. Como acontece em outros casos, a posição autoproclamada como “leninista” é pouco leniniana.
    Lênin, em seu famoso trabalho de divulgação sobre o tema do imperialismo, combate uma postura que considera teoricamente insustentável e com conseqüências práticas extremamente nocivas. Resume, citando o autor da formulação equivocada, da seguinte forma:

O imperialismo é um produto do capitalismo industrial altamente desenvolvido. Consiste na tendência de toda nação capitalista industrial a submeter ou anexar, cada vez mais, regiões agrárias mais extensas, qualquer que seja a origem étnica de seus habitantes (Kautsky apud Lênin, 1976: 461).

    Ora, esta não é em absoluto a posição de Lênin sobre o imperialismo, mas a de Kautsky. Seguindo o raciocínio kautskiano a formulação da “etapa democrático burguesa” faz sentido. O interesse do imperialismo, que aqui se transforma em uma “tendência”, em um opção política, é de anexar áreas agrárias em busca de suas matérias primas e de mercado para seus produtos. Nesse ponto coincide com os interesses dos setores oligárquicos ligados à produção de produtos primários e daí a aliança sugerida que garantiria o poder oligárquico, mas impediria o desenvolvimento de relações propriamente capitalistas nestas formações sociais e, assim, ferindo os interesses de uma burguesia nacional.
    No entanto, a definição de Lênin é outra. Para ele “o imperialismo é o capitalismo em sua fase de desenvolvimento na qual toma corpo a dominação dos monopólios e do capital financeiro, na qual adquire especial importância a exportação de capitais” (Lênin, 1976: 460). Diante da precisão do conceito de Lênin, a definição de Kautsky, nas palavras do líder bolchevique, “não serve absolutamente para nada”.
    O ponto mais problemático não é exatamente a ênfase à tendência a anexação, de fato uma tendência verificável, quando mais se considerarmos o início do século XX, momento em que Kautsky escreve. O ponto que Lênin destaca, curiosamente é outro. Diz Lênin: “a particularidade do imperialismo não é o capital industrial, mas sim o financeiro”(idem: 462). Esta abordagem permite ao marxista russo relacionar o rápido crescimento do capital financeiro com uma intensificação da política anexacionista no final do século XIX. Lembremos que para Lênin, seguindo a definição de Hilferding, capital finaceiro não é o mesmo que capital bancário, mas a fusão do capital industrial com o capital bancário, formando o traço essencial da etapa imperialista: o capital financeiro.
    Como sabemos o imperialismo, assim entendido, é a expressão do capitalismo monopolista plenamente desenvolvido. O auge da livre concorrência, por volta das décadas de 1860 e 1870, coincide com a formação, ainda embrionária dos monopólios, na crise 1873 e seus desdobramantos posteriores eles se tornam mais sólidos, mas é apenas no inicio do século XX com a crise de 1900 a 1903 que os monopólios se consolidam e se tornam “a base de toda a vida econômica” e o “capitalismo se transforma em imperialismo” (idem: 389).
    O que nos chama a atenção é que, partindo da definição de Kautsky, o imperialismo se apresenta como um fator de entrave ao desenvolvimento das relações capitalistas nas áreas em que se impõe; ao passo que compreendendo o fenômeno a partir da definição de Lênin, o imperialismo se torna um fator de generalização das relações capitalistas. Por este ângulo altera-se substancialmente o caráter da revolução. Para Kautsky trata-se da revolução nacional, para Lênin da ante-sala da revolução socialista.
    O que caracterizava o “velho capitalismo”, continua Lênin, o capitalismo própria da livre concorrência, era a exportação de mercadorias, enquanto o que “caracteriza o capitalismo moderno, no qual impera os monopólios, é a exportação de capitais. Talvez nem mesmo Lênin tenha tirado todas as conclusões possíveis desta afirmação. A exportações de capitais revela uma determinação mais profunda que é aquilo que Marx denominou de “queda tendencial da taxa de lucro” (Marx, s/d, livro III, vol. 4: 242) e, mais precisamente, uma das contratendências para enfrentá-la. Em poucas palavras os fatores que atuam no sentido de frear a queda na taxa de lucro, causada em última instância pela alteração contínua da composição orgânica do capital em favor do capital constante, são a) o aumento da exploração do trabalho; b) a redução dos salários; c) o barateamento dos elementos do capital constante; d) a formação de uma “superpopulação relativa”; e) ampliação do mercado externo; f) e aquilo que Marx denominou do aumento do capital em ações e que aprofundou no livro seguinte como formação do capital portador de juros.
    Aqui nos interessa dois aspectos: primeiro que com os elementos que Marx dispunha a ampliação dos mercados era vista pelo ângulo do controle de fontes de matérias primas e espaço de realização dos produtos, ao passo que Lênin pode ver agora este movimento como a partilha de áreas de influência para onde exportar capitais (ou seja, não apenas dinheiro, mas inclusive processos produtivos inteiros); segundo que a base das contratendências à queda da taxa de lucro se fundamentam na intensificação da exploração, no rebaixamento dos salários e na superpopulação relativa. Esse segundo aspecto nos leva diretamente à nossa questão: a intensificação da exploração não levaria ao acirramento da luta de classes?
    Essa questão tem que ser respondida levando em conta os dois aspectos indicados, isto é, a exportação de capitais e a conseqüente partilha do mundo, e a intensificação da exploração dos trabalhadores. O primeiro aspecto permite ao capitalismo monopolista e imperialista intensificar a exploração nas áreas de expansão, ao mesmo tempo que negocia os termos de convivência com o proletariado no centro do sistema levando àquilo que Lênin denominou de uma “aristocracia  operária”. Diz o revolucionário russo no prólogo à edição francesa de sua obra sobre o tema:

É evidente que os gigantescos superlucros (já que se obtêm sobre os lucros que os capitalistas extraem de seus operários em seu próprio país) permite corromper os dirigentes operários e a camada superior da aristocracia operária. Os capitalistas dos países “adiantados” os corrompem, e o fazem de mil maneiras, diretas e indiretas, abertas e ocultas (Lênin, 1976:  379).

    Uma leitura desatenta nos levaria a acreditar que se trata de um problema moral, ou seja, de uma corrupção direta pela compra das lideranças ou o oferecimento de benesses, mas logo adiante o autor oferece outros elementos que nos parecem pistas importantes. Na seqüência Lênin caracteriza este setor como formado por “operários aburguesados”, inteiramente “pequenos burgueses por seu gênero de vida, por seus vencimentos e por toda sua concepção de mundo” (Lênin, idem, ibidem) de maneira que na luta de classes acabam por se colocar ao lado da burguesia através de toda manifestação de reformismo e chovinismo.
    Por esse ângulo a estratégia Democrática Nacional pode e deve ser criticada por um aspecto por vezes secundarizado. Tal estratégica se fundamento numa falácia: o crescimento do capitalista que rompe com seus entraves não capitalistas (sejam ou não identificados com resquícios feudais, formas oligárquicas ou imposição “imperialista”) levaria ao desenvolvimento de um “capitalismo autônomo”  que interessaria tanto à burguesia “nacional” como ao proletariado. No que cabe ao proletariado parece indicar que o desenvolvimento das relações capitalistas levaria ao crescimento do proletariado que diante das contradições do sistema se colocaria em luta por seus objetivos históricos socialistas. Aí se encontra a falácia, o crescimento das relações capitalistas vem acompanhado dos meios políticos próprios do capitalismo desenvolvido, seja na sofisticação de seu Estado seja através dos meios, diretos e indiretos, de amoldamento da classe trabalhadora à ordem do capital, levando ao “aburguesamento” descrito por Lênin ou ao “transformismo” nas palavras de Gramsci.
    A estratégia democrática nacional encontrará seu ponto crítico na própria dinâmica da luta de classes, no golpe de 1964. As classes e setores de classe não se posicionaram como imaginavam as formulações idealmente impostas em detrimento da análise dor real. A burguesia brasileira se aliou ao latifúndio e ao imperialismo contra o proletariado, naquilo que Florestan Fernandes chamou de uma “contra-revolução preventiva”.

Os germes da concepção democrático popular

    Brecht dizia que a nova carne é comida com os velhos garfos. Isto significa que a crítica a uma concepção só pode ser feita com as ferramentas que de uma forma ou de outra compõe o universo cultural e teórico da formulação que é criticada. A lua nova carrega uma noite inteira a lua velha nos braços, dizia o mesmo poeta. Quando se realiza a critica à concepção democrática nacional se aponta para uma síntese que será hegemônica no período que se abriria.
    Destacaremos aqui duas formulações que por sua importância e pertinência acabam sendo representativas deste duplo movimento, ou seja, ao mesmo tempo que criticam a concepção vigente apontam, germinalmente, para os elementos que constituirão a formulação que se tornará determinante. Trabalharemos aqui as contribuições de Caio Prado Jr. ( 1978) e Florestan Fernandes ( 1976).
    Caio Prado Jr., após criticar os elementos daquilo que chamou de “verdades consagradas” e ponderar sobre pressupostos metodológicos que partiam de a priores abstratos, afirma em sua obra que a teoria e o programa de revolução brasileira deve vir da correta análise da conjuntura presente e do processo histórico que resulta, pois é nisso que consiste o fundamento do método dialético, em suas palavras, um “método de interpretação, e não receituário de fatos, dogmas, enquadramento da revolução histórica dentro de esquemas abstratos preestabelecidos” (Prado Jr., 1978: 19).
    Os esquemas abstratos aos quais se refere Caio Prado dizem respeito às formulações do VI Congresso da Internacional Comunista, em 1928, que afirmava que a passagem para a ditadura do proletariado não seria Possível em países classificados como “como coloniais e semini-coloniais”, sem que fosse necessário transitar por uma série de “etapas preparatórias”, em outros termos, “por todo um período de desenvolvimento da revolução democrático-burguesa” (VI Congresso da IC, apud Prado Jr.: 65).
    Lembrando que não há uma mera imposição de tais formulações, mas um processo de absorção que leva em conta os interesses e o próprio desenvolvimento das organizações políticas no Brasil, é fato que o PCB (IV Congresso, 1954, apud Prado Jr, op. cit. : 67) iria sustentar sua estratégia levando em conta esta “verdade estabelecida”. O capitalismo no Brasil estaria entravado pela permanência de relações “pré-capitalistas” ou “semi-feudais”, materializadas em uma estrutura agrária tradicional fundada no latifúndio e na monocultura e, por outro lado, pela presença do imperialismo, com a ressalva anteriormente apresentada.
    Como sabemos, o autor criticará a pertinência de identificar as relações próprias da estrutura agrária brasileira como “feudais” ou “semi-feudais”, apontando para aquilo que denomina de “sentido da colonização” de maneira que, por meios variados, as relações aqui vigentes deveriam ser vistas não como “o latifundiário ou proprietário senhor feudal ou semifeudal de um lado, e o camponês do outro; e sim respectivamente o empresário capitalista e o trabalhador empregado, assalariado ou assimilável econômica e socialmente ao assalariado (Prado Jr, 1978: 105).
    Em resumo, o autor afirma que, considerando as relações de produção determinantes, ainda que existam formas diferenciadas e eventuais que se subordinar as determinantes, as formas de propriedade e o sentido da produção agropecuária, só poderíamos concluir pela sua caracterização como “em essência e fundamentalmente, capitalista” (idem: 107).
    Caio Prado criticará da mesma forma a relações que se estabelece entre a permanência desta estrutura agrária tradicional e o atraso da industrialização. A produção industrial brasileira, até por sua relação com o capitalismo imperialista, apresentou um desenvolvimento de seu nível tecnológico e de sua capacidade produtiva, ainda que um ou outro setor se apresente limitado em seu crescimento por “interesses estranhos ao país” (idem: 121). Ainda que isso ocorra e eventualmente uma iniciativa “nacional” tenha sido prejudicada “pela concorrência de empreendimentos ligados ao imperialismo”, isso não teria gerado uma “oposição política de classe entre a burguesia brasileira e o imperialismo” (idem: 120), isto pelo fato de que os eventuais problemas ou atritos entre a burguesia brasileira e os setores imperialistas “podem perfeitamente (se) ajustar dentro do sistema do imperialismo” (idem: 121).
    Por tudo isso o autor afirma que:

Em suma, embora a burguesia brasileira, ou antes, alguns de seus representantes possam individualmente entrar em conflito com a poderosa concorrência de empreendimentos estrangeiros, e esse conflito se traduza eventualmente em ressentimentos contra o capital estrangeiro, não se verificam na situação brasileira circunstâncias capazes de darem a tais conflitos um conteúdo de oposição radical e bem caracterizada, e muito menos de natureza política. A “burguesia nacional”, tal como é ordinariamente conceituada, isto é, como força essencialmente antiimperialista e por isso progressista, não tem realidade no Brasil, e não passa de mais um destes mitos criados para justificar teorias preconcebidas; quando não pior, ou seja, para trazer, com fins políticos imediatistas, a um correlato e igualmente mítico “capitalismo progressista”, o apoio das forças políticas populares e de esquerda (idem, ibidem).

Além da correção da análise e da antecipação dos equívocos hoje em voga daqueles setores que ainda se abraçam ao mito de um “capitalismo progressista” ou um “desenvolvimento de caráter social”, o fundamento da elaboração alerta para o desdobramento político de tal concepção, ou seja, a aliança de classes com a suposta “burguesia nacional”.
Neste ponto, coerente com os pressupostos que assume, o autor sente-se obrigado a definir um desenho do programa da revolução brasileira que se contraponha à formulação democrática-nacional. Não se trata apenas de afirmá-la como socialista, ainda que, destaca o autor, “é claro que, para um marxista, é no socialismo que irá desembocar afinal a revolução brasileira”, mas isso seria uma “previsão histórica sem data marcada nem ritmo de realização prefixado” e, acrescenta, “sem programa predeterminado” (idem: 16). Essa prudência se explica por dois motivos, um de natureza metodológica, ou seja, não impor modelos preconcebidos aos fatos e à dinâmica real e histórica da luta de classes em uma determinada formação social dada, outro um pouco mais complexo e problemático.
Caio Prado Jr. acreditava que a implantação do socialismo no Brasil na situação histórica em que se encontrava era algo “irrealizável” por faltarem “condições mínimas de consistência e estruturação econômica, social, política e mesmo simplesmente administrativa, suficientes para a transformação daquele vulto e alcance” (idem: 165).
Vejam, após desconstruir a lógica etapista e a transposição de modelos como a priores abstratos a serem impostos à realidade, depois de criticar impiedosamente a alternativa democrática nacional e sua aliança com uma suposta burguesia nacional que levasse ao mito de um “capitalismo progressista”, o autor cai em um aparente paradoxo: a revolução democrática nacional tal como apresentada pelo PCB leva à conciliação de classes e a conseqüência derrota dos trabalhadores (confirmada em 1964), mas a revolução socialista, entendida classicamente como socialização dos meios de produção e formação de um Estado do Proletariado e seus aliados, é irrealizável pelos motivos apontados. Isso o leva a uma solução que nos interessa diretamente aqui.
Para o autor o mito do desenvolvimento capitalista como forma de enfrentar as demandas reais que emergem das classes trabalhadoras se explica por uma associação entre “desenvolvimento”, geração de lucros e daí recursos para enfrentar estas demandas. É esta associação que será criticada. Segundo Caio Prado, se o lucro foi um fator extremamente fecundo do desenvolvimento nos países centrais, ou seja, o lucro leva ao incremento do mercado que faz crescer a demanda e daí um nova dinâmica de desenvolvimento, a inserção real do Brasil no sistema imperialista e seus “vícios orgânicos” quebra esta relação. Os monopólios alcançam sua lucratividade sem que precisem responder às demandas dos bens que constituem o fundo de consumo do trabalho e suas demandas por condições de vida e trabalho, pelo contrario, é o constante delapidar de tais condições que constituem as chamadas “vantagens competitivas” para reproduzir a acumulação de capitais aqui nas condições do capitalismo monopolista e imperialista mundial. Por isso conclui:

No Brasil e nas condições atuais, a questão se propõe de forma diferente, porque falta aqui, por efeito precisamente dos vícios orgânicos de nossa estrutura econômica e social que apontamos (...), uma demanda suficiente em consonância com as necessidades fundamentais e gerais, e capaz por isso de permanentemente incentivar uma atividade produtiva que, em ação de retorno, viesse ampliá-la ainda mais (Prado Jr., idem: 164).

Qual, então, a solução? É o autor que nos responde:

Há de essencialmente se atacar a reforma do sistema a fim de impulsionar o seu funcionamento no sentido de um desenvolvimento geral e sustentado. É do aumento da demanda solvável, e sua articulação com as necessidades gerais e fundamentais do país e de sua população, que se há de partir para o incentivo às atividades produtivas que em seguida incentivarão a demanda. Não é possível, repetindo o ocorrido no desenvolvimento capitalista originário, ir no sentido contrário, isto é, da produção para o consumo e a demanda (idem: 164) (grifos meus).  

    Na conclusão do autor deveríamos constatar que “a iniciativa privada, que tem no lucro e somente nele a sua razão de ser, não é suficiente assim para assegurar o desenvolvimento adequado” (idem, ibidem). Lembremos que segundo o juízo do autor uma transformação socialista é irrealizável, portanto, ele é levado a concluir que nas condições da formação social brasileira as atividades econômicas devem ser “controladas por fatores além e acima da iniciativa privada” (idem, ibidem). Isso implica que:

Não se pretende com isso eliminar a iniciativa privada, e sim unicamente a livre iniciativa privada que, esta sim, não se harmoniza com os interesses gerais e fundamentais do país e da grande maioria de sua população, por não lhe assegurar suficiente perspectiva de progresso e melhoria de condições de vida (idem: 165).

    Eis que surgem os germes de uma formulação que seria determinante no ciclo que se abriria com a crise da Ditadura Militar e empresarial inaugurada em 1964. Uma transformação social que tenha que se contrapor a um bloco conservador formado pelo latifúndio, pela burguesia imperialista/monopolista e pela burguesia brasileira que a ela se associa subordinadamente, que se sustente numa ampla aliança dos trabalhadores assalariados da cidade e do campo (lembremos que para ele a luta pela terra não se propunha de forma generalizada e “menos ainda em termos revolucionários” (idem: 139)), junto aos aliados formados pelas massas urbanas que lutam por suas condições de vida, ou seja, um chamado campo “popular”.
    Para que se complete a formulação é necessário responder a uma questão essencial. Como este bloco popular irá impor suas demandas que dirigiram o desenvolvimento em um sentido “alem e acima da iniciativa privada”? A resposta é simples: através de uma correlação de forças que lhes permita chegar e controlar o Estado. Os elementos essenciais estão assim delineados: a negação da estratégia nacional democrática e sua aliança com a burguesia leva a afirmação de um desenvolvimento que se sustente nas demandas da maioria da população, ainda não socialista, mas não mais acreditando no mero desenvolvimento de um capitalismo nacional e a lógica do lucro e da iniciativa privada como vetores de um desenvolvimento que enfrente as demandas populares.
    Há uma ausência importante na formulação de Caio Prado e se trata exatamente da caracterização deste elemento essencial para o desfecho de uma estratégia popular: o Estado. Será Florestan Fernandes que nos dará as pistas sobre este aspecto fundamental.
    As reflexões que constituem o livro A Revolução Burguesa no Brasil foram produzidos em momentos diferentes (entre 1966 e 1973) e copilados para a publicação, mas são, de certa forma, contemporâneos aos estudos de Caio Prado, não no sentido de ter havido uma profunda troca intelectual entre ambos, mas que partilham do mesmo momento e enfrentam os mesmos dilemas, chegando, por caminhos distintos, a conclusões semelhantes.
    Começando por questionar a propriedade de se falar de burguesia e revolução burguesa no Brasil, Florestan afirma que se pode afirmar a existência de uma burguesia no Brasil e de uma Revolução Burguesa desde que não façamos uma análise mecânica que transporte estas categorias sem as mediações necessárias para nossa formação social e sua história. Dito de outra forma:

A questão estaria mal colocada, de fato, se se pretendesse  que a história do Brasil teria de ser uma repetição deformada e anacrônica da história daqueles povos (EUA e Europa). Mas não se trata disso. Trata-se, ao contrário, de determinar como se processou a absorção de um padrão estrutural e dinâmico de organização da economia, da sociedade e da cultura. Sem a universalização do trabalho assalariado e a expansão da ordem social competitiva, como iríamos organizar uma economia de mercado de bases monetárias e capitalistas? (Fernandes, 1976:20)

Desta maneira, em grande parte partindo de pressupostos weberianos, o autor afirmará que o que se dá no Brasil é que um setor da aristocracia somado a outros setores diversos, formam uma congiérie social (literalmente um aglomerado de setores diferentes) que acabam por assumir um padrão de civilização burguesa baseados no lucro, na empresa racional e no mercado, assim como a valorização do urbano sobre o rural. Um “tipo de atitude” voltada ao lucro e a acumulação de riqueza, ligado à inovação, ao talento empresarial, organização de grandes empreendimentos econômicos, entre outros aspectos.
Evidente que o setor da aristocracia rural que iria cumprir este papel seria aquele que por sua natureza estabelecia nexos com as ferrovias, os portos, as empresas de comércio exterior, os bancos e daí com a realidade urbana e o padrão civilizatório burguês. O autor destacará o setor dos cafeicultores e setores da imigração, evidente não aquele que constituirá parte do proletariado, mas aquele ligado aos primeiros momentos da industrialização.
    Esta origem e desenvolvimento da burguesia brasileira marcará as formas pelas quais se implementam aqui a Revolução Burguesa. Desde já salta aos olhos, no mesmo sentido já apontado por Caio Prado, que a inserção do Brasil na moderna era do imperialismo não foi fator de atraso, mas a forma pela qual se produziu um tipo de desenvolvimento do capitalismo. Diz Florestan:

Sob esse prisma, o neocolonialismo eregiu-se em fator de modernização econômica real, engendrando várias transformações simultâneas da ordem econômica interna e suas articulações aos centros econômicos hegemônicos do exterior. O principal aspecto da modernização econômica prendia-se, naturalmente, ao aparelhamento do país para montar e expandir uma economia capitalista dependente, sob os quadros de um Estado nacional controlado, administrativa e politicamente, por ‘elites nativas’”(idem: 93).

    Naquilo que aqui nos interessa, este setor ou setores de classe que assumem o padrão burguês, encontrará nas velhas oligarquias e no Estado oligárquico um pólo não de contradição, mas uma aliança essencial ao seu desenvolvimento. A unidade deste bloco, segundo o autor, se dará não apenas pela intersecção de seus interesses (oligarquias tradicionais, setores burgueses e imperialismo), como sua unidade política fundamental se encontra na confrontação dos de baixo. Desta maneira a revolução burguesa no Brasil não pode ser vista nas formas clássicas, ou seja, uma aliança da burguesia revolucionária com o proletariado visando a luta contra uma nobreza feudal.
    O que é característico do estado que desta forma particular de dominação deriva é que o conjunto das classes e setores de classe que se beneficiam desta dominação e que precisam fazer valer seus interesses constituem um segmento pequeno no conjunto da população e que encontra sua legitimação internamente no interior deste pequeno circulo de interesses, levando àquilo que o autor denomina de uma “autocracia”. O domínio burguês não precisou se enfrentar com a velha ordem oligárquica, pelo contrario, encontrou nesta forma os meios de manter e legitimar o domínio burguês. Os saltos e qualidade deste processo, no sentido de consolidação do poder burguês, como no período getulista (1930-1954), chega ao seu ponto culminante com o golpe e a consolidação da autocracia burguesa.
    Assim a Revolução Burguesa no Brasil assume a forma de uma “contra-revolução preventiva” (Fernandes, 1976: 217).  A conseqüência direta desta forma concreta de desenvolvimento da revolução burguesa brasileira é que dois elementos de sua constituição aparecem aqui divorciados. Classicamente, pelos motivos indicados, a revolução burguesa assume a forma simultânea de uma revolução nacional e democrática, mas aqui, em uma forma não clássica, ela se dá pela aliança da burguesia, na verdade um setor oligárquico aburguesado, com a própria ordem arcaica, ou seja, realiza a revolução burguesa, mas não seus aspectos nacionais e democráticos. Nos termos de Florestan trata-se de uma revolução dentro da ordem e não fora da ordem, ou se preferirem, de cima e não de baixo.
    Não basta contrapor um modelo clássico à chamada via prussiana, nos termos de Lênin, uma vez que parece que estamos falando de uma via não clássica da via não clássica. Mais do que uma revolução que implementa a ordem burguesa e cria as condições de desenvolvimento das relações capitalistas de produção a partir do Estado, trata-se de uma revolução que cumpre este objetivo inserida no quadro geral da dominação imperialista e, portanto, não para desenvolver qualquer tipo de capitalismo autônomo, mas para inserir a formação social como área de influência da dominação imperialista, isto é, como área de exportação de capitais.
    Isso implicará que o desenvolvimento da ordem burguesa não ocorra pressionada pelas demandas dos de baixo, pelo contrario, a condição exigida pelo padrão de acumulação é o sufocar destas demandas diante das necessidades dos monopólios e seus aliados internos e externos. O resultado é que:

a massa dos que se classificam dentro da ordem é pequena demais para fazer da condição burguesa um elemento de estabilidade econômica, social e política, enquanto que o volume dos que não se classificam ou que só se classificam marginalmente e parcialmente é muito grande”(idem: 330).

    Assim é que a forma do Estado só pode ser a de uma autocracia, nos termos que define o autor:

Um poder que se impõe sem rebuços de cima para baixo, recorrendo a quaisquer meios para prevalecer, erigindo-se a si mesmo em fonte de sua própria legitimidade e convertendo, por fim, o Estado nacional e democrático em instrumento puro e simples de uma ditadura de classe preventiva (idem: 297).

    Abre-se desta maneira um importante paradoxo para o nosso tema ligado ao problema da legitimação. A ordem burguesa, nestes termos apresentada, tem enormes dificuldades de legitimar-se perante os setores não burgueses, fundamente, àqueles ligados à classe trabalhadora, o que leva ao aspecto repressivo como fundamental e que de fato se confirma com a própria ditadura e o insubstituível papel dos setores militares na política brasileira. Isso não significa, no entanto, que o Estado se restrinja aos aspectos repressivos e que não opere elementos de formação de “consenso”, mesmo considerando a forma da ditadura aberta do capital como no período militar. Aspectos de cooptação, de forte poder ideológico e mesmo de envolvimento através de elementos de hegemonia, nunca deixaram de ser praticados e tiveram papel importante na sustentação da autocracia burguesa. Isso fica evidente na forma getulista (nas leis trabalhistas, no DIP, na organização ideológica da cultura, entre outros exemplos), mas também na Ditadura empresarial-militar inaugurada em 1964, não apenas pela intensa ação ideológica, mas pelos meios de consentimento criados pelo crescimento econômico acelerado que marcou o período.
    No entanto, é evidente que o aspecto repressivo se impõe levando os autores que analisam a formação do estado no Brasil a considerar este aspecto como “estrutural”.  Não é diferente em Florestan. Ele considera que o fato da formação social brasileira, inserida de forma dependente na ordem do capitalismo tardio, manifestar a contradição essencial entre um ciclo restrito à ordem burguesa que se auto legitima nas formas da autocracia e uma maioria daqueles que se localizam fora desta ordem ou apenas parcialmente incluídos, dá um caráter estrutural à autocracia como forma do Estado burguês no Brasil.
    O grande problema de legitimação encontrado no caminho da consolidação da ordem burguesa em nosso país é que uma ordem autocrática, por sua natureza, é sempre uma saída temporária, mas as características estruturais de nossa formação social acabam por impor à autocracia burguesa uma longevidade muito além do que uma forma transitória. Diz o autor:

Os recursos de opressão e de repressão de que dispõe a dominação burguesa no Brasil, mesmo nas condições especialíssimas seguidas ao seu enrijecimento político e à militarização do Estado, não são suficientes para ‘eternizar’ algo que é, por sua essência (em termos de estratégia da própria burguesia nacional e internacional) intrinsecamente transitório” (idem: 321)

    Ao mesmo tempo o desafio da ordem burguesa na busca de sua estabilidade, cedo ou tarde acabaria por exigir o esforço na direção de uma consolidação de sua hegemonia o que implica superar os limites de uma “autonomia de classe para dentro”, no sentido de autoreferenciada no restrito campo dos interesses burgueses, por uma “autonomia de classe para fora”, ou seja, envolvendo seus aliados (Fernandes considera que nos termos da autocracia a burguesia se apresenta intolerante mesmo às manifestações do radicalismo burguês), assim como seus oponentes na luta de classe como elemento essencial da chamada “revolução passiva” (Gramsci, 2011: 317-319).
    Devemos considerar que o problema da legitimação não se resume a um problema político ou ético. Como nos lembra José Paulo Netto (2006) é na passagem para a forma monopólica que a ordem do capital passa a exigir do Estado um conjunto de ações, diretas e indiretas, através das quais a acumulação pode encontrar as condições de sua continuidade, alertando para o fato que:

O que se quer destacar, nessa linha argumentativa, é que o capitalismo monopolista, pelas suas dinâmicas e contradições, cria condições tais que o Estado por ele capturado, ao buscar legitimação política através do jogo democrático, é permeável a demandas das classes subalternas, que podem incidir nele seus interesses e suas reivindicações imediatos. E que este processo é todo tensionado, não apenas pelas exigências da ordem monopólica, mas pelos conflitos que faz dinamar em toda a escala societária (Netto, 2011: 29).

    De certa forma, Fernandes afirma que ao garantir as condições da acumulação capitalista, a autocracia, ao mesmo tempo, dinamiza suas contradições e tende a reapresentar a questão da legitimação do poder burguês perante outros setores e classes que compõe a sociedade brasileira. Neste ponto o autor abre duas possibilidades para aquilo que chama de crise da autocracia burguesa, lembrando que escreve já nos momentos que antecedem a chamada abertura política e o início da transição democrática. Um primeiro cenário seria uma espécie de autoreforma da autocracia na direção de incorporar aqueles setores naquele momento não diretamente envolvidos no restrito círculo do poder burguês; um segundo cenário, dado o caráter estrutural das determinações que se encontram na base da autocracia burguesa, seria a continuidade e o fortalecimento da autocracia burguesa no Brasil.
    Antes de mais nada é preciso considerar que Fernandes não guarda nenhuma ilusão quanto a possibilidade daquilo que chama de uma “revolução dentro da ordem”, neste caso indicando uma autoreforma da autocracia. Para ele a burguesia havia perdido todo seu caráter revolucionário. Estaríamos em suas palavras, entre duas revoluções, uma que vinha do passado e chega neste momento sem maiores perspectivas (a revolução burguesa) e outra que “lança raízes sobre a construção do futuro” (Fernandes, 1976: 295).

Torna-se, assim, muito difícil deslocá-las politicamente através de pressões e conflitos mantidos ‘dentro da ordem’; e é quase impraticável usar o espaço político, assegurado pela ordem legal, para fazer explodir as contradições de classe”(idem : 296).

    O fundamento desta descrença se encontra no fato já citado que para ele as determinações estruturais criam um impasse. A massa daqueles que são colocados fora do círculo do poder burguês apresentam demandas que se chocam com os interesses da continuidade da acumulação de capitais, não por que sua natureza em si coloque estas demandas fora da ordem do capital, não é o caso, mas pelo fato que o poder burguês aqui se articula com a totalidade da acumulação do capital mundial e seu papel na lógica das contratendências à queda da taxa de lucro é operar como áreas de superexploração que sustentam o centro do sistema, assim como as classes dominantes locais, tornando tais demandas uma ameaça a ordem.
    Desta maneira Florestan Fernandes chega a uma categoria que nos parece importantíssima para compreender o momento atual. Considerando que o possível de ser ofertado como caminho que aplainasse o apassivamento dos trabalhadores em uma ordem burguesa desta natureza, seria muito, muito pouco, Fernandes denomina este caminho de uma “democracia de cooptação” (idem: 363). No contexto da crise da autocracia burguesa reapareceria o velho dilema da revolução burguesa no Brasil e de como equacionar o problema político da hegemonia burguesa, agora sob a necessidade de “entrelaçar os mecanismos de uma democracia de cooptação com a organização  e o funcionamento do Estado autocrático”(idem, ibidem).
    Para o autor, naquele momento de sua análise, este caminho seria pouco provável, uma vez que “parece fora de dúvida que as classes burguesas mais conservadoras e reacionárias considerarão exagerado o preço que terão que pagar à sobrevivência do capitalismo dependente, através da democracia de cooptação”(idem: 365), concluindo que:

Até onde pudemos chegar, por via analítica e interpretativa, não padece dúvida de que as contradições entre a aceleração do desenvolvimento econômico e a contra-revolução preventiva só podem ser resolvidas, “dentro da ordem”, não pela atenuação, mas pelo recrudecimento do despostismo burguês” (idem, ibidem).

    De fato, se considerarmos o desenvolvimento imediato dos fatos que seguiram à publicação do livro A revolução burguesa no Brasil, a história parece ter dado razão à Fernandes. Vivemos uma democratização tutelada, uma abertura sob controle na qual os conteúdos mais próximos às demandas populares foram sempre adiados, assim como a permanência indisfarçável de todo o aparato político e jurídico da ditadura como sustentáculo do poder político burguês que se perpetuou. No entanto, a história guardaria, como veremos, uma surpresa.
    Sinteticamente podemos afirmar que a posição de Fernandes é que a Revolução Burguesa se realizou no Brasil, não em sua forma clássica, portanto divorciada de seu caráter nacional e de seus elementos democráticos, o que leva a determinação da forma do Estado burguês como autocrático e sua revolução como, de fato, uma contra-revolução preventiva permanente. Ora esta será a base sobre a qual se erguerá outra dimensão fundamental da chamada estratégia democrática popular.
    Uma vez que a ordem burguesa é impermeável às pressões dos setores radicalizados da burguesia e às demandas das camadas populares e, assim como para Caio Prado ainda que por outros motivos#, Florestan também acredita que uma revolução socialista seria naquele momento impossível, a apresentação das demandas democráticas não realizadas pela burguesia e que coincidissem com os interesses dos trabalhadores, levaria a um impasse cuja solução apontaria para a ruptura socialista.
    É nesta equação que nascerá a famosa formulação de Fernandes sobre a necessária combinação de uma “revolução dentro da ordem” com uma  “revolução fora da ordem”#. Ora esta é, por assim dizer, a alma da formulação democrática popular.

O PT e a estratégia democrática popular

    É bom dizer logo de início que o PT enquanto experiência histórica não nasceu da adesão a uma leitura teórica, muito menos atribuir a responsabilidade pelos desvios presentes a este ou aquele formulador ou intelectual. Como bons analistas que eram, tanto Caio Prado como Florestan captaram elementos do devir, estavam inseridos em uma conjuntura histórica e ao dar respostas às questões de seu tempo acabaram por indicar elementos que o desenvolvimento histórico confirmaria como sendo determinantes no período que se abriu. O PT como partido político e como parte integrante do movimento que a classe trabalhadora empreendeu no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, expressa este mesmo cenário e se tornará o protagonista da estratégia democrático popular e seu ocaso, assim como o PCB em relação à estratégia democrática nacional.
    A identidade do PT em seu início passava por uma clara diferenciação em relação ao PCB, não apenas pela disputa própria do movimento sindical, mas pela necessidade de afirmação que inaugurava um período diferente na história brasileira. É assim que em seu V Encontro (1987) afirmara explicitamente que:

O PT rejeita a formulação de uma alternativa nacional e democrática que o PCB defendeu durante décadas, e coloca claramente a questão do socialismo. Porque o uso do termo nacional, nessa formulação, indica a participação da burguesia nessa aliança de classes – burguesia que uma classe que não tem nada a oferecer ao nosso povo (Resoluções do V Encontro Nacional – 1987, in Almeida, J. ; Vieira, M.A.; Canceli, V., 1997:322).

    Já nos documentos de fundação do PT estão expressas as intenções de independência de classe que aqui se reapresentam. É, entretanto, no V Encontro que a estratégia democrático popular ganha sua forma mais acabada e que pode ser vista nesta formulação:

Nas condições do Brasil, um governo capaz de realizar as tarefas democráticas e populares, de caráter antiimperialista, antilatifundiário e antimonopolista – tarefas não efetivadas pela burguesia –, tem duplo significado: em primeiro lugar, é um governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa, portanto um governo hegemonizado pelo proletariado, e que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária; em segundo lugar, a realização das tarefas a que se propõe exige a adoção concomitantemente de medidas de caráter socialista em setores essenciais da economia e com o enfraquecimento da resistência capitalista. Por essas condições, um governo dessa natureza não representa a formulação de uma nova teoria das etapas, imaginando uma etapa democrático-popular, e, o que é mais grave, criando ilusões, em amplos setores, na possibilidade de uma nova fase do capitalismo, uma fase democrática popular (V Encontro... op. cit: 322).

    Como se vê, neste momento, a estratégia democrático popular é mais uma afirmação de independência do que caminho para a conciliação de classe. No mesmo encontro, a estratégia propriamente dita se delineia de forma ainda mais clara.

Para extinguir o capitalismo e iniciar a construção da sociedade socialista, é necessária, em primeiro lugar, uma mudança política radical; os trabalhadores precisam transformar-se em classe hegemônica e dominante no poder de Estado, acabando com o domínio político exercido pela burguesia. Não há qualquer exemplo histórico de uma classe que tenha transformado a sociedade sem colocar o poder político – Estado – a seu serviço (idem: 312).

    A radicalidade com se apresentava tal proposição vinha combinada com um esforço de introduzir esta “ruptura” em um longo processo de acúmulo de forças, diferenciando as atividades destinadas à tomada do poder, propriamente dito, daquelas que preparam as condições para isso, diferença na qual se insere a distinção de reforma e revolução, entendidas pelos formuladores não como antagônicas. A luta por reformas só seria um erro quando “acabam em si mesma”, ressaltando que “quando ela serve para demonstrar às grandes massas do povo que a consolidação, mesmo das reformas conquistadas, só é possível quando os trabalhadores estabelecem seu próprio poder”, então a luta por reformas se combinaria com os processos de transformação social (idem: 313).
    O que parece ficar evidente é que este momento inicial da formulação democrática popular parte de uma pressuposto semelhante ao que foi expresso por Florestan, isto é, a suposta impermeabilidade da burguesia brasileira e de seu Estado diante das demandas populares (matéria prima da luta por reformas), ou como as formulações e o próprio sociólogo brasileiro afirmarão, as chamadas “tarefas democráticas em atraso”, ou “tarefas não efetivadas pela burguesia”. Desta maneira podemos supor que o essencial à formulação em questão é que a apresentação de tais demandas pelos trabalhadores e a resistência do poder burguês em incorporá-las, seriam o momento dentro da ordem que prepararia a possibilidade da ruptura, na verdade a legitimaria perante a maioria da população.
    Ainda que esta formulação tenha cumprido um papel importante na dinâmica da luta de classes e tenha significado um poderoso instrumento de mobilização, luta e organização dos trabalhadores que refletiu em patamares significativos na constituição de uma consciência de classe (aliás, o mesmo pode ser dito da estratégia democrático-nacional); seu desfecho produziu algo muito distinto daquilo que se esperava.
    Não é o caso de apontar todo o processo pelo qual esta metamorfose se processou#, mas apenas indicar o fato de que nesta transformação a principal vitima foi a independência de classe. Pensada inicialmente como um longo processo de acúmulo de forças que combinaria um braço de ação junto aos movimentos sociais e sindicais, ligados às lutas da classe trabalhadora e outro que refletiria este crescimento de lutas através de patamares institucionais (sindicatos, organizações da sociedade civil e espaços institucionais conquistados via eleitoral nas administrações e parlamentos), processo este que deveria culminar na conquista do governo federal para que se desencadeasse reformas de caráter “antiimperialista, antilatifundiário e antimonopolista”; esta propsta sofreria uma inflexão significativa entre o VI e VII Encontros Nacionais do PT.
    De forma sucinta podemos afirmar que três processos se combinaram nesta inflexão. Primeiro que a dinâmica da luta de classes se acentuou no governo Sarney levando à possibilidade concreta de que uma vitória eleitoral ocorrer mais cedo do que se previa (de fato já um ano depois, em 1988, esta proposta se colocou). No entanto, paradoxalmente, exatamente neste momento outros dois fatores interviriam para minar as bases daquele amplo movimento de caráter socialista que deveria ser a sustentação de um suposto governo democrático e popular que realizaria as reformas propostas.
    A reestruturação produtiva implantada entre o final dos anos 1980 e durante a década de 1990, quebraria a força do movimento operário independente em sua própria base, ao mesmo tempo em que a crise nas experiências de transição socialista em curso, notadamente a URSS, entravam em rápido colapso. Estes vetores se combinam para gerar um resultado inesperado: a possibilidade de chegar ao governo federal, mas sem a correlação de forças que permitiria a implantação das reformas democráticas e populares.
    A solução encontrada, ainda dentro do campo de uma estratégia democrática e popular, é que seria possível e desejável seguir o acúmulo de forças agora dentro deste espaço institucional estratégico, assim como já se supunha se realiza nos espaços institucionais menores conquistados nesse processo (administrações municipais, mandatos parlamentares, máquinas sindicais, etc.).
Vejam que há um raciocino estranho aqui. Não se poderia pensar em uma ruptura socialista por conta de uma certa correlação de forças insuficiente acompanhada de uma consciência de classe igualmente insuficiente. Por isso as reformas democráticas e populares. Agora se trata de uma correlação de forças ainda mais precária que impede até mesmo estas reformas, fazendo com que o programa tenda a um horizonte apenas “democrático”.
No entanto, não se trata aqui de pura intencionalidade que se joga no vazio, mas de uma luta de classes. Lembremos que isso tudo se dá no momento em que a burguesia sofre seu próprio paradoxo expresso no dilema entre uma autoreforma nos termos de uma democracia de cooptação ou um aprofundamento da autocracia, alternativa que neste momento se aplica e que parece alimentar o processo de luta de classes e fortalece seu adversário.
A metamorfose, ou o transformismo se preferem, se dá no processo pelo qual acabam por se chocar dois interesses que até então formavam uma unidade: os interesses da classe trabalhadora retomando seu processo de luta com a crise da autocracia, e os interesses de uma camada burocrática que se especializou na gestão dos espaços institucionais ocupados (partido, sindicatos, espaços governativos ou parlamentares). Tal contradição se materializa na questão das eleições presidenciais e nas sucessivas derrotas de Lula (em 1989, 1994 e 1998) o que leva a um setor do PT a defender a tese segundo a qual seria necessário ampliar as alianças, o que implicaria em uma moderação programática, para que fosse possível ganhar as eleições#.
A vitória eleitoral de 2002 que leva Lula à presidência consagra esta inflexão. O encontro nacional que a antecede é esclarecedor do caminho inverso percorrido no sentido do desmonte da independência de classe, em suas resoluções podemos ler:

Um novo contrato social, em defesa das mudanças estruturais para o país, exige o apoio de amplas forças sociais que dêem suporte ao Estado-nação. As mudanças estruturais estão todas dirigidas a promover uma ampla inclusão social – portanto distribuir renda, riqueza, poder e cultura. Os grandes rentistas e especuladores serão atingidos diretamente pelas políticas distributivistas e, nestas condições, não se beneficiarão do novo contrato social. Já os empresários produtivos de qualquer porte estarão contemplados com a ampliação do mercado de consumo de massas e com a desarticulação da lógica financeira e especulativa que caracteriza o atual modelo econômico. Crescer a partir do mercado interno significa dar previsibilidade para o capital produtivo (XII Encontro Nacional, 2001)#.

Eis que uma força política própria da classe trabalhadora passa ao campo moderado, primeiro rumo ao centro do espectro político e depois com o desenvolvimento dos compromissos de governabilidade, para uma aliança de centro direita. Este “transformismo de grupos radicais inteiros, que passam para o campo moderado” (Gramsci, 2011: 317) não restringe seu impacto ao próprio grupo ou à direção destes grupos, mas produz um efeito sobre a classe de onde emergiram inicialmente. Como diz Gramsci:

Neste sentido (a absorção gradual mas contínua de adversários que pareciam irreconciliáveis inimigos), a direção política se tornou um aspecto da função de domínio, uma vez que a absorção das elites dos grupos inimigos leva à decapitação destes e a sua aniquilação por um período frequentemente muito longo (idem: 318).

Intencionalidades e luta de classe

Este é um processo político complexo que passa por questões éticas mas não se restringe a elas. Ainda que possam ter havido pequenas e grandes traições, e de fato houveram, os protagonistas deste processo não necessariamente agem como “terratenentes da burguesia no movimento operário”, na expressão de Lênin, de forma consciente. Eles podem seguir acreditando que estão executando um momento tático de sua estratégia, acumulando forças até que um dia retomem as condições para a mítica ruptura socialista, transformada em horizonte que sempre se afasta quanto mais dele nos aproximamos. Não se trata de meras intenções, mas de interesses de classe. A burguesia precisava resolver seus problemas de hegemonia e para isso tinha que enfrentar uma contradição: dado o caráter estrutural da exploração na forma como a acumulação de capitais poderia chegar no máximo a uma democracia de cooptação diante da qual os trabalhadores se negariam a receber tão pouco e a burguesia se recusaria a pagar um preço que consideraria muito alto.
O cenário se agrava na medida em que a burguesia precisa realizar isso no bojo de ajustes que apontavam para o desmonte do Estado e das políticas públicas, a intensificação da mercantização e das privatizações, uma interação mundial de mercados e fluxos financeiros que solapam qualquer esforço de autonomia nacional, ou seja, era necessário retomar as bases de um consentimento da classe trabalhadora, mas sem o retorno do Estado do Bem-estar Social, que na verdade aqui nunca existiu, mas que no contexto europeu foi o principal instrumento do amoldamento do movimento operário e socialista.
O interesse expresso na trajetória recente do PT e de sua experiência no governo federal em um governo de coalizão de classes, numa composição de centro direita, rende-se ao pragmatismo político: vencer, governar e se reeleger. O ex-presidente do PT, José Genoino, parece indicar o campo deste pacto social e seu impacto sobre a questão do programa:

O programa de governo que a candidatura Lula levou às ruas em 2002 contém eixos estratégicos para o Brasil. Um projeto estratégico, qualquer que seja, é sempre a projeção ideal que um agente político – no caso o PT – formula em relação à sua visão de futuro. Projeto político não pode ser entendido como algo que necessariamente se realizará. Trata-se apenas de um dever-ser, de uma das possibilidades em relação ao futuro. Na medida em que existem vários projetos interagindo e que a ação de execução de um projeto interage com a ação de outros sujeitos, o resultado final da ação implementadora de um projeto nunca será igual à intenção inicial do agente. O mesmo ocorre com programas de governo. O que importa, na ação dos partidos, é que suas ações correspondam a programas e projetos. Resultará daí algo mais ou menos aproximado da formulação inicial, dependendo sempre da capacidade de execução, das condicionantes da realidade, das circunstâncias e dos agentes interativos (Genoino, 2003).

    Notem que a resultante expressa no governo é produzida pelo concurso de “vários projetos interagindo”, mas seria interessante perguntar quais. O PT apresentou às eleições “seu” projeto, mas já vimos que ele já estava devidamente desfigurado por uma inflexão que o retira de um campo fora da ordem para um campo que a aceita como limite que não pode ser superado. Mas, vamos supor apenas para fins de exposição, que este representa os interesses táticos dos trabalhadores. Com que outros projetos terá que interagir? Certamente não são aqueles motivados pela intensa participação popular e da classe trabalhadora, uma vez que os mecanismos de participação direta foram devidamente travados, quando não criminalizados. Em se tratando de uma sociedade de classe, trata-se dos interesses muito bem organizados através dos loobies dos diferentes setores da burguesia monopolista e estes não precisam moderar suas demandas para parecer aceitáveis ou serem compreendidos pela consciência comum da maioria da população. A ingenuidade genuinamente apresentada pelo ex-presidente do PT, ex-deputado e ex-socialista, chega ao ponto de considerar, na perspectiva dita republicana que ele hoje assume, que a interação entre estes “projetos” é neutra, desconsiderando, por exemplo, que parte destes projetos são acompanhados de vultuosas contribuições de campanha ou bancadas inteiras que podem viabilizar ou inviabilizar a sustentação de um governo.
    Por fim, o pacto nos termos apresentados de uma democracia de cooptação, permite disciplinar a luta de classes. Os pontos de “acordo”, o que resulta desta paciente e habbermasiana ampliação das esferas de consenso, são “acidentalmente” os interesses essenciais da acumulação de capital: garantir o crescimento econômico, realizar as reformas e o ajuste do Estado, garantir a “sustentabilidade” e evitar as políticas “irresponsáveis” e “demagógicas”, e finalmente, oferecer o fundo publico como alvo da valorização do capital estrangulado por sua crise.
    A condição política para que este “ajuste estrutural” ocorra é o desarmar da classe trabalhadora, mas isso não pode ser conseguido pelos meios clássicos da social democracia, pelo contrario, será a camada melhor remunerada do proletariado que terá que pagar pelo ajuste. A forma encontrada é a viabilizada pelo pacto com a pequena burguesia política, formada com base naquela burocracia descrita, que negocia em nome da classe para implementar uma política contra seus verdadeiros interesses.
    A base da democracia de cooptação é a focalização das ações sociais visando amenizar a pobreza absoluta ao mesmo tempo que oferece condições para o crescimento econômico e, portanto da acumulação privada, aumentando a pobreza relativa.
    A democracia de cooptação, genialmente antecipada por Florestan, mas por ele descartada como possibilidade, não veio da autoreforma da autocracia, mas, inesperadamente, do desenvolvimento da estratégia democrática popular madura que desloca para o governo um setor que emerge da classe trabalhadora e dela se afasta para negociar em seu nome o pacto que acaba por resolver os problemas de hegemonia que faltava à consolidação do poder burguês no Brasil. Querendo evitar os equívocos de um socialismo sem democracia, o PT acaba por implementar o pesadelo de uma burocracia sem socialismo.
    Assim como na social democracia européia (Przeworski, 1989), a estratégia democrática popular que havia sido pensado como uma caminho alternativo para se chegar ao socialismo, torna-se mais um eficiente meio de evitá-lo.

Referencias Bibliográficas

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Mazzeo. A. C. Sinfonia Inacabada: a política dos comunistas no Brasil. São Paulo/ Marília:
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Przeworski, A. Capitalismo e social-democracia. São Paulo: Cia das Letras, 1989
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Temer, M. Artigo publicado na Folha de São Paulo, 27 de agosto de 2010, caderno A, p. 8

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