segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

“Precisamos pensar a unidade da América Latina a partir dos de baixo e a partir da luta social”

Claudio Katz
Intervenção de Claudio Katz no debate sobre o livro Simón Bolívar y nuestra independencia (Una lectura latinoamericana). [Buenos Aires, edições La Llamarada-Yulca-Amauta Insurgente, 2013] de Néstor Kohan. Apresentação e debate realizados na Faculdade de Ciências Sociais (com o auspício do Instituto de América Latina e Caribe - IEALC). Universidade de Buenos Aires (UBA), em 21 de outubro de 2013.
Boa noite. Muito obrigado pelo convite. É muito bom participar de uma apresentação e debate sobre este livro porque é um livro excelente. É muito importante num momento onde Simón Bolívar tem má interpretação. A direita está muito irritada com Bolívar, pois nos últimos anos ele deixou de aparecer como um prócer, uma estátua ou uma figura escolar. Bolívar foi resgatado como um fundador da unidade latino-americana e, portanto, qualquer livro que o analise a fundo é um livro oportuno e importante, com o acréscimo de que aqui não estamos diante de qualquer livro sobre Bolívar.
Acredito estarmos diante de uma grande obra teórica e política, pois está centrada na análise da história concebida como luta social, sendo Bolívar interpretado a partir deste ângulo. A análise que temos neste livro convida a olharmos Bolívar como exemplo de luta, como bússola de projetos libertadores e, portanto, analisa a história de tal forma que nos permite buscar nossas raízes, amadurecer a consciência de classe, encontrar continuidades entre a luta de hoje e a luta de ontem, forjar identidades coletivas e – como assinala Néstor Kohan – avançar na recuperação da autoestima popular.
Portanto, este livro sobre Simón Bolívar é uma obra onde a história é vista como história da luta de classes e nos permite abordar a história pelos olhos dos oprimidos. Com este olhar, com este enfoque, com esta visão se reúne toda a história. A independência como uma luta social onde vemos o poder colonial, o poder das elites criollas e as maiorias excluídas. O livro está estruturado sobre um relato, onde vemos ao longo de toda uma história os momentos de convergência dos oprimidos com as elites e os momentos de divergência entre estes setores. Néstor relata muito bem a primeira etapa jacobina da independência: Moreno, Belgrano, Monteagudo… Faz um interessante paralelo entre o ocorrido no Rio da Prata e a Grande Colômbia e, depois, a segunda etapa. Aquela etapa da independência, a da guerra social e colonial. Bolívar apelando à doutrina do povo em armas, o “contágio” do Haiti, a decisão de libertar os escravos, o apoio a suas lutas nas pradarias, nos montoneros, nas forças plebeias, a convergência com San Martín e sua oposição às oligarquias sul-americanas, que os traíram e os abandonaram.
Portanto, este livro sobre Simón Bolívar vê este processo sob o ângulo da luta social. Debruçando-se sobre a história da independência latino-americana, constitui um grande livro de polêmicas com a historiografia oficial, que ignorou ou impugnou Bolívar.
E se o livro fosse apenas isto, somente pelo que acabo de descrever até agora, já seria magistral, já seria um instrumento de luta, já seria um livro militante, já seria uma obra para o debate político.
Porém, creio que o livro de Néstor Kohan acrescenta algo mais importante para nós. E quando digo “nós”, refiro-me a nós marxistas.
Existe uma segunda leitura, um segundo nível analítico, muito mais detalhado, muito mais complexo, fruto da própria elaboração daqueles que constituem parte do pensamento marxista.
E isto acontece porque – como aponta Néstor – Bolívar é um “problema” para os marxistas. Não é um tema simples para os marxistas, a partir do momento que Marx escreveu aquele famoso texto sobre Bolívar, mais que polemizando, diria eu que caricaturando Bolívar. Marx escreveu uma paródia de Bolívar. E a partir daí, Bolívar passou a ser um tema controvertido para a história do marxismo. Existe um desencontro entre Marx e Bolívar.
Néstor trabalhou este tema em livros anteriores (Marx en su (Tercer) mundo; Nuestro Marx), principalmente as causas desse desencontro. Eu acrescentaria às explicações de Néstor o contexto no qual Marx via a América Latina. Isto foi descoberto por Álvaro García Linera [Bolívia, 1962]. Marx escreveu seu texto sobre Bolívar quando o bolivarianismo já está em refluxo, quando existia uma vitória conservadora, quando triunfou a contrarrevolução sobre a revolução. Portanto, tinha que fixar-se no cenário latino-americano que não é esse cenário, que não é o mesmo observado na Irlanda, na Índia, na Turquia, na China, onde se repensava o problema nacional, porém vendo um contexto de sujeitos nacionais sublevados. O desencontro de Marx com Bolívar também obedece a causas teóricas. O Marx que escreveu sobre Bolívar é um Marx mais centrado na lógica objetiva da acumulação que na lógica da luta de classes. Porém, o interessante do “Bolívar” de Marx é que quando este contexto mudou e a luta plena da América Latina ressurgiu ante seus olhos – falo do México de Benito Juárez –, Marx não titubeou um segundo em elogiar Benito Juárez e em reivindicar a luta nacional latino-americana.
Portanto, este livro de Néstor Kohan retorna a esta problemática. Volta de fato, com novos argumentos e nos leva a aprofundar o reencontro de Marx com a América Latina. Néstor o faz a partir de um marxismo bolivariano, de um marxismo latino-americano, que polemiza com outros três tipos de marxismo.
Em primeiro lugar, polemiza com o marxismo liberal. Isto é explícito. Este é um livro contraposto ao marxismo eurocêntrico, ao marxismo mitrista [defensor do general Bartolomé Mitre], que denegriu Bolívar. Ainda que não seja marxista, o representante caricaturesco deste pensamento é Juan José Sebreli [Buenos Aires, 1930], que continua denegrindo Bolívar e permanece imaginando um Marx liberal, um Marx pró-colonialista. Hoje em dia, Sebreli faz tais análises a partir das fileiras política da direita neoliberal. Este é um livro que polemiza com outros matizes desse marxismo mitrista.
Em segundo lugar, esta obra polemiza com o marxismo nacionalista, que teve na figura de Jorge Abelardo Ramos [Buenos Aires, 1921-1994] uma primeira tentativa de fundir bolivarismo e marxismo. Existem muitos que estão em dívida com esse primeiro Abelardo Ramos. Esse primeiro Abelardo Ramos teve muitas intuições interessantes acerca da fusão de Bolívar com Marx. No entanto, muito rapidamente Abelardo Ramos passou a ser o Abelardo Ramos que nós conhecemos: uma figura que ao invés de fundir bolivarismo com marxismo começou, primeiro, a distanciar-se do marxismo, depois denegrir o marxismo e finalmente terminar num chauvinismo patrioteiro anticomunista, abertamente antimarxista.
Em terceiro lugar, existe uma polêmica mais sutil, mais complexa, na forma em que Néstor aborda o problema. Quis mencionar uma escola, terceira escola, que no livro não está explicitada, porém que eu explicitarei. Trata-se do marxismo dogmático. Esta escola, mais que condenar Bolívar, sempre o viu como um “bonapartista falido” e sempre imaginou a história do século XIX como a história de sujeitos passivos condenados à derrota e à atuação como sujeitos reais no processo histórico.
A polêmica gira em torno de José Aricó [1931-1991], autor do livro clássico Marx y América latina [1980], livro que conduziu, nos últimos trinta anos, gerações inteiras de historiadores a estudarem o problema de Marx e a América Latina a partir de Aricó, uma grande figura historiográfica. Forneceu importantes contribuições à compreensão do problema, porém, todavia, não fizemos a crítica a José Aricó. Fizemos a crítica a Abelardo Ramos, a Juan José Sebreli, podemos discutir Milcíades Peña [1933-1965], porém, não foi feito o debate com José Aricó. Não me refiro ao Aricó alfonsinista ou socialdemocrata. Não é esse o problema que estamos discutindo hoje. Não, não é essa a nossa questão. O problema é a formulação teórica feita por José Aricó. Creio que a chave está neste livro de Néstor Kohan. Porque este livro, convergindo em muitos aspectos e com elementos comuns com Aricó, tem um olhar contraposto ao de Aricó. Aricó estuda o problema da América Latina como a frustração de um projeto histórico, já que a América Latina não teve um sólido Estado continental construído a partir de cima. Aricó se preocupa com essa construção a partir de cima. Em quê falharam as elites? Em quê falharam as classes dominantes? O que tiveram de bom essas elites e essas classes dominantes? Inclusive quando Aricó resgata muitos elementos de Hegel contra Marx é porque sugere o seguinte: “Olha, era possível ter sido feita uma construção que você, Karl Marx, não viu, a partir de um Estado continental”.
Acredito que o mérito que a abordagem de Néstor possui é que este livro precisamente não vai por esse lado, não vai por esta pista. Não segue um caminho que nos leva a uma boa compreensão da história... Em vez de preocupar-se tanto acerca do porque falharam as revoluções passivas, a obra de Néstor se preocupa com o que se passou com as revoluções populares. Este livro faz o que se denomina a história dos de baixo: a análise historiográfica da história popular. Compreender, analisar, estudar a problemática de como se estruturou a América Latina, seus problemas, suas contradições. Isso é um diagnóstico, é uma compreensão, é uma análise. A ótica deste livro sobre Simón Bolívar e nossa independência não está centrada apenas nisso, mas sim na luta popular e na construção a partir de baixo.
Nisso – é um texto pouco conhecido e muito recente – existe um ponto em comum com a crítica que fez García Linera a José Aricó. Quando García Linera estava na prisão escreveu um artigo crítico de Aricó e aí intuiu o problema de Aricó. Disse o seguinte: “é interessante sua abordagem sobre Bolívar e Marx, porém o problema de Aricó é que não está localizado na luta popular”. Acredito que o livro de Néstor possui um mérito frente a García Linera, pois não deduz uma crítica a Bolívar ou uma desvalorização do processo independentista da América Latina a partir da revisão do problema.
Então, parece-me que estamos frente a um grande livro, um texto importante para os marxistas. Eu o generalizaria.
Esta problemática levaria a um plano de conclusões historiográfica mais geral. Em minha opinião, a história marxista da segunda metade do século XX esteve engessada por um falso problema. Livros como este começam a nos aliviar, começam a nos tirar da armadilha de um falso problema.
Na historiografia marxista clássica, dos anos 50, 60 e 70, em todas as suas vertentes, a pergunta que a ser respondida era “Quais eram as forças que desenvolviam as forças produtivas e quem eram os líderes políticos que permitiam o desenvolvimento das forças produtivas?”. Então, olhava-se o passado dizendo: “Quem foi o setor progressista?”. Essa era a sua preocupação: qual era o setor econômico e quem era o líder político. Essa era a problemática que se queria resolver.
Como a resolvia? Bom, o marxismo liberal, mitrista, defendia que os que desenvolviam as forças produtivas são os que constituem a linha de Bernardino Rivadavia, Bartolomé Mitre, o livre-comércio, as elites cosmopolitas. O marxismo mais nacionalista dizia que não, muito pelo contrário, os que desenvolvem as forças produtivas são os protecionistas, os que criam impostos. Existia uma terceira visão, a dogmática, que defendia que, na realidade, nada vai desenvolver as forças produtivas porque não se podem desenvolver essas forças produtivas. Já existe o destino premeditado da América Latina. A América Latina não pode desenvolver as forças produtivas porque não possui uma burguesia industrial.
Esse era o debate: (a) O desenvolvimento do comércio. (b) O desenvolvimento do Estado via proteção. (c) Não é possível desenvolver nada.
Esta é uma discussão que vista hoje, amadurecida, é uma discussão estéril. Não acrescenta absolutamente nada. Como a pergunta é mal formulada, esta discussão apenas acrescenta avaliações especulativas e a raciocínios contra factuais pela simples razão de que não se pode encontrar nenhuma regra por onde se tenham desenvolvido as forças produtivas. Ou seja, se apresenta uma pergunta que é equivocada, é hipotética, e não se tem resposta. Além disso, é impossível encontrar a resposta seguindo um encadeamento coerente.
Na Inglaterra, na Holanda e na França o capitalismo avançou com a revolução burguesa; na Alemanha e no Japão o capitalismo avançou sem revolução burguesa. Nos Estados Unidos, o norte triunfou sobre o sul e o capitalismo avançou, porém não porque o norte derrotou o sul, mas também porque o norte derrotou os povos do norte e do sul. Não existe uma regra que nos permita explicar como, qual é a guia que nos levou ao desenvolvimento das forças produtivas. E no caso da América Latina, a pergunta tampouco tem resposta. Se o objetivo é descobrir qual foi a regra, não será possível encontrá-la.
O Haiti teve uma revolução triunfante, a mais radical e, depois, teve a regressão das forças produtivas. No Brasil não existiu revolução. Ao contrário, existiu escravidão até depois da metade do século XIX e o desenvolvimento é intermediário. No México ocorreu uma revolução radical derrotada, com Morelos primeiro e, depois, com Benito Juárez e ocorreu o desenvolvimento econômico intermediário. No Equador, aconteceram fortes movimentos liberais e no Peru não. O desenvolvimento em ambos os casos é periférico.
É uma pergunta que não leva a nada. Não existem reagras. E a história não pode ser reconstruída dessa forma.
Então: Qual é o mérito deste livro, desta linha de análise historiográfica? Eu penso que seu mérito é ter decidido “não vou perguntar mais isso, mas vou estudar outra coisa. Não vou abandonar a análise das forças produtivas, o estudo da economia, a análise das classes sociais. Não, não a abandonarei. É preciso fazê-la. É um problema de estrutura. É necessário explicar o caráter periférico da América Latina. É preciso explicar tudo isso, sim. Porém, ao invés de dar voltas sobre uma pergunta que não tem resposta, vou tomar a história como um legado de lutas populares. Isso é a história. A história que vou estudar, a pergunta que vou fazer é outra: quem favoreceu a construção da consciência social que tem continuidade da luta para as novas gerações?”.
Existe uma corrente historiográfica, marxista internacional, que trabalha na mesma direção deste livro. São conhecidos como os historiadores ingleses dos anos 40, 50 e 60, que geraram uma escola, começaram a avançar no estudo da história dos de baixo e disseram “o que temos de estudar são as experiências de luta, as vivências de luta, para ver o quê aprendemos daí. Isso é o que temos de estudar!”.
Eu penso que este livro sobre Simón Bolívar e nossa independência está nesse âmbito, nesse plano e por isso resulta um livro tão importante e tão interessante.
Finalmente, para concluir, a historiografia marxista se fez outra pergunta também contra factual que, tampouco, tem muitas respostas: “era possível ou não o sonho de Bolívar?”. Então, existe uma biblioteca inteira que diz que sim, era possível, e outra biblioteca completa que diz que não era possível. A biblioteca de Jorge Abelardo Ramos diz que sim, era possível, que se podia, porque existem exemplos. O Brasil, por acaso, demonstra que o que se pode fazer no Brasil se pode fazer algo similar em escala de América hispânica. Esse poderia ser um argumento. Existe outra biblioteca, a de José Carlos Chiaramonte, que defende que não era possível, que isso era uma utopia, não existia condições, etc. Tudo isso é um debate contra factual. Era possível ou não o sonho de Bolívar? Era factível ou não? De novo é um tipo de raciocínio que não direciona, não resolve problemas historiográficos e nem nos dota de elementos para a compreensão de nosso passado.
O importante não é se era possível ou não era. O importante é o quê nos deixou! Alcançado ou não alcançado, se feito ou se não feito... o quê nos deixou?
Pois nos deixou um ideal inconcluso das lutas sociais e das guerras de independência que se continua hoje em dia através de diversos projetos. Por exemplo, o projeto bolivariano da ALBA. Aquelas lutas e ideais nos deixaram estes projetos atuais e futuros. Nos deixou uma história onde o ideal latino-americano é um ideal que começa com Simón Bolívar, que está presente com José de San Martín, etc., etc., que tem elementos com Ugarte, etc., etc., que tem continuidades na América Latina. Cada vez que a América latina tem que resistir ao colonialismo e ao neocolonialismo, reaparece a necessidade da unificação.
Na luta! É a luta de Sandino, é a luta de Farabundo Martí, é a luta da revolução mexicana, etc., etc. Essa é a continuidade que nos interessa. A continuidade da luta.
Essa continuidade tem um legado se abordada a historiografia dos de baixo, como uma historiografia social, como una historiografia militante.
Portanto, minha conclusão teórica e metodológica é que estamos diante de um grande livro. Oxalá que se difunda. Muito obrigado.
Buenos Aires, 21 de outubro 2013
*Claudio Katz (professor titular da Universidade de Buenos Aires, investigador do CONICET, integrante do coletivo “Economistas de Esquerda”).
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)

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