sábado, 19 de maio de 2012

Marx, a Comuna de Paris e o projecto Comunista*


imagemCrédito: ODiario.info


Manuel Gusmão**

A Comuna de Paris foi a primeira revolução na qual a classe operária era claramente reconhecida como a única que ainda era capaz de iniciativa social, mesmo pela grande massa da classe média parisiense. Essa mesma parte da classe média tinha participado no esmagamento da insurreição operária em Junho de 1848; e tinha sido de imediato sacrificada aos seus credores.
O ideal comunista é um projecto de transformação do mundo e da vida, que se alimenta da experiência revolucionária e das tradições de luta do proletariado e dos povos oprimidos. Transportando consigo aspirações e sonhos quase milenares e ideais modernos, o ideal comunista converte em esperança revolucionária os fracassos e os êxitos da luta do movimento operário. É um projecto longo cujo triunfo é uma possibilidade real na longa duração da história. Não trair a memória é condição de fidelidade no presente e no futuro.
Culminando as insurreições operárias que marcaram o séc. XIX europeu – 1830 e 1848, a Comuna de Paris, em 1871, é a última insurreição desse século e a primeira a triunfar, embora por escassas semanas, mais precisamente, a comuna dura de 26 de Março a 27 de Maio.
Levantando barricadas e resistindo heroicamente em combates de rua, a Comuna será afogada em sangue. Dezenas de milhares de homens e mulheres serão fuzilados e as execuções em massa prolongar-se-ão pelo mês de Junho. Entre 26 de Maio de 1871 e 31 de Dezembro de 1874, os 24 conselhos de Guerra criados pelo Governo de Versailles julgaram 80 crianças, 132 mulheres e 9.950 homens da Comuna, sem contar os «contumazes». Pronunciaram 13.450 condenações.
No dia 30 de Maio, Marx apresentava ao Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores um documento em que analisava a Comuna de Paris, A Guerra Civil em França: 1871 conhecem-se dois estados de redacção anteriores.
Dirigido a todos os membros da Associação na Europa e nos Estados Unidos, o texto do apelo, que foi aprovado por unanimidade, é uma admirável análise de história do presente em que se extraem da experiência concreta do movimento das massas operárias, consequências teóricas fundamentais para o futuro desse movimento.
O estudo da experiência dos revolucionários da Comuna terá um papel de relevo na elaboração, por Marx, Engels e Lenine, da teoria revolucionária.
1. Não basta apoderar-se do Estado
Como Lenine o destaca no Estado e a Revolução, a única «correcção» que Marx julgou necessário explicitar no prefácio de 24 de Junho de 1872, a uma nova edição alemã do Manifesto Comunista, tem a ver com a questão do Estado, tal como resulta da experiência da Comuna de Paris. «Mas a classe operária não pode contentar-se com o apoderar-se da máquina do Estado e fazê-la funcionar para os seus próprios fins».
1.1. O primeiro decreto da Comuna foi a supressão do exército permanente e a sua substituição pelo povo em armas.
1.2. A Comuna foi composta por conselheiros municipais, eleitos por sufrágio universal nos diversos bairros da cidade. Eram responsáveis perante os seus eleitores e por eles revocáveis, quer dizer, podiam ser destituídos por eles a qualquer momento. A maioria dos seus membros eram naturalmente operários ou representantes reconhecidos da classe operária. A Comuna deveria ser não um organismo parlamentar mas um corpo actuante, ao mesmo tempo, executivo e legislativo.
1.3. Em vez de continuar a ser o instrumento do governo central, a polícia foi imediatamente despojada dos seus atributos políticos e transformada num instrumento da comuna.
1.4. Assim aconteceu com outros ramos da administração. Desde os membros da Comuna até à base, a função pública devia ser assegurada mediante salários de operários, e os seus cargos e diferentes funções, incluindo os de juízes e magistrados, eram electivos e revocáveis.
1.5. Os serviços públicos deixaram de ser propriedade privada das criaturas do governo central. Não só a administração municipal, mas toda a iniciativa até então exercida pelo Estado foi colocada nas mãos da Comuna.
1.6. Um vez abolidos o exército permanente e a polícia, instrumentos materiais do poder do antigo governo, a Comuna deu-se como tarefa quebrar o instrumento espiritual da opressão, o poder dos padres, decretou a separação da igreja e do estado e a expropriação de todas as igrejas na medida em que constituíam corpos possidentes […] A totalidade dos estabelecimentos de ensino foram abertos gratuitamente ao povo e, ao mesmo tempo, desembaraçados de toda a ingerência da igreja e do Estado. […] Os funcionários da justiça foram despojados dessa fingida independência que não tinha servido senão para mascarar a sua vil submissão aos sucessivos governos.
2. “República social” e governo operário
A multiplicidade das interpretações a que a comuna foi submetida e a multiplicidade dos interesses que se reclamavam dela mostra que era uma forma política susceptível de expansão, enquanto todas as outras formas de governo tinham até então posto o acento sobre a repressão. O seu verdadeiro segredo é o seguinte:
2.1.“A república social” era essencialmente um governo da classe operária, o resultado da luta da classe dos produtores contra a classe dos apropriadores, a forma política finalmente alcançada que permitia realizar a emancipação económica do trabalho.
2.2. Uma vez o trabalho emancipado, qualquer homem se torna um trabalhador e o trabalho produtivo deixa de ser o atributo de uma classe.
2.3. A comuna foi a forma positiva dessa “República social”, que não devia apenas abolir a forma monárquica da dominação de classe, mas a própria dominação de classe.
3. Governo operário e alianças sociais
Pela primeira vez, simples operários ousaram tocar no privilégio governamental dos seus “superiores naturais”, ou seja ousaram formar, com os seus iguais, o seu próprio governo.
3.1. A Comuna foi a primeira revolução na qual a classe operária era claramente reconhecida como a única que ainda era capaz de iniciativa social, mesmo pela grande massa da classe média parisiense – lojistas e demais comerciantes e negociantes, e com a única excepção dos ricos capitalistas. Essa mesma parte da classe média tinha participado no esmagamento da insurreição operária em Junho de 1848; e tinha sido de imediato sacrificada aos seus credores. Mas esse não era o único motivo para agora se aliar à classe operária: - sentiam que só tinham uma alternativa: A Comuna ou o Império, fosse qual fosse o nome com que reaparecesse, era a opção.
3.2. A Comuna tinha toda a razão em dizer aos camponeses: “a nossa vitória é a vossa única esperança”.
3.3. Se a Comuna era assim a verdadeira representante de todos os elementos sãos da sociedade francesa, ela era ao mesmo tempo um governo operário, e a esse título, um campeão audacioso da emancipação internacional do trabalho; por isso, apelando à solidariedade internacional com a Comuna de Parias, Marx insiste que a questão da Comuna é uma questão internacional, uma questão que interessa universalmente à classe operária.
4. A Crítica do parlamentarismo
Lenine destaca também no texto de Marx uma notável crítica do parlamentarismo que, soterrada pelos comentários do oportunismo social-democrata, pertencia no momento em que escrevia, como se calhar também hoje, ao tesouro das palavras «esquecidas» do marxismo.
4.1. Marx critica o modo como o sufrágio universal é capturado e serve para eleger a cada três ou seis anos qual o membro da classe dirigente que “representará” e calcará com os pés o povo no parlamento.
4.2. A mais democrática das repúblicas baseada na representação, a mais ampla democracia representativa nunca conseguirá eximir-se a essa limitação de consequências devastadoras que é a separação entre representados e representantes. Separação que é, desde logo económica e social, e permite que os representantes manipulem os representados e construam o seu mandato de acordo com os seus próprios interesses e não segundo os daqueles que os elegeram seus representantes.
5. O “ASSALTO AOS CÉUS”
Marx, no Outono de 1870, tinha solenemente prevenido a classe operária francesa contra toda e qualquer acção prematura; na sua análise da Comuna não esconde os seus erros e fragilidades da Comuna de Paris, mas a sua análise é feita com um enorme entusiasmo. Pode parecer estranho, mas não há nisto qualquer contradição.
Trata-se simplesmente de uma manifestação da elevadíssima consciência revolucionária de Marx. Ele receava que qualquer acção irreflectida comprometesse o destino da classe operária, mas sabe reconhecer de imediato o alcance histórico da acção da Comuna e esclarece a sua significação profunda para todo o movimento internacional.
A atitude de Marx é um exemplo da firmeza e da coragem intelectual e política que se espera de um revolucionário. Ela permite fundar uma crítica do oportunismo e da cobardia política, mesmo daqueles que, hoje, por exemplo, criticam Lenine e os bolcheviques, por terem tido a iniciativa de tomarem o poder sem estarem reunidas todas as garantidas de que o poderiam manter com êxito.
Em carta de 12 de Abril a Kugelmann, Marx refere-se à acção dos operários parisienses como um “assalto aos céus”. E em face da resposta do seu correspondente, escreverá:
“seria evidentemente muito cómodo fazer a história se só se devesse travar a luta em condições infalivelmente favoráveis […]. Graças ao combate travado por Paris, a luta da classe operária contra a classe capitalista e o seu Estado capitalista entrou numa fase nova. De qualquer maneira que as coisas aconteçam no imediato, o resultado será um novo ponto de partida de uma importância histórica mundial.
Lenine, no Prefácio à tradução russa das cartas de Marx a Kugelmann (I5 de fev. de 1907), ESCREVE:
“Marx sabia também ver que, em certos momentos da história, uma luta sem tréguas das massas, mesmo por uma causa desesperada, é indispensável para a educação ulterior dessas próprias massas, para as preparar para a luta futura. […] “Os canalhas burgueses de Versailles, escreve Marx, colocaram os Parisienses perante uma alternativa – ou respondiam ao desafio ou sucumbiam sem combate. Neste último caso, a desmoralização da classe operária seria uma desgraça muito maior que a perda de um qualquer número dos seus chefes” (90).
E Lenine continua:
“Marx não se contentou em admirar o heroísmo dos communards subindo ao assalto dos céus” No movimento revolucionário das massas, embora ele não tenha atingido o seu objectivo, ele via uma experiência histórica de um alcance imenso, um passo em frente da revolução proletária universal, um passo real, bem mais importante que centenas de programas e de raciocínios.”(315)
No VII congresso extraordinário realizado de 6 a 8 de Março de 1918, Lenine apresenta uma resolução sobre a proposta de mudança de nome do Partido e de modificação do seu programa. A relação com a Comuna de Paris é nos dois casos de assinalar:
«O congresso decide que no futuro o nosso Partido (o Partido operário social-democrata bolchevique da Rússia), chamar-se á Partido Comunista da Rússia, tendo entre parênteses a adjunção da palavra “bolchevique”.
A modificação da parte política do nosso programa […] deve consistir na definição, de maneira o mais precisa e completa, do Estado de tipo novo, a República dos Sovietes, enquanto forma da ditadura do proletariado e continuação das conquistas da revolução operária internacional, inauguradas pela Comuna de Paris.» (II: 630)
*Comunicação proferida no Congresso Marx em Maio realizado em Lisboa em 3, 4 e 5 de Maio de 2012.
**Poeta, ensaísta, Professor da Universidade de Lisboa e membro do Comité Central do PCP.

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