Crédito: Demetrio Cherobini | |
A proposta da ofensiva socialista, de
que fala Mészáros, exige, dos interessados na superação do sistema,
esforços para a efetivação progressiva, já no presente, de um tipo de
organização diverso do que está posto pela realidade alienante do
capital.
Data: 18/05/2012
"Todo mandato é minucioso e cruel, eu gosto das frugais transgressões" Mario Benedetti
Um dos pontos culminantes da teorização
política desenvolvida por István Mészáros em Para além do capital [1]é
quando o filósofo estabelece a atualidade histórica da ofensiva
socialista. Essa atualidade nada tem a ver com a ideia de que o
capitalismo esteja em vias de acabar ou de que o sucesso da ação
socialista seja hoje assegurado por alguma condição objetivamente dada
na história. O que Mészáros, na verdade, afirma é que, em virtude da
profunda crise estrutural do sistema do capital, na qual estamos
inseridos, "a necessidade de instituir algumas mudanças fundamentais na
organização e a orientação do movimento socialista se apresentou na
agenda histórica" [2]. Para podermos delinear o sentido dessas mudanças
fundamentais, devemos compreender as contradições que compõem o ser do
capital na presente etapa histórica da humanidade.
A crise estrutural de que fala o
filósofo – que de modo algum começou com as complicações no setor
financeiro da economia, nos países de centro, em 2007 – foi o produto do
fim da chamada "fase ascendente do desenvolvimento do capital" e da
consequente confrontação desse sistema com algumas contradições que se
lhe afiguraram insolúveis. Em razão disso, o capital se viu obrigado a
se reestruturar de uma maneira em que a produção destrutiva passou a ser
o elemento predominante de seu movimento autoconstitutivo.
Tal produção destrutiva – com seu
correspondente consumo destrutivo - é que dá a forma da crise estrutural
e faz com que a atual dinâmica sociometabólica da humanidade se
assemelhe, no dizer de Mészáros, a um câncer em progressão [3].
O aprofundamento dessa crise estrutural –
uma crise que é rastejante e não cíclica, e que é visível, por exemplo,
na preponderância imperialista do Complexo Militar-Industrial e na sua
incessante necessidade de guerras e conflitos, que arrastam atrás de si o
conjunto da economia mundial – apresenta-se, segundo o filósofo
húngaro, como a tendência fundamental de nossa época. Como tal, esse
fenômeno não pode ser combatido lançando-se mão simplesmente de
reformas, por mais engenhosas que estas venham a ser, e sim por
intermédio de uma reestruturação completa e radical das relações de
produção e dos processos de tomada de decisão política vigentes em nossa
sociedade.
É, portanto, por generalizar a
destrutividade a uma escala jamais vista – a escala planetária – e
torná-la o "motor" da produção que a crise estrutural do capital se
constitui no elemento fundante da atualidade histórica de um projeto
alternativo, qualitativamente superior, de regulação do metabolismo
social humano.
Aqui, é preciso esclarecer um ponto:
afirmar a atualidade histórica da ofensiva socialista, como o faz
Mészáros, não significa que a revolução possa ser feita a qualquer
momento ou de qualquer modo. Significa apenas que ela, a revolução, é a
perspectiva da qual se parte para se analisar a realidade concreta e,
consequentemente, para se tomar as decisões nas questões estratégicas
referentes à práxis socialista. Somente a partir desse parâmetro – a
atualidade da revolução, e não o reformismo -, é que os proletários
podem organizar coerentemente suas ações emancipatórias e aspirar ter
êxito na realização de um projeto societário alternativo.
A perspectiva da atualidade da revolução
é a que nos faz colocar, sempre, diante dos olhos, a superação do
capital, e não apenas de alguma de suas partes constituintes ou
expressões fenomênicas, como princípio orientador último e determinante
de nossa estratégia política. O capital, como assinala Mészáros, é um
sistema de controle do metabolismo social, composto por certo número de
mediações [4], que se realiza no sentido de explorar a maior quantidade
possível de trabalho excedente, num movimento sempre acumulativo e
expansivo. A tarefa premente dos revolucionários, nesse contexto, é a de
eliminar a totalidade desse conjunto de mediações e instaurar uma nova
forma de organização social que restitua aos produtores associados
aquilo que o capital lhes cerceia: o poder de determinar autonomamente
os rumos da atividade produtiva.
Nessa luta encarniçada contra o inimigo
visceral, é preciso que os sujeitos interessados na construção de um
mundo novo não tenham ilusões a respeito de uma das mediações essenciais
da composição do sistema: o Estado.
O Estado, diz Mészáros, não pode ser
identificado e confundido com os indivíduos – ou com os cargos ocupados
por esses indivíduos – que preenchem sua intrincada estrutura. Ele é, em
realidade, um conjunto de relações sociais, com uma correspondente base
material, que está atrelado a um conjunto mais amplo, o sistema do
capital, que o determina e o faz retroagir sobre sua dinâmica
sociorreprodutiva. Por ser, portanto, mera parte dessa totalidade, o
Estado não pode controlá-la. Ao contrário, é pelo sistema controlado,
como bem explica o filósofo húngaro.
O Estado recebe do capital a incumbência
de realizar a harmonização dos conflitos que frequentemente irrompem de
seu bojo, frutos dos processos fetichistas de exploração e acumulação
de trabalho excedente. Imbuído dessa exigência, o Estado é até capaz de
atender, aqui e acolá, algumas das demandas feitas por grupos oprimidos
da sociedade, mas ele assim procede, única e exclusivamente, a fim de
evitar mudanças que atentem contra a condição fundamental de existência
do sistema: o controle hierárquico absoluto estabelecido pelo capital
sobre o trabalho.
Essa constatação tem implicações
políticas importantes para as lutas dos trabalhadores, pois mostra que
não se pode pretender "encilhar" o capital por meio de reformas feitas a
partir do Estado. O capital é, como explica Mészáros, uma força
material que, para ser batida, precisa ser golpeada, sem vacilações, em
suas raízes extraparlamentares [5].
Por consequência, o desafio central,
para os proletários, passa a ser o de, sem dispensar as batalhas no
interior do Estado – batalhas defensivas, por definição, mas
extremamente importantes na medida em que buscam oferecer resguardo
contra os ataques perpetrados pelo capital -, conseguir compor uma força
material que seja, também, extraparlamentar, crítica e radical, capaz
de promover a reestruturação completa das mediações antagônicas vigentes
nas múltiplas esferas da sociedade.
Isso significa, em outras palavras, que
as lutas no interior das instituições estatais, além de precisarem ser
feitas com a maior firmeza possível, devem estar articuladas com as
disputas extraestatais que visam à formação das associações coletivas
capazes de regular, de maneira autônoma e horizontal, a atividade
produtiva humana. A ofensiva socialista de que fala Mészáros é,
justamente, o projeto que objetiva combinar dialeticamente essas
modalidades de combate a fim de trazer à luz tais associações e fazer
com que estas sirvam de base às grandes transformações a serem
implementadas nos âmbitos da economia e da política.
É preciso, então, nesse contexto, forjar
as ferramentas de luta proletária em conformidade com essa orientação
estratégica geral, de coadunar negação e afirmação, combate defensivo e
ofensivo, no sentido da efetivação da transição socialista.
Ora, como é sabido, nos últimos anos,
com as manifestações mais explosivas da crise estrutural do capital,
muitas foram as tentativas de construção de mediações de combate que
possibilitassem aos trabalhadores do mundo realizar reivindicações de
variados tipos. Diversos foram os países em que homens e mulheres saíram
organizadamente às ruas para questionar uma multiplicidade de
acontecimentos, entre eles o fato de que as decisões fundamentais, de
cunho político, econômico e social, que afetavam diretamente suas vidas,
estavam sendo tomadas à revelia de suas vontades[6]. Até mesmo o
Brasil, guardadas as devidas proporções, foi palco para o pronunciamento
de numerosas vozes, que, descontentes, clamavam por melhores condições
de existência [7].
Essas organizações desempenham uma
tarefa verdadeiramente árdua e indispensável: tomam ruas, ocupam praças,
elaboram modos criativos de protesto, montam piquetes, pressionam,
fazem agitação, enfrentam a repressão violenta do Estado, executam
princípios de uma ação que se pode considerar como negativa em relação a
essa ordem na qual a dinâmica sociometabólica se desenvolve sem que os
sujeitos que a sustentam tenham a possibilidade de dar a ela um rumo
consciente e coletivamente planejado.
A grande limitação de tais movimentos – e
este é o seu calcanhar de Aquiles – é que são incapazes de transcender a
ação meramente negativa (ou defensiva) e avançar no sentido de afirmar,
na prática e em escala de massa, uma nova forma de regulação do
metabolismo social que aponte para a superação definitiva do complexo
contraditório do capital enquanto controlador fetichista e destrutivo da
atividade produtiva humana.
Portanto, por mais valorosas que
possamos considerar essas mediações, devemos forçosamente concluir que
elas precisam, para levar suas batalhas adiante, até as últimas
consequências, orientar-se de maneira ofensiva contra o capital. E esse
salto programático só pode ser efetuado se os trabalhadores souberem
fazer bom uso do instrumento cuja tarefa essencial é a de organizar as
lutas de classes de uma forma em que se consiga ir além das
reivindicações concernentes aos interesses parciais (econômicos) dos
diversos setores da classe e, consequentemente, colocar em questão a
própria relação antagônica – uma relação que é política, isto é, que
envolve poder - existente entre capital e trabalho, que permeia a classe
como um todo.
Esse instrumento de que estamos falando é
o partido [8]. A atribuição específica do partido é a de,
justamente,politizar as lutas econômicas dos trabalhadores, ou seja,
tornar-se veículo para que a consciência proletária ultrapasse o nível
da particularidade e atinja o da totalidade concreta acerca do ser da
sociedade na qual estão inseridos e que atualmente é controlada pelo
sistema do capital. Numa palavra: o partido deve servir de mediação
entre a classe revolucionária e a consciência revolucionária [9].
Para tanto, o partido necessita ter a
melhor preparação teórica e política possível – profissionalizar-se, em
todos os âmbitos da práxis revolucionária -, ao mesmo tempo em que se
mantém organicamente vinculado às fileiras proletárias. Ele não é, nesse
contexto, o causador da revolução, mas a ferramenta dialética que
ensina e aprende com os trabalhadores e que lhes possibilita apreender
concretamente as múltiplas determinações sociometabólicas que afetam as
suas existências.
Comprando diariamente as lutas da classe
trabalhadora, inserindo-se em seu interior, realizando denúncias sobre
as arbitrariedades do capital, fazendo agitação político-ideológica,
usando as palavras de ordem adequadas, educando e preparando material,
tática e estrategicamente as massas para a atividade revolucionária – as
batalhas ofensivas com o fim de formar mediações alternativas de
regulação da produção -, o partido se converte em elemento efetivo de
emancipação.
O partido não pode, portanto, em
hipótese alguma, permanecer a reboque das causas economicistas dos
trabalhadores, mas sim buscar a elevação da consciência das massas a
partir da conjugação de ações negativas e afirmativas em todos os
espaços passíveis de intervenção política.
Sua própria forma de constituição
interna, nesse contexto, precisa ser prenunciadora de uma formação
social qualitativamente superior. Organização e orientação estratégica
são, aqui, duas faces de uma mesma moeda. Isso quer dizer, em outras
palavras, que as mediações alternativas da luta proletária – partido
incluso – não podem se estruturar de uma maneira que reproduza a lógica
de funcionamento sociometabólico do capital – um modo de controle
hierárquico e fetichista da atividade produtiva. A proposta da ofensiva
socialista, de que fala Mészáros, exige, dos interessados na superação
do sistema, esforços para a efetivação progressiva, já no presente, de
um tipo de organização diverso do que está posto pela realidade
alienante do capital.
Conclusão: o desafio histórico de construir uma política socialista para além do capital
As tarefas dos trabalhadores são,
portanto, imensas e urgentes. A crise estrutural que se aprofunda
empurra-os cada vez mais para uma encruzilhada: seguir na trilha da
produção e consumo destrutivos do capital, que perpassa e contamina
negativamente as várias esferas da vida, ou estabelecer um modo
alternativo de regulação do metabolismo social humano, não perdulário,
não barbarizante, verdadeiramente sustentável, isento de hierarquias
estruturais e fetiches e sob a responsabilidade autogestora dos
produtores associados?
Se optarem pelo segundo caminho, deverão
enfrentar o problema da construção das ferramentas de luta, da
articulação das mediações de combate que lhes possibilitarão enfrentar e
tentar superar, de uma vez por todas, o complexo do capital. Tais
mediações precisarão ter um caráter ofensivo em relação ao atual
sistema, isto é, orientar-se e organizar-se de uma maneira em que se
possa combatê-lo a partir de suas raízes e visando ir além de sua lógica
de processualidade interna. A atuação extraestatal, articulada com e
dando sustentação às batalhas no interior do Estado, necessitará ser o
princípio orientador indispensável do processo de transição
revolucionária socialista.
O partido, como ferramenta de combate,
há de ter, nesse contexto, tremenda importância, visto que será o
encarregado de executar tarefas incontornáveis: interligar
dialeticamente os diversos setores da classe trabalhadora; orientar seus
embates contra o inimigo comum; politizar as variadas lutas que, em
razão das circunstâncias, se apresentam; conscientizar os proletários
acerca da forma como se constituem e agem as mediações a serviço do
capital; e dinamizar sua ação crítico-prática na direção da realização
de novos modos de mediar o metabolismo social humano.
Tal é o sentido, lucidamente apontado
por Mészáros, das modificações fundamentais a serem feitas no movimento
socialista de nossa época histórica.
NOTAS
[1] István Mészáros, Para além do capital: rumo a uma teoria da transição (São Paulo, Boitempo, 2002).
[2] Ibidem, p. 858.
[3] Infelizmente, não é possível, dentro
dos marcos deste artigo, detalharmos a explicação sobre o choque do
capital com essas contradições – a ativação dos seus assim chamados
"limites absolutos", ocorrida por volta de 1970 – e o surgimento da
produção destrutiva. Remetemos os interessados no assunto à leitura de
Para além do capital, cit.
[4] Essas mediações – os meios alienados
e os objetivos fetichistas de produção, o trabalho "estruturalmente
separado da possibilidade de controle", o dinheiro, a família nuclear, o
mercado mundial e as várias formas de Estado do capital -, juntamente
com as mediações que compõem a atividade produtiva humana, são
analisadas por Mészáros em sua teorização sobre a crise estrutural do
capital. Não é possível, aqui, entrarmos em minúcias a respeito de tais
temas. Mais uma vez, remetemos os interessados à leitura de Para além do
capital, cit.
[5] Mészáros afirma que o capital é uma
força extraparlamentar por excelência. O termo extraparlamentar tem,
grosso modo, na sua argumentação, o significado de algo que está além do
Estado, ao mesmo tempo em que o incorpora. Ou seja, o capital, para
realizar seus propósitos, age dentro do Estado (isto é, por seu
intermédio) e fora dele. É um sistema, portanto, que engloba as
instituições estatais e as transcende. Para ser vencido, precisa ser
confrontado, a partir dos seus fundamentos, em todos os espaços onde
exerce sua ação.
[6] O ano de 2011 foi marcante nesse
sentido. Para uma boa leitura acerca de tais acontecimentos, vale a pena
conferir a entrevista de Ricardo Antunes para Valéria Nader e Gabriel
Brito, "Luta pelos direitos do trabalho é hoje vital diante da crise
cabal do capitalismo", Correio da Cidadania, 08/09/2011. Como explica o
sociólogo brasileiro, ainda que cada uma dessas manifestações tenha tido
a sua singularidade, todas elas revelam um traço comum: expressar um
profundo descontentamento em relação à ordem em que se inserem – ordem
esta marcada, de uma forma ou de outra, pela grave crise do capital.
[7] Sobre esse ponto, é útil ler o bom
artigo de Fernando Marcelino "Quatro lições sobre a nova dinâmica da
luta de classes no Brasil", Correio da Cidadania, 17/02/2012.
Ressalte-se, ainda, nesse contexto, o fato de que, entre os anos de 2009
e 2010, houve 964 greves no Brasil.
[8] Apesar de não ser um tema central de
sua vasta obra, Mészáros afirma que os partidos podem ser mediações
efetivas nas lutas de classes a favor dos trabalhadores. Apresentamos
algumas de suas concepções a respeito num pequeno artigo, "Por um
partido socialista de orientação estratégica ofensiva: notas a partir de
István Mészáros", Correio da Cidadania, 18/11/2011, disponível em.
[9] Mészáros usa o termo – retirado d'A
ideologia alemã – consciência socialista de massa para se referir à
consciência revolucionária dos trabalhadores. Esse tipo de consciência
deve dar conta de compreender não somente o que precisa ser negado pela
práxis transformadora – o sistema de mediações do capital -, mas,
também, fundamentalmente, aquilo que necessita ser afirmado em seu
lugar, a comunidade dos homens e mulheres que regulam, de forma
consciente e autônoma, o metabolismo social humano.
*Cientista social, mestre em Educação (Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil)
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