É preferível, em uma batalha, estar com um M16 a estar com um .38 obsoleto. Mas se não há um M16 às mãos, devemos nos virar com o que temos e, se necessário, até com paus e pedras. Como tudo na vida, as escolhas dependem necessariamente do leque de opções e, quando a situação aperta, devemos utilizar o que for possível. A metáfora bélica é para lembrar que, seja na guerra real ou na figurada, nós que reivindicamos o marxismo como instrumento de transformação da sociedade devemos, também, saber utilizar as armas que temos, não descartando nenhuma a priori- conquanto, naturalmente, que seu uso não consista em traição de princípios nem em obstáculo indireto à estratégia colocada.
Gosto de usar como exemplo, e não por acaso, por ser meu campo de estudo, o Direito. Os marxistas sabemos que a emancipação humana e o fim da opressão do homem pelo homem (e todas as mazelas decorrentes dessa opressão, homofobia e as diversas discriminações, abismo entre trabalho manual e intelectual etc.) só podem se dar em outros moldes, em outro formato, vale dizer, em outro sistema de produção. Não se pode chegar a esses objetivos dentro do capitalismo, pois tal panorama é intrínseco ao sistema. Faz parte dele, logo é preciso mudá-lo. Mas ocorre o seguinte: mesmo dentro do sistema, é possível, pouco e limitadamente que seja (afinal, tratam-se de características imanentes), enfrentar tais mazelas, através de ferramentas que o próprio sistema coloca à disposição.
Todo Estado é uma ditadura de classe,
nos ensinou Marx. O Estado burguês, assim, é a ditadura de uma classe, a
burguesa, que a exerce sobre os demais estratos da sociedade, a classe
trabalhadora em sua diversidade. Mas a forma como essa
ditadura
se apresenta é cambiante; conforme o momentos histório e a correlação de
forças, mostra-se mais ou menos sutil, mais ou menos aberta e, não é
demais lembrar, todas as classes -e a burguesa não seria diferente-
possuem contradições internas. Daí a justa indignação de Trotsky, "como se as classes fossem homogêneas!", contra o discurso oficial da burocracia stalinista do "fim das classes"
na URSS no esteio da Constituição soviética de 1936 (o que justificaria
o unipartidarismo, já que cada classe teria seu partido- vide, dentre
outros inúmeros exemplos de demagogia, a entrevista de Stálin a R.
Howard,
aqui). Ao contrário, como explica Trotsky ("A Revolução Traída"),
(...) na verdade, as classes são heterogêneas, dilaceradas por antagonismos internos e só alcançam os seus fins comuns pela luta de tendências, por agrupamentos e partidos (...) Não se encontrará em toda a história política um único partido representando uma única classe se não se consentir em tomar uma ficção policial pela realidade.
Apenas uma mentalidade binária deixaria de reconhecer essas contradições interclasse.
Nesse sentido, como dito, a dominação burguesa não se expressa de uma única forma. Pode adotar a aparência de uma ditadura (quero dizer, de regime de exceção em relação ao ordenamento jurídico vigente, inclusive à luz do Direito Internacional), como pode vir travestida com a roupagem democrático-liberal clássica. E, mesmo sendo ambas expressão da dominação burguesa -como a burguesia exerce e mantém sua dominação- há uma diferença evidente entre as duas roupagens.
Objetivamente falando: será possível que não se enxergue diferença entre estar sob Médici e estar sob Dilma (ou mesmo sob a direita clássica de um Fernando Henrique Cardoso)? Não estaríamos aqui falando de marxismo e revolução durante os anos de chumbo (ou sob o Estado Novo varguista, que foi o fascismo brasileiro) mas desde 1988, com a nova Constituição, isso é possível, sem que corramos o risco do desaparecimento e da tortura. Naturalmente, o desaparecimento e a tortura como arma política não sumiram, mas institucionalmente falando estão proscritas; como tudo que é institucional, há o amplo abismo entre discurso e prática, mas ainda assim são condutas relegadas aos porões do Estado marginal.
Os direitos fundamentais (ou direitos humanos) não caíram do céu nem tampouco são mera construção abstrata. São concepções que tiveram origem na luta de classes, num crescendo desde as revoluções liberal-burguesas do séc. XVIII até os dias de hoje (um estudo mais aprofundado -mas talvez enfadonho para os não interessados em Direito- sobre as sucessivas dimensões de direitos humanos pode ser lido neste meu texto, aqui). Assim, conceitos como liberdades (de expressão, locomoção etc.) e moradia e boas condições de trabalho, por exemplo, como direitos fundamentais do indivíduo, estão escritos -a ferro e fogo- nos ordenamentos de qualquer nação moderna. É evidente que não se observa a concretização desses direitos (e geralmente nem se toma conhecimento dos mesmos) e, repito, sequer se poderia conjecturar -se não quisermos ser delirantes ou utópicos- sua concretização nos marcos do Estado capitalista (mais que isso, nos marcos da sociedade de classes). Mas, e é este o ponto: são direitos previstos e, como tais, permitem uma margem de atuação, dentro dos moldes institucionais, para que sejam...exigidos.
A abordagem moderna do fenômeno constitucional passa a considerar as Constituições documentos dotados de força, "de sorte que tudo no texto constitucional tenha valor normativo" (Paulo Bonavides, "Curso de Direito Constitucional"). Isto é: se está escrito na Constituição, pode, e deve, ser exigido. Saúde, educação, moradia, saem do campo da mera intenção e adquirem caráter obrigatório diante do Estado. E o Judiciário -limitada e atabalhoadamente que seja- tem produzido decisões nesse sentido, caso a caso. É por isso que não endosso as palavras da Liga Comunista quando fala (aqui) em "reacionária Constituição de 1988". Como falar que um documento que traz todos os direitos e garantias fundamentais previstos ali é reacionário, sendo que o regime anterior era uma ditadura militar?
Vou repetir. Não se trata de colocar esperança no ordenamento institucional burguês. A sociedade de classes é incapaz (e sequer possui interesse) de realizar o Homem em sua plenitude. Mas, pouco que seja, há contradições dentro do sistema que podemos aproveitar. Quando famintos, queremos uma lauta refeição; mas ninguém morrendo de fome se recusaria a comer raízes se não há uma lauta refeição disponível. É questão de sobrevivência: não podemos projetar tudo no "melhor dos mundos" socialista e negligenciar as questões imediatas, cá mesmo na sociedade capitalista.
Oportuno fazer dois apontamentos.
Primeiro, o Direito é superestrutura; mas há uma interrelação dialética pela qual a superestrutura pode, também, influir na base. Falei disso na Velha Dialética, citando Eros Grau, aqui.
Segundo, quaisquer reivindicações puramente economicistas (diretas, imediatas) -sindicais, estudantis, de gênero e cor etc.- devem ser, se se quer superar o economicismo, compreendidas dentro de um contexto maior, radical, de modo que fiquem claros os limites da luta puramente economicista; remendos não bastam, paliativos não servem.
O "Programa de Transição" trotskyano pode ajudar nesse sentido. Ao deixar demarcado o campo entre reivindicações parciais (imediatistas e reformistas) e reivindicações transitórias (cuja aplicabilidade ou a mera exigência leva a distensões dentro do sistema, na perspectiva de sua ruptura), impede que venhamos a cair nas ciladas do reformismo, ao mesmo tempo em que não negligencia a questão imediata. No espírito do que temos dito neste post, aliás, o "Programa..." coloca claramente, com grifo meu:
Os bolchevique-leninistas encontram-se nas primeiras fileiras de todas as formas de luta, mesmo naquelas onde se trata somente de interesses materiais ou dos direitos democráticos mais modestos da classe operária.
Buscar a revolução, sem deixar de lado o problema do agora. Buscar a solução (melhor dizendo, a melhoria) do problema concreto sem deixar de lado a revolução. E, nessa práxis, todas as ferramentas -como falado no início, desde que não consistam em traição de princípios nem em obstáculo indireto- podem ser utilizadas.
Não se pode escolher arena.
Fonte:
J.L.Tejo (NOVA DIALÉTICA)
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