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Reproduzimos a seguir entrevista de José Paulo Netto sobre as esquerdas no Brasil para a revista Caros Amigos.
"O professor de Serviço Social e
pensador marxista explica a história da esquerda no Brasil e seus
desdobramentos no momento atual em entrevista especial para o site da
Caros Amigos, em razão do lançamento da edição especial "Dilemas e
Desafios da Esquerda Brasileira". Confira.
Por Tatiana Merlino
Caros Amigos - Quando se poderia afirmar que surgiu uma esquerda no Brasil?
Sem pretender rigor cronológico, diria
que se pode falar em uma proto-história da esquerda brasileira a partir
da última década do século 19 e nos primeiros anos do século 20.
Pense-se, para ficarmos em exemplos conhecidos, nos nomes de Silvério
Fontes, em parte da atividade de Euclides da Cunha e mesmo nas posições
de Lima Barreto. Mas, com rigor, penso que a história da nossa esquerda
tem mesmo o seu momento fundacional com a atividade dos grupos
anarquistas, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, no período
imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial. Julgo correta a
afirmação de que os anarquistas inauguraram a história da esquerda no
Brasil.
Caros Amigos - Qual foi a influência da imigração europeia na consolidação de uma ideologia de esquerda no Brasil?
Esta influência foi absolutamente
fundamental – não por acaso, mencionei, acima, que os anarquistas
inauguraram a história da esquerda em nosso país. E sabemos do papel dos
imigrantes neste processo (aliás, a oligarquia percebeu-o claramente:
recorde-se a “lei celerada”, de 1907). Mas é necessário enfatizar que
não se tratou de nenhuma transplantação artificial: a incipiente
industrialização criava as condições para que as ideias difundidas pelas
lideranças anarquistas penetrassem com força no nascente movimento
operário. A greve de 1917, em São Paulo, mostra-o suficientemente.
Caros Amigos - Que ideias os imigrantes trouxeram?
Não cabe aqui, suponho, sumariar o
ideário anarquista (que, diga-se de passagem, chega-nos como um caldo de
cultura bastante heterogêneo). A mim, parece-me que o mais
significativo pode ser resumido em dois pontos elementares: a defesa da
dignidade do trabalho e do trabalhador e a definição claríssima das
linhas básicas do antagonismo entre os interesses dos trabalhadores e os
da oligarquia. Num país onde a herança do escravismo, ademais de
pesadíssima, estava muito viva, a simples afirmação dos direitos civis e
políticos do trabalhador “livre” já era, em si, revolucionária. Quanto à
determinação das lutas de classes, o princípio da autonomia política
dos trabalhadores (mesmo que, para os anarquistas, isto significasse uma
recusa da intervenção política institucional, o que se demonstrou
insustentável), no Brasil nós o devemos aos anarquistas.
Caros Amigos - Quais eram as correntes que atuaram no país no começo do século 20? Como era tal atuação?
À mobilização anarquista, a oligarquia
respondeu imediatamente (para além da repressão) com o estímulo ao
sindicalismo “amarelo”, explicitamente bancado pelo governo federal
(pense-se, por exemplo, no esforço de Mário Hermes da Fonseca, filho do
Presidente da República, para a criação do “peleguismo” no IV Congresso
Operário, realizado no Rio de Janeiro). No período que sucede
imediatamente à Primeira Guerra Mundial, o movimento operário tem a sua
dinâmica fundada no confronto entre estas duas tendências. E suas formas
de intervenção eram, é óbvio, inteiramente diversas: os anarquistas
jogavam forte na criação de condições ideológicas constitutivas da
consciência classista (sua ênfase na educação e na imprensa independente
são seus traços característicos) e apostavam na ação direta; os
“amarelos” incorporavam a ideologia da colaboração de classes e se
subordinavam às diretrizes legal-institucionais da oligarquia.
Caros Amigos - Como foi o processo que resultou na criação do PCB? Quais foram as forças que o formaram?
Se não estou em erro, diria que o PCB
(fundado em março de 1922) resulta da confluência de dois vetores: o
exaurimento do poder de atração do anarquismo entre os trabalhadores e o
impacto da Revolução de Outubro. A greve de 1917, que pôs a correr, em
São Paulo, as autoridades e deixou a capital nas mãos dos trabalhadores –
ponto mais alto da intervenção anarquista em nosso país –, também
deixou a nu a incapacidade do anarquismo para tratar a questão do poder.
O impacto da Revolução Russa conferiu grande prestígio (o que, aliás,
foi um fenômeno mundial) ao comunismo, num primeiro momento inclusive
entre os anarquistas. Evidentemente, não se esgotam nestes dois vetores
as bases para o surgimento do PCB – para compreendê-lo, é necessário
observar as mudanças societais que estavam em curso, mesmo larvares, no
país, que alteravam claramente a estrutura de classes e as práticas
políticas (pense-se, aqui, no que o “tenentismo” sinalizava) e atingiam
inclusive as expressões estéticas (não é casual, ainda que expressando
posições de classe muito diversas, que o PCB seja coetâneo ao
Modernismo). Importa observar que o surgimento do Partido Comunista no
Brasil, à diferença do ocorrido em muitos outros países, inclusive da
América Latina, não se beneficiou da existência do que podemos designar
como “cultura socialista”: aqui, o peso do anarquismo na fundação do PCB
(lembre-se que o nome mais conhecido dentre os fundadores era o de
Astrogildo Pereira, que provinha do anarquismo) foi hipertrofiado
precisamente pela ausência de qualquer outro componente significativo de
esquerda – não é por acaso que, no PCB, manifestam-se precocemente
divergências de monta (por exemplo, já em 1927-1928).
Caros Amigos - Como se desenvolveu a esquerda durante o Estado Novo, o que ela enfrentou, como atuou?
O Estado Novo se ergue após uma séria
derrota da principal força de esquerda operante no país a partir do
segundo terço da década de 1930 – refiro-me ao PCB que, após a
ilegalização da Aliança Nacional Libertadora (que, de fato, era uma
frente que incluía outras forças além do PCB), lidera a tentativa de
tomada do poder em novembro de 1935. Durante os anos de 1938 a 1943,
período em que o Estado Novo se manteve em face de uma oposição
imobilizada pela repressão (mas não só), a intervenção da esquerda foi
praticamente nula. O próprio PCB (que, à época, assistiu ao surgimento
de outras frações comunistas, como, por exemplo, aquela animada por
Hermínio Sacchetta) praticamente desaparece como organização entre os
finais dos anos 1930 e a realização da célebre “Conferência da
Mantiqueira” (1943). É somente a partir de 1943 – e não se subestime
nisto a viragem que ocorre no decurso da guerra, especialmente após a
vitória soviética em Stalingrado – que se pode falar de uma retomada da
intervenção da esquerda, inclusive com o surgimento de uma esquerda
não-marxista.
Caros Amigos - E durante o intervalo democrático entre 45 e 64?
Penso que devemos ter alguma cautela ao
mencionar o período 1945-1964 como um “intervalo democrático” – não nos
esqueçamos que o Governo Dutra foi emblemático da Guerra Fria que nascia
com o seu zoológico anticomunismo: foi, dos governos “constitucionais”,
um dos mais, senão o mais, antidemocrático que tivemos. A repressão que
então se abateu sobre o movimento operário-sindical responde, em grande
medida, pela interrupção do crescimento da esquerda, visível em
1945-1946. Mas esta repressão não impediu a intervenção significativa da
esquerda, seja no próprio período Dutra (evoque-se o papel do Partido
Comunista na luta rural de Porecatu, no Paraná), seja na abertura dos
anos 1950, em especial no movimento operário-sindical, quando os
comunistas estabelecem, de fato, uma aliança com setores do Partido
Trabalhista Brasileiro (o PTB de Vargas).
A meu juízo, é na segunda metade da
década de 1950 – mais precisamente, após o suicídio de Vargas e a
intentona golpista de 1955 – que podemos registrar um efetivo
crescimento da esquerda no país. No período posterior a 1955, são
constituintes deste crescimento dois fenômenos: a crise e a recuperação
do PCB e o surgimento de forças de esquerda independentemente da
influência do PCB. Conhece-se a crise do PCB na imediata sequência do XX
Congresso do PCUS (fevereiro de 1956): a chamada “denúncia do culto à
personalidade” de Stalin leva o PCB, desde 1945 fortemente stalinizado, a
uma crise que põe o partido no fundo do poço. Somente em 1958, mediante
uma “nova política” (cuja formulação inicial está na discutida
“Declaração de Março”), o partido dos comunistas ganha um novo fôlego,
que lhe permitirá ser uma referência nos anos seguintes (apesar da
fratura que sobrevém em 1962 e que dá origem ao PC do B).
Mas é também no fim dos anos 1950 que
surgem núcleos de esquerda, marxistas e revolucionários, que não
carregam a hipoteca do stalinismo que marcara o PCB. Este movimento, que
se tornará inteiramente visível na entrada dos anos 1960 e que
enriquece a esquerda, não expressa tão somente a dinâmica da sociedade
brasileira, mas também sinaliza giros ocorrentes em outras experiências
políticas (ademais da Revolução Chinesa, incide aqui, poderosamente, o
influxo das lutas de libertação nacional em todo o à época denominado
Terceiro Mundo e, particularmente nos anos seguintes, da Revolução
Cubana). Creio que é preciso estudar com mais cuidado estes anos férteis
para a esquerda brasileira, quando o PCB perde o monopólio do marxismo
entre nós – e o marxismo se espraia para muito além das fronteiras do
PCB.
A transição dos anos 1950 aos 1960 é de
crescimento (inclusive orgânico-partidário) da esquerda brasileira – e
isto vale, a meu juízo, tanto para o PCB como as outras frações
emergentes fora do circuito da tradição marxista. Penso na constituição
de setores socialistas em partidos inteiramente alheios a esta tradição
(basicamente no PTB) e no aparecimento de segmentos socialistas laicos
vinculados a diferentes igrejas, embora com visibilidade maior para os
de extração católica (em função, inclusive, do ponderável
redirecionamento da Igreja a partir do papado de João XXIII). É mais ou
menos claro que este crescimento da esquerda (e, em todas estas
respostas, estou designando por “esquerda” um leque muito amplo e
heterogêneo de forças, cujo denominador comum me parece ser o
antiimperialismo e a crítica à ordem burguesa numa perspectiva voltada
para o futuro, excluindo-se, pois, o anticapitalismo romântico próprio
da direita restauradora) expressou, naqueles anos, um efetivo processo
de democratização da sociedade brasileira – processo ele mesmo
relacionado às mudanças estruturais em curso (consolidação da
industrialização substitutiva de importações, urbanização etc.).
Caros Amigos - O que representou o golpe de 64 para a esquerda no Brasil?
Entendo o golpe do 1º de abril conforme a
brilhante caracterização de Florestan Fernandes: foi parte de um
processo mundial de contra-revolução preventiva. Representou, para as
massas trabalhadoras brasileiras, a liquidação de um processo de
democratização que certamente conduziria a profundas modificações
econômico-sociais, capazes de desobstruir a via para o rompimento da
nossa heteronomia econômica. Para a esquerda, foi uma derrota de enormes
implicações.
Também entendo que a esquerda laborou em
equívocos e cometeu erros que facilitaram o golpe e a instauração da
ditadura. Mas, ao contrário de muitos analistas, não debito a derrota de
abril aos equívocos e erros da esquerda: o golpe, parte da mencionada
contra-revolução preventiva, deve ser explicado pela natureza da
dominação de classe exercida no Brasil pela burguesia. Naquele momento,
incapaz de ser classe dirigente, ela escolheu, conscientemente, enquanto
classe, ser classe dominante – e armou um esquema de alianças,
nacionais e internacionais, que lhe possibilitou, durante quase 20 anos,
instaurar o que o mesmo Florestan designou como autocracia burguesa.
Caros Amigos - Como avalia as
diversas organizações que surgiram no pós-golpe? Por que foram tantas,
por que eram tantas correntes? Porque não conseguiram se unir?
A unidade entre as forças reacionárias
e/ou conservadoras nunca constituiu um problema de vulto na história
política do século 20 – e se compreende a razão: seus interesses
econômicos têm fundamentos comuns e estão enraizados no presente. No
quadro da esquerda, a unidade é sempre problemática, porque os enlaces
se dão mais na prospecção do futuro do que na defesa de interesses
materiais imediatos; é problemática, mas possível, como resultado de
longos processos de debates, do conhecimento da experiência histórica,
de combates prévios travados em comum e, sobretudo, do próprio nível de
consciência das massas trabalhadoras, conquistado em suas experiências
diretas. Frente a um inimigo comum – como era o caso da ditadura
instaurada em 1964 e cujo caráter de classe se explicitou, sem deixar
margem a dúvidas, em 1968, com o AI-5 – seria esperável a constituição
de uma unidade entre as forças de esquerda. Sabemos que isto não
ocorreu. Muitas foram as causas da dispersão de esforços e de combates.
Penso que parte delas estava inscrita na análise que as diferentes
forças fizeram (ou deixaram de fazer) da natureza do regime instaurado
em 1964 e, ainda, das causas que permitiram a vitória das forças de
direita. Mas também pesaram as concepções estratégicas quanto à derrota
da ditadura, a extração de classe dos resistentes e a conjuntura
ideológica da época. Substantivamente, pesou igualmente a ponderação
diferente que as várias forças de esquerda (profundamente debilitadas,
pela repressão sistemática a que foram submetidas, em sua relação com as
massas trabalhadoras) faziam do papel a ser desempenhado por estas
mesmas massas.
Caros Amigos - Como a luta de massa se organizou na segunda metade dos anos 70?
Parece-me que estavam na direção mais
correta aquelas forças (e este foi, entre outros, o caso do PCB) que
entendiam a derrota da ditadura como resultado de lutas de massas. O
fracasso do “modelo econômico” da ditadura (evidenciado claramente a
partir de 1974-1975), as divisões que começaram a erodir a estreita base
política do regime de 1964 e, sobretudo, a até então lenta reinserção
da classe operária na cena política criaram as condições para que a
resistência democrática deixasse os nichos em que subsistia e ampliasse o
seu raio de influência. Frentes de luta até então subestimadas (contra a
carestia, pela anistia e mesmo processos eleitorais) ganharam uma
ponderação até então insuspeitada para muitos setores da esquerda.
Caros Amigos - Qual foi o papel desempenhado pelo sindicalismo no período pré-democratização?
Aqui, a resposta é simples: foi
absolutamente fundamental. Mediante a ação do movimento
operário-sindical é que se processou a reinserção das massas
trabalhadoras (especificamente do proletariado) na cena política
brasileira. Até então, a oposição e a resistência à ditadura tinham uma
incontestável hegemonia burguesa (não se deve subestimar o papel do
falecido Movimento Democrático Brasileiro/MDB); mediante a ação
operário-sindical, que começa a ganhar vulto a partir de 1976-1977, a
oposição burguesa é afetada, sua hegemonia na resistência institucional é
ameaçada e a erosão do regime se acelera.
Caros Amigos - Qual foi a importância da esquerda no fim da ditadura e na redemocratização do país?
Já assinalei que a reinserção da classe
operária na cena política, no último terço da década de 1970, foi o
componente central para a derrota da ditadura. Foi através da
dinamização do movimento sindical que esta inserção se viabilizou – e
teve como efeito a catalização das demandas democráticas numa escala até
então inimaginável, arrastando amplos setores das camadas médias, da
intelectualidade e até mesmo de segmentos burgueses prejudicados no
marco do “modelo econômico”. Não penso que este arco de forças,
originalmente, possa ser visto como uma criação da esquerda – embora
novos setores de esquerda e antigos militantes, que puderam sobreviver à
repressão, tenham tido papel significativo na sua constituição. Mas é
indiscutível que, com o quadro novo criado pela movimentação
operário-sindical, distintas forças de esquerda, operando em especial a
partir do fim do AI-5 e da anistia, deixaram a sua marca no processo de
derrota da ditadura.
Caros Amigos - Como avalia o processo de surgimento do PT, da CUT e do MST?
Entendo que o surgimento do PT e da CUT
estão diretamente ligados ao que designo como reinserção da classe
operária na cena política brasileira – diria que ambos, emergentes nos
anos 1980, são um fruto daquele processo. E um processo daquela
relevância origina naturalmente, numa sociedade diferenciada e complexa,
tal como já se apresentava a nossa na abertura daquela década,
distintas expressões políticas. Nas suas origens, embora militando
noutra organização política, vi o surgimento de ambos como algo
basicamente positivo – porém, sempre tive preocupações em relação ao seu
futuro, preocupações referidas à retórica “esquerdista” e sectária
(quem não se lembra daquela bobagem eleitoreira de “trabalhador vota em
trabalhador”?), às ligações internacionais (especialmente no caso da
CUT) e, muito especialmente, à ignorância (nalguns casos, o desprezo) em
relação ao passado de lutas dos trabalhadores e das outras forças de
esquerda. Mas, à época, debitei tudo isto à necessidade natural de
constituir uma identidade partidária e confiei em que a presença de
lideranças expressivas de lutas sociais precedentes poderia fazer
amadurecer esta identidade num sentido efetivamente de esquerda.
Penso que é diferente o caso do MST.
Também fruto das condições que levaram à derrota da ditadura, o MST, a
meu juízo, tornou-se um movimento verdadeiramente autônomo, com
objetivos muito claros e uma estratégia de luta flexível e que leva em
conta a experiência do passado. É bastante provável, em função das
aceleradas transformações operadas no campo, que o movimento seja, na
atualidade, compelido a repensar-se e a repensar a natureza e a função
das suas lutas – mas me parece o único protagonista político
significativo que põe em prática algumas referências próprias da
esquerda, como a sistemática formação política e a solidariedade
internacionalista.
Caros Amigos - O que representaram para a história da esquerda as eleições de 89?
O balanço, feito à distância, do
processo eleitoral de 1989 é paradoxal. De uma parte, mostrou a força
das aspirações democráticas num momento preciso – o saldo eleitoral, do
ponto de vista imediato, foi notável: demonstrou a possibilidade efetiva
de derrotar, nos marcos da institucionalidade formal, as forças da
direita, desde que se realizasse, ainda que momentaneamente, uma unidade
da esquerda e de setores democráticos (recorde-se que tanto os partidos
comunistas quanto Covas e Brizola apoiaram Lula no segundo turno). De
outra parte, o ganho organizativo, para o conjunto da esquerda,
parece-me que foi pouco mais que residual – não teve a menor simetria
com o ganho eleitoral.Mas é preciso dizer outra coisa importante: ficou
claro que a grande burguesia, em processos eleitorais minimamente
democráticos, não tinha, no final dos anos 1980, a menor chance de se
viabilizar se apresentasse o seu próprio rosto (Collor nunca passou de
um aventureiro político, que não expressava organicamente os interesses
do grande capital; foi apenas um instrumento para evitar a vitória de
Lula). E a grande burguesia aprendeu a lição: no processo eleitoral
seguinte, foi obrigada a usar, para a defesa das suas posições, a
maquiagem da esquerda – daí o seu apoio a FHC.
Caros Amigos - Como vê os rumos do PT desde então?
A resposta a esta questão já está
implícita linhas acima e, de algum modo, inclui a pergunta subsequente.
Os anos 1990 foram de um discreto, aparentemente suave e efetivo
deslizamento do PT para o centro – já no primeiro confronto com FHC,
desenhava-se o “Lulinha paz e amor”. Ao que parece, no fim da década, a
esquerda foi inteiramente neutralizada no interior do PT – isto não
significa, a meu juízo, que desde então deixaram de estar presentes no
PT militantes de esquerda sérios, responsáveis e confiáveis. Mas tudo
indica que são algumas rosas vermelhas num grande campo de braquiária.
Posso estar enganado, mas, a partir de 2003, o PT converteu-se no gestor
preferencial, para a grande burguesia, deste país. Permita-me recorrer a
algo menor, mas que me parece extremamente simbólico: semana passada, a
grande imprensa noticiou que o ex-presidente da República fez uma
viagem ao exterior num jatinho de empresa do Grupo Gerdau, mantendo
agradável palestra com o patriarca da família. Não sei se é fato, mas
sei que é emblemático. Emblema de que já tivemos prova, aqui no Rio de
Janeiro, há tempos: quando do falecimento de Roberto Marinho, Lula veio
ao velório acompanhado de um séquito de ministros; no velório de
Brizola, brilhou pela ausência.
Caros Amigos - Quais foram os efeitos da década neoliberal na esquerda brasileira?
Os efeitos – ainda que indiretos,
mediatos e que precisam ser relacionados aos impactos derivados da queda
do “Muro de Berlim” – foram catastróficos em todo o mundo e não se
limitaram, obviamente, ao universo ideológico e ao imaginário político: o
preço da ofensiva do grande capital foi e está sendo pago pelas massas
trabalhadoras do mundo inteiro.
Sobre a esquerda brasileira, os efeitos
foram imediatamente deletérios: o generalizado abandono do ideário
socialista e, no limite, a sua conversão numa social-democracia tíbia e
tardia. Forças que no passado tiveram expressiva participação na luta
contra a ditadura e pela democratização do país converteram-se ou em
abertos porta vozes da ordem (o caso do PT é certamente gritante, mas
não se esqueça o posicionamento junto com o DEM – com o DEM! – que os
ex-comunistas do PPS hoje efetivam) ou abdicaram do seu programa e da
sua autonomia na prática política (o caso do PCdoB). Evidentemente,
estamos defrontados com um processo social profundo, que não pode ser
creditado a personalidades ou a oportunismos de ocasião. De qualquer
forma, impera na esquerda “reciclada” pela ideologia dessa coisa
realmente reacionária que grosseiramente se chama neoliberalismo um
cinismo assombroso: ex-guerrilheiros que se tornaram paladinos da
“cidadania”, ex-líderes sindicais outrora extremamente radicais
defendendo/teorizando os/sobre a importância econômica e democrática de
fundos de pensão, ex-expoentes de partidos comunistas predicando que a
questão central sob o capitalismo está na distribuição e não no modo de
produção e coisas que tais.
Caros Amigos - O que representou
a eleição de Lula em 2002 para a esquerda brasileira? Como avalia desde
então as forças de esquerda no país?
Do ponto de vista político imediato, o
resultado eleitoral de 2002 foi uma derrota da direita e dos
conservadores, uma derrota do grande capital. Do ponto de vista
simbólico, foi extremamente importante a vitória de um líder político de
extração operária.
Mas uma coisa foi a vitória eleitoral e
outra, muito diversa, o desempenho político: a enorme legitimidade que
as urnas conferiram a Lula para empreender a caminhada no sentido das
grandes transformações econômicas e sociais foi direcionada para outro
rumo – à base da reiteração do fisiologismo político, a adequação do
minimalismo da política social à orientação macro-econômica de interesse
do grande capital. Lula realizou uma eficiente gestão do status quo.
Que fique claro que estou longe de
equalizar Lula (e tudo o que ele representa e expressa) a um líder
submisso à direita e aos conservadores ou um mero instrumento do grande
capital – mas seus dois períodos presidenciais estiveram aquém,
inclusive, de uma prática política “possibilista”. E seu principal
papel, no que tange à esquerda, foi desqualificá-la como capaz sequer de
um governo “diferente” – e não será fácil, para a esquerda, livrar-se
desta herança.
Caros Amigos - Por fim, como o senhor avalia o atual momento da esquerda brasileira?
Penso que se trata de uma conjuntura
extremamente difícil (e, insisto, trata-se de um quadro mundial, que não
diz respeito somente ao Brasil). O espectro da esquerda orgânica
(bastante diferenciada: PCB, Psol, PSTU) e da esquerda que ainda
subsiste no interior de alguns partidos (nomeadamente no PT) não reflete
minimamente o peso potencial, mesmo que hoje minoritário, da esquerda
na sociedade brasileira (como se pode constatar em movimentos como o MST
e em grupos políticos minúsculos, mas que podem ser expressivos
futuramente). Como escrevi há algum tempo, o nosso déficit é
organizacional e ele não será superado da noite para o dia – temos, a
esquerda, um longo caminho a percorrer.
A longo prazo (por mais que esta
expressão provoque um sorriso nos keynesianos), sou otimista. As
contradições e impasses da ordem do capital, inclusive como se
apresentam na periferia, são insolúveis no seu marco – não há Bolsa
Família, mesmo ampliado, que os resolva. As tensões acumuladas na nossa
formação social não podem ser anestesiadas sem limites. Tenho, para mim,
que está e continua em curso um processo de fundo que implicará numa
agudização das lutas de classes. Se a normalidade da democracia formal
não sofrer interrupção, a esquerda poderá perfeitamente superar a sua
debilidade organizacional – desde que trabalhemos forte já desde agora –
e cumprir o que dela se espera: vencer a cronificação da barbárie pelo
avanço na direção do horizonte socialista."
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