terça-feira, 5 de março de 2013

José Paulo Netto fala sobre 'Para Uma Ontologia do Ser Social'

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Confira a seguir entrevista de José Paulo Netto ao repórter Rodrigo Petronio, de O Estado de S. Paulo, sobre o lançamento do livro Para Uma Ontologia do Ser Social, do filósofo húngaro György Lukács, pela Boitempo Editorial.
Na apresentação do livro Para Uma Ontologia do Ser Social (1968), o senhor menciona esta obra como fruto de um movimento no qual Lukács tenta um “renascimento do marxismo”. Em que sentido se deu esse renascimento?
Depois de 1956, Lukács (que, como se sabe, foi um protagonista importante do processo que culminou na insurreição húngara daquele ano, dirigida contra o stalinismo vigente também na Hungria) teve condições de explicitar as suas críticas ao que esquematicamente se pode designar como a “era stalinista”.
No plano do desenvolvimento do marxismo, o filósofo sustentou que a nota dominante do regime stalinista foi a dogmatização, a sectarização – em suma, o que chamou de “paralisia teórica” do pensamento que se reclamava de Marx. Para ele, a superação efetiva da pesada herança do período de Stalin implicava um esforço teórico não só para recuperar o que julgava ser o autêntico espírito do pensamento marxiano, asfixiado a partir dos anos 1930, mas sobretudo para, a partir desta recuperação, analisar e compreender a realidade do capitalismo contemporâneo (e também a própria problemática do socialismo existente).
Precisamente esse esforço – que, segundo Lukács, deveria envolver a renovação da pesquisa econômico-política, filosófica e cultural – resultaria no que ele concebia como um “renascimento do marxismo”, que considerava urgente e necessário se os marxistas quisessem dialogar com o tempo presente e intervir adequadamente nas transformações em curso à época. E, de fato, parece inconteste que os anos 1960 assistiram à emergência de tendências neste sentido, tanto nos países do Leste europeu quanto no Ocidente, num processo que foi bastante problematizado, a partir dos anos 1980, com as derrotas do movimento socialista em escala mundial.
Lukács projetou a sua Ontologia de modo articulado à sua Estética e à sua Ética. Como ocorre essa articulação em seu pensamento?
Lembremos que a Estética (mais exatamente, a sua primeira parte, concluída em 1960) publicou-se em 1963 e a Ética nunca foi redigida. Lukács concebeu originalmente a Ontologia para ser tão somente a “introdução” à Ética.
Contudo, a impostação ontológica do marxismo de Lukács emerge já nos anos 1930 e, desde então, percorre toda a sua obra, embora só tenha a sua centralidade afirmada abertamente e exponenciada na década de 1960 (inclusive por razões políticas – não se esqueça que, para Lukács, o stalinismo expressa uma “invasão” neopositivista no marxismo e sabe-se do caráter anti-ontológico do pensamento neopositivista). É apenas no segundo terço dos anos 1960 que Lukács evidencia claramente a urgência da tematização da ontologia – e o faz porque, sem uma teoria do ser social (exatamente uma ontologia do ser social), não haveria como fundar, de modo materialista e dialético, uma ética. Compreende-se, pois, por que ele pensou aquela como “introdução” a esta.
As bases da Estética configuram nitidamente uma concepção ontológica do marxismo, ainda que esta não seja explicitada como tal. Por isto, não há nenhuma relação excludente (ou mesmo colidente) ou, ainda, externa entre a Estética e a elaboração dos últimos anos de Lukács, salvo no plano terminológico. Antes, o que de fato se verifica é uma articulação íntima e medular entre a Estética e a Ontologia: nesta, os pressupostos daquela são expostos e tratados enquanto fundantes de toda a reflexão marxiana (não por acidente, Lukács enfatiza os “princípios ontológicos fundamentais” de Marx).
Qual seria então, para Lukács, a consequência política mais evidente dessa “invasão neopositivista no marxismo”?
Uma das características que, conforme Lukács, marcam o marxismo próprio à era stalinista foi a sua conversão numa ideologia rasteiramente pragmática e taticista; para Lukács, esta verdadeira perversão se vinculou estreitamente à matriz neopositivista – não se trata, aqui, de eventuais influxos das formulações dos pensadores neopositivistas, mas da incorporação de um quadro teórico-conceitual, socialmente determinado, cujo viés epistemologista e anti-ontológico se adapta à legitimação de uma práxis essencialmente instrumental. No plano imediatamente político, isto se traduziu numa concepção administrativa do processo social, derivando no burocratismo e no comportamento manipulador próprio das instâncias político-partidárias do regime stalinista.
Em que sentido a renovação do marxismo proposta na abordagem ontológica de Lukács se distingue de sua contribuição inovadora em uma de suas obras de juventude e uma das obras mais influentes do marxismo,História e Consciência de Classe, de 1923?
Não há dúvida de que a obra do “jovem” Lukács – e me refiro à obra de Lukács anterior à sua adesão ao comunismo (1918) – é importante e valiosa, como, aliás, Max Weber corretamente avaliou. E também não há dúvida de que História e Consciência de Classe, seu primeiro livro marxista de enorme relevância (embora não se deva esquecer Tática e Ética, de 1919), marca uma óbvia ruptura com o que ele produziu até 1918. Mas o marxismo revolucionário de História e Consciência de Classe é – inclusive na ulterior apreciação do próprio Lukács – elaborado a partir de uma concepção não ontológica (mais exatamente: anti-ontológica) da obra de Marx. Neste sentido, o “último” Lukács, o da Estética e da Ontologia, opera num quadro de referência essencialmente distinto daquele do “jovem” Lukács e, igualmente, do Lukács de História e Consciência de Classe. Apenas para indicar um ponto nevrálgico: no genial livro de 1923, a categoria trabalho, fundante do pensamento do “último” Lukács (e não só), é residual; as implicações teórico-filosóficas deste giro são decisivas para as concepções de sociabilidade, de história e de cultura.
Penso, todavia, que se deve ter o cuidado para não absolutizar a noção de “ruptura” no pensamento de Lukács. Uma análise rigorosa da sua obra revela, para além de pontos de ruptura (a maior, indiscutivelmente, foi a decorrente da sua adesão ao comunismo e ao marxismo), continuidades profundas. Não me parece casual, por exemplo, que o “último” Lukács retome, é óbvio que noutro registro, exatamente as suas temáticas juvenis – a estética e a ética.
Nesse sentido, poderíamos dizer que a preocupação ontológica demarca a passagem do jovem Lukács a um Lukács maduro?
Concordo com esta afirmação, se ela expressa a ideia de que, com a impostação ontológica, Lukács supera o seu marxismo dos anos que vão de 1918 a 1923 e desde que façamos duas observações. Primeira: essa passagem, verificável na abertura dos anos 1930, é um processo, que pode ser rastreado na segunda metade da década anterior (o giro que se concretizará entre 1930-1932 é detectável já a partir do ensaio Moses Hess e o Problema da Dialética Idealista, de 1926); segunda: o Lukács posterior a 1930 não evolui e avança de modo unilinear; entre os anos 1930 e o fim dos anos 1950, registram-se momentos diferenciados na sua obra. Com efeito, se há um fio vermelho que unifica o conjunto da produção lukacsiana posterior a 1918, esta unidade não elude estágios distintos na sua evolução.
O senhor menciona que a reflexão de Lukács sobre a ontologia começa a se desenvolver na década de 1930, embora de modo mais crítico-negativo do que propositivo. Quais os fatores dessa guinada da importância da ontologia no pensamento de Lukács?
De fato, penso que devemos localizar o giro do pensamento de Lukács na direção da ontologia na entrada dos anos 1930, quando ele teve a oportunidade de conhecer, em Moscou, os até então inéditos manuscritos marxianos de 1844 e, em seguida, de prosseguir numa nova leitura de Lenin.
A meu juízo, estimularam de imediato este giro dois fatos (intimamente relacionados): a reação negativa do comunismo oficial à História e Consciência de Classe e, em 1929, a derrota política que Lukács experimentou no interior do partido comunista húngaro – ambas tinham resultado numa autocrítica “insincera”. A necessidade de compreender os verdadeiros equívocos teóricos de 1923 (não os apontados pelos seus críticos comunistas, que ele tentou replicar num texto que ficou inédito até 1996, Reboquismo e Dialética) e o fracasso político de 1929 é que o conduziram à inflexão no sentido da ontologia. Como se vê, fatores imediatos tanto teóricos como políticos. No plano teórico, a primeira grande implicação deste giro comparece em O Jovem Hegel e os Problemas da Sociedade Capitalista (concluído em 1938 e publicado em 1948); no plano político, a implicação foi permanecer no interior do movimento comunista a qualquer preço para combater o fascismo, suportando o stalinismo para, no seu interior, travar a resistência possível, com os limites que afetaram a sua obra.
No “último” Lukács, o que explica a centralidade da ontologia é o duplo movimento que, segundo o filósofo, determinaria o “renascimento do marxismo”: ela seria o requisito para, de uma parte, operar a crítica substantiva às deformações do pensamento de Marx que foram conaturais à era stalinista e, de outra, para a sua renovação em face das novas exigências postas pela dinâmica sócio-histórica do século 20.
Em geral se associa Lukács a outros importantes nomes da renovação da teoria marxista: Ernst Bloch e Karl Korsch. Quais outros nomes diretamente ligados ao pensamento de Lukács o senhor destacaria?
A associação a que você se refere tem razão de ser. A década de 1920 foi, a meu juízo, das mais fecundas no desenvolvimento do marxismo – e esta fecundidade está relacionada à dinâmica dos processos revolucionários europeus, desatada pela crise aberta pela Primeira Guerra Mundial e pela Revolução de Outubro.
A amizade que uniu Lukács a Bloch foi, do ponto de vista existencial, absolutamente importante. Mas se ambos também tinham uma visão política da conjuntura muito semelhante (eram “messiânicos”, como o disse Lukács) e partiam teoricamente do reconhecimento da importância de Hegel para o marxismo, parece-me que suas concepções filosóficas nunca foram inteiramente compatíveis. Diferente foi a relação com Korsch (muito menos significativa no plano pessoal): até cerca de 1925 – e isto se comprova com a leitura de Marxismo e Filosofia, que sai no mesmo ano que História e Consciência de Classe –, havia muito de comum entre eles (em especial a postura antipositivista).
Ademais de Lenin, o pensamento de Lukács, à época, também se nutriu de inspirações provindas da obra (e da ação) de Rosa Luxemburgo, a quem o filósofo húngaro sempre admirou.
Mas não se deve esquecer que, aderindo ao marxismo, Lukács não fez (e felizmente!) tabula rasa da sua formação pré-marxista, na qual Simmel teve participação. Parece-me, todavia, que foi extremamente importante a relação (não só intelectual, mas de amizade) que Lukács manteve com Max Weber – a influência de Weber, indiscutivelmente, foi muito forte sobre o filósofo.
Quais as principais convergências e divergências entre dois dos maiores expoentes do marxismo no século 20, Lukács e Gramsci?
Ao que sei, Lukács conheceu o trabalho de Gramsci muito tardiamente – com certeza, a partir de finais dos anos 1950. Mas, numa oportunidade, chegou a dizer que o marxismo que se renovava nos anos 1920 tivera em Gramsci, Korsch e nele mesmo os seus principais expoentes.
Meu amigo Carlos Nelson Coutinho, recentemente falecido, sem desconhecer as profundas diferenças entre Lukács e Gramsci, sempre insistiu na compatibilidade teórica entre ambos – caracterizava como falsa a fórmula excludente “Lukács ou Gramsci”, sublinhando a alternativa “Lukács e Gramsci” para o “renascimento do marxismo”.
Claro que há elementos convergentes entre os dois pensadores: a valorização das instâncias da cultura e do diálogo crítico com a herança cultural do passado, a crítica radical da ordem burguesa, o protagonismo dos trabalhadores no processo revolucionário, a indispensabilidade do partido na condução deste processo... Afinal, ambos foram marxistas e revolucionários.
Entretanto, o que me parece distingui-los é a sua concepção filosófica do marxismo e, decisivamente, a fundamentação ontológico-materialista que dela oferece Lukács. Do ponto de vista estritamente filosófico – e sei que esta afirmação é polêmica –, o pensamento de Gramsci apresenta insuficiências e elas têm implicações sobre o conjunto de sua obra.
Segundo Lukács, “a política é o meio, a cultura é o fim”. Nesse sentido, mesmo partindo de uma estreita relação entre cultura e política, haveria uma distinção metodológica essencial entre ambos?
Você recordou aquele que me parece ser o mote de toda a obra de Lukács, o “núcleo problemático original” (a expressão é de Mészáros) que sempre vertebrou o pensamento do filósofo húngaro. E estou convencido de que os vários e diferentes registros teóricos em que Lukács tematizou esta questão central – de 1908 (A Evolução do Drama Moderno) às suas últimas intervenções – tiveram, todos eles, por base uma convicção que permaneceu inabalável: a hostilidade da ordem do capital às objetivações anímicas humanistas (em especial, mas não exclusivamente, às da chamada alta cultura).
E, na própria formulação, fica evidenciado o diferente estatuto que Lukács atribuiu à cultura e à política. Sem ter da política uma concepção meramente instrumentalista, Lukács jamais conferiu a ela o significado que adjudicou à cultura. Para dizer de maneira breve: a política é tão somente um conjunto de meios e atividades através dos quais, nas sociedades que ainda não transcenderam a exploração, a alienação e as múltiplas formas de opressão, os homens travam as lutas emancipatórias que podem abrir a via ao “reino da liberdade”. Neste, que nunca imaginou ser um paraíso terrestre livre de tensões e conflitos, o pensador húngaro visualizava a possibilidade de novas modalidades de desenvolvimento cultural pleno.
Qual a maior atualidade de Lukács?
Referi-me há pouco às derrotas do movimento socialista no período pós-1980 e ao fato de elas terem problematizado o “renascimento do marxismo” por que o Lukács se empenhou. Nos últimos 20 anos do século 20, a ambiência cultural (para não falar já da política) mostrou-se francamente adversa ao socialismo e ao marxismo – provam-no a vigência das teses sobre o “fim da história” e as teorias pós-modernas. Foram anos em que o pensamento de Lukács experimentou o que, noutra oportunidade, chamei de seu “terceiro exílio”.
Todas as indicações mais recentes sugerem que esta conjuntura cultural (a dos “tempos conservadores”, como a designou o injustamente esquecido Agustín Cueva) está a esgotar-se. A crise sistêmica que vem corroendo a ordem do capital já não pode ser minimizada e, menos ainda, ocultada. Uma das suas implicações, provavelmente a médio prazo, será – se a barbárie presente não nos destruir e para conjurá-la – a ativação do pensamento e da ação socialista e, no interior do seu diferenciado campo, do marxismo. Para uma tal ativação, o contributo de Lukács (e, particularmente, da sua Ontologia) será indispensável.
A minha hipótese de trabalho é que somente um marxismo liberado de todo o ranço remanescente da era stalinista, aberto ao debate e plural – mas com fronteiras claras e suscetíveis de polêmica e dissenso –, somente um tal marxismo terá viabilidade. A obra de Lukács será constitutiva desse marxismo. Por isto, mais que atual, ela é prospectiva.
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