sexta-feira, 27 de abril de 2012

Rui Facó: um intelectual da revolução brasileira




         Milton Pinheiro[1]


A história do Brasil sempre foi apresentada para outras gerações, através de leituras que davam protagonismo à burguesia. Não obstante a presença heróica e militante de homens e mulheres, que construíram com suas lutas o país, e que contradiziam a lógica dessa história oficial - a visibilidade das lutas sociais, e dos trabalhadores, não é do conhecimento da sociedade brasileira.
É necessário abrir uma nova frente na batalha das ideias, tornar público o papel desenvolvido pelos trabalhadores e as lutas que marcaram a história brasileira, seja no campo ou na cidade. Falar de nossos heróis, aprofundar as formulações dos intelectuais do campo marxista que estiveram ao lado da revolução brasileira. Trata-se, mais do que nunca, de lutar por uma contra-hegemonia que fomente nas consciências dos trabalhadores, e da juventude, o sentido de sua missão histórica, a construção do caminho na perspectiva do socialismo como horizonte para a emancipação humana.
É com base nessas ideias que ora apresento um importante intelectual orgânico, que sempre esteve ao lado dos trabalhadores, como ligação de classe: Rui Facó. Construiu formulações para entender o Brasil no século XX, utilizando-se do referencial marxista para explicar a ação dos trabalhadores, as lutas sociais e a sociedade brasileira. Assim, ele abriu  trilhas para desvendar a realidade social.
          A obra de Rui Facó foi elaborada a partir do arcabouço e da tradição marxista, centrada nos estudos sobre a formação social brasileira, a partir das categorias povo, nação e lutas sociais. O seu cabedal interpretativo está centrado no rigor historiográfico e no aprofundamento da análise política. Para além das falsas premissas, que hoje são apresentadas pela lógica pós-moderna, encontramos nele uma interpretação da realidade pautada nos processos de lutas, cuja orientação era a procura por uma nova sociabilidade na história.  Assim, resgatar para o debate o pensamento de Rui Facó é trazer para os estudos contemporâneos, do ponto de vista teórico e político, uma vertente analítica que é uma síntese explicativa do Brasil no século XX.

Das origens à interpretação do Brasil

Rui Facó nasceu em Beberibe, no Ceará, em quatro de outubro de 1913 e a sua inserção na realidade nordestina permitiu que ele desenvolvesse, a partir desse lócus, um compromisso de pesquisa sobre o Brasil, e o processo de autoconstituição do povo. Essa preocupação tornou-se um programa de pesquisa, orientado pela análise da luta do povo contra a opressão; do conjunto das lutas sociais; das manifestações dos índios; dos escravos; do que ocorreu em Canudos; das manifestações e atos dos cangaceiros; dos movimentos dos beatos; dos movimentos republicanos; das lutas pela libertação do imperialismo; e da guerra engendrada pelo latifúndio. Tudo isso, a partir do princípio dialético da relação entre dominação e resistência, que formou o todo articulado que compreendemos como nação.
          Rui Facó analisa as particularidades da realidade, histórica, do Brasil, orientado por duas questões: primeiro, na estrutura das forças produtivas e, no segundo momento, na questão do monopólio da terra. A partir daí, ele identifica como questões centrais que precisavam ser afrontadas: o latifúndio, a ação do colonialismo e a dominação cultural, que tinham um peso sobre a realidade nacional, em particular, pelo papel que as classes dominantes davam aos segregados desse processo societário.
           Como historiador do desenvolvimento do país, do desenvolvimento desigual do nordeste, Rui Facó estudou o papel dos movimentos sociais, levando-se em consideração a questão nacional, a questão sindical, estudantil, camponesa, o papel da igreja, da imprensa, e o comportamento da chamada “burguesia nacional”.
No livro Brasil Século XX, um minucioso estudo sobre o país, Rui Facó faz um debate sobre as forças produtivas e o nível de desenvolvimento do capitalismo entre nós. Alertando sobre os descaminhos do processo político, sinalizando para o papel que deveria ser desempenhado pelos trabalhadores no cenário da luta de classes; sem abrir mão de avaliar que a presença do Partido Comunista, nesse contexto, era uma necessidade histórica. O livro Cangaceiros e Fanáticos: gênese e lutas tem um valor histórico extraordinário. Apresenta uma interpretação inédita das contradições brasileiras, pautada nas questões da terra, nas lutas dos despossuídos, e do poder político em curso no Brasil. E, tudo isso, analisado com o rigor da dialética marxista, pois apreende na história o processo das lutas de classe.           
Ao lado dessa análise, Rui Facó encontra no papel político das classes dominantes, uma reação para impedir o ajuntamento de comunidades, entendido aí como ajuntamento de pessoas pobres em várias áreas do nordeste. Na lógica do poder político, em vigor, essa situação era um perigo à continuidade da dominação de classe que perenizava o latifúndio. E, tinha ao mesmo tempo, uma preocupação dos reacionários com o princípio de solidariedade que se estabelecia nas diversas comunidades onde ocorriam as lutas pela terra.
          Rui Facó questionou a leitura oficial sobre o papel que davam às lutas no campo, qualificadas de misticismo e, para alguns, dotada de passividade no processo de resistência. Para ele, podem-se até encontrar características de uma resistência passiva a partir do papel desempenhado por figuras como Antônio Conselheiro, beato Lourenço e Padre Cícero. No entanto, essa passividade como forma de luta, não era real e concreta no conjunto das manifestações de resistências que foram encontradas no campo no século XX, basta analisar Porecatú, as ligas camponesas e Trombas e Formoso.
          Sua percepção sobre novos personagens e o papel do campo na formação social brasileira denota seu ineditismo. Ao se contrapor às formulações racistas de Euclides da Cunha, ele construiu uma critica original. Na compreensão sobre o grau de desenvolvimento do capitalismo, na leitura sobre a classe dominante e suas frações, na análise das lutas sociais como princípio pedagógico para a emancipação humana percebe-se a qualidade metodológica de seus instrumentos de pesquisa. Constata-se então, o refinamento conceitual para entender o seu tempo, comprovando ser Rui Facó, a partir da sua síntese explicativa, um intérprete do Brasil.

Lutas sociais e compromisso revolucionário

          Rui Facó ficou na sua cidade natal até terminar o ensino básico, quando premido pela necessidade de trabalhar, mudou-se para Fortaleza. Procurou emprego na função em que já demonstrava alguma habilidade, o jornalismo. Nessa cidade, no início dos anos 30, passou a freqüentar o ambiente cultural e político que contestava a ordem em vigor e entrou para o Partido Comunista.
          Em 1935, o país passava por profundas agitações políticas, surgiu a Aliança Nacional Libertadora, um movimento de frente única que contestava o governo Getúlio Vargas; e os levantes armados de novembro em Natal, Recife e no Rio de Janeiro. Rui Facó participou das manifestações de massas que abalaram o ano vermelho de 1935. Logo, transferiu-se para Salvador, trabalhou nos Diários Associados e participou da fundação da revista Seiva, em 1938. Ainda na Bahia, durante a segunda metade dos anos 30, ele foi encarcerado pela polícia getulista em virtude de sua intensa atividade política e intelectual.
          Com o fim da segunda guerra, Rui Facó se mudou para o Rio de Janeiro, começando a trabalhar na redação do jornal A Classe Operária. A partir daquele momento, quando passou a escrever para diversos jornais e revistas de todo o país, percebe-se que já estava construindo o alicerce das suas formulações sobre a formação social brasileira.
          A conjuntura no pós-guerra era de ascenso das massas. A imprensa comunista estava em crescimento, isso em virtude da legalidade conquistada pelo PCB e pela grande presença desse operador político no cenário das lutas sociais, no parlamento e na intelectualidade. No entanto, as suas formulações, pautado pelo fogo da conjuntura, contavam com dubiedades que poderiam desarmar o Partido para enfrentar as próximas batalhas. E, foi o que terminou acontecendo. A conjuntura brasileira foi tensionada pela ação bonapartista da classe dominante, que queria evitar qualquer risco à manutenção do poder nas mãos da burguesia, e as frações de classe do bloco no poder, agiram. Mesmo o PCB sendo um partido de massas (contava com 200 mil filiados), com uma importante representação parlamentar pelos estados e no congresso, com uma grande influência cultural, artística e intelectual, o partido foi posto na ilegalidade pelo general Dutra, o Le Petit de plantão. Seus parlamentares foram cassados, começando, outra vez, uma feroz perseguição aos comunistas: com prisões, torturas e assassinatos. É a partir desse cenário político que Rui Facó, em 1952, vai morar na URSS, trabalhando na Rádio Moscou, onde teve uma intensa “atividade literária e jornalística”.       

A última batalha de um intelectual orgânico

         De volta ao Brasil em 1958, Rui Facó avançou para desenvolver as bases de suas formulações mais sistemáticas, e aprofundou uma intensa e qualificada intervenção no debate jornalístico em curso, até 1963. Todavia, também encontramos a sua enorme presença, para além desse período, como militante da pena, em muitos periódicos e jornais: Seiva, Flama, Continental, Problemas, Estudos Sociais, A Classe Operária, Tribuna Popular, Hoje, O Momento, O Democrata, Voz Operária, Novos Rumos e na agência de notícias, Interpress.
          Como escritor e pensador comunista, Rui Facó nos brindou com alguns textos de imenso valor histórico. Encontramos ainda, uma grande quantidade de artigos e trabalhos sobre acontecimentos relevantes, como a eleição de Miguel Arraes em 1962, para o jornal Novos Rumos. O artigo sobre a fundação do Movimento Unificador dos Trabalhadores, O MUT, instrumento de unidade da classe operária, publicado no jornal Tribuna Popular, em 1945. Temos um denso estudo sobre as lutas dos camponeses em 1963, mas, também uma incursão pela crítica teatral, quando da estréia de uma peça de Dias Gomes, em 1962.
          Intelectual orgânico e militante político, o historiador Rui Facó dedicou os últimos cinco anos da sua vida (1958-1963) ao exercício da contra-hegemonia ideológica e política, exercendo o papel de jornalista. Foi nessa condição que fez a sua última viagem e lutou a sua última batalha. Morreu no dia 15 de março de 1963 em um desastre aéreo na Bolívia, antes mesmo de completar 50 anos, numa viagem pela América Latina como correspondente do Jornal Novos Rumos.
Não obstante o prematuro desaparecimento, ele nos legou uma obra que construiu pontes para explicar a realidade brasileira, a partir das lutas sociais e do papel do povo. Afinal, novos atores, trabalhadores do campo e da cidade tiveram em Rui Facó o pesquisador participante, o cientista social e historiador que não foi leviano com a verdade das lutas que marcaram, no Brasil, o breve século XX.




[1]Milton Pinheiro é professor de Ciência Política da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), colunista do Jornal Brasil de Fato e autor/organizador, entre outros, dos livros 140 anos da Comuna de Paris (Expressão Popular, São Paulo, 2011) e Caio Prado Júnior: história e sociedade (Quarteto, Salvador, 2010). 

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