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Por Thierry Meyssan *
A crise síria está mudando de natureza. O
processo de desestabilização que devia abrir caminho a uma intervenção
militar legal da aliança atlântica fracassou. Assim os Estados Unidos
tiram a máscara e falam publicamente da possibilidade de atacar a Síria
sem o aval do Conselho de Segurança da ONU, como ja se fez anteriormente
em Kosovo. Ao fazê-lo, Washington finge, contudo, não ter se dado conta
de que a Rússia de Vladimir Putin não é a Rússia de Boris Yeltsin.
Depois de assegurar-se de que pode contar com o respaldo da China,
Moscou acaba de fazer dois disparos de advertência dirigidos a
Washington. As contínuas violações de direito internacional por parte da
OTAN e do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) podem desembocar agora
em um conflito mundial.
Rede Voltaire | Damasco (Síria) | 9 de junho de 2012
O presidente Vladimir Putin realiza seu
terceiro mandato sob o signo da reafirmação da soberania de seu país
ante as ameaças contra a Rússia provenientes dos Estados Unidos e da
OTAN. Moscou denunciou reiteradamente o processo de ampliação da OTAN, a
instalação de bases militares às portas de suas fronteiras, assim como a
implantação do escudo anti-mísseis, a destruição da Líbia e os atos de
desestabilização contra a Síria.
Imediatamente após sua posse, Putin
passou em revista a indústria militar russa, as suas forças armadas e
todo o seu dispositivo de alianças [1]. Como passo seguinte, decidiu
traçar na Síria a linha vermelha que o adversário não deve ultrapassar.
Aos olhos de Putin, a invasão da Líbia pela OTAN é semelhante à invasão
da Tchecoslováquia pelo Terceiro Reich, e a invasão da Síria - se chegar
a ocorrer - seria comparável à invasão da Polônia, que desencadeou a
Segunda Guerra Mundial.
Qualquer interpretação do que realmente
acontece no Levante como uma revolução/repressão restrita à Síria não é
apenas falsa, mas também ridícula em vista do que está realmente em
jogo, e não haveria nada além de mera propaganda política. A crise síria
é, acima de tudo, uma etapa do "redesenho do Oriente Médio ampliado",
uma nova tentativa de destruir o "eixo de Resistência" e constitui
também a primeira guerra da "geopolítica do gás" [2]. O que realmente
está em jogo na Síria não é saber se Bachar al-Assad conseguirá
democratizar as instituições que herdou ou se as monarquias wahabitas
poderão destruir o último sistema laico de governo da região e impor seu
próprio sectarismo, mas sim quais fronteiras separam os novos blocos
que são a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e a OCS
(Organização de Cooperação de Shangai) [3].
Alguns dos nossos leitores devem ter
experimentado um verdadeiro sobressalto ao ler a frase anterior. De
fato, há meses os meios de comunicação ocidentais e dos países do Golfo
martelam dia após dia que o presidente al-Assad é o representante de uma
ditadura sectária em favor da minoria alauita enquanto a oposição
armada representa a democracia pluralista. Basta uma simples olhada para
os fatos para perceber a falsidade dessa imagem. Bashar al-Assad
convocou sucessivamente eleições municipais, um referendo constitucional
e eleições legislativas multipartidárias.
Todos os observadores concordam que tais
consultas ocorreram com toda legitimidade. A participação popular subiu
para mais de 60%, o que não impediu os ocidentais de as qualificarem
como "farsas" e que a oposição armada respaldada por potências
ocidentais e os países do Golfo tornassem impossível a participação dos
eleitores nos 4 distritos sob seu controle. Ao mesmo tempo, a oposição
armada tem multiplicado as ações, não só contra as forças de segurança,
mas também contra a população civil e contra todos os símbolos da
cultura e do multiconfessionalismo.
A oposição armada também está
assassinando sunitas progressistas, alauitas e cristãos aleatoriamente -
para forçá-los a fugir com suas famílias -, queimou mais de 1.500
escolas e igrejas, proclamou em Baba Amro um efêmero emirado islâmico
independente onde instituiu um tribunal supostamente revolucionário que
condenou à morte mais de 150 infiéis, que foram publicamente degolados
um a um pelos verdugos da própria oposição armada. E certamente não será
o espetáculo lamentável que oferecem alguns políticos venais - reunidos
em um Conselho Nacional Sírio criado no exílio, que acenam com um
projeto democrático de fachada que em nada se parece com a realidade
imposta no território pelos crimes do chamado Exército “Sírio” Livre -
que vai conseguir evitar por muito mais tempo que a verdade venha à
tona.
Quem pode acreditar, no entanto, que o
regime laico da Síria, celebrado até recentemente como exemplar, de
repente tenha se convertido em uma ditadura religiosa, enquanto o
Exército "Sírio" Livre, respaldado precisamente pelas ditaduras
wahabitas do Golfo e discípulo respeitoso dos pregadores takfiristas, é
um modelo de pluralismo democrático?
A menção, por parte dos dirigentes
estadunidenses, de uma possível intervenção internacional na Síria sem
aval da ONU, seguindo o modelo da que provocou o desmembramento da
Iugoslávia, tem causado preocupação e cólera em Moscou. A Federação
Russa, que até agora tinha se mantido em posição defensiva, decidiu
tomar a iniciativa. Esta mudança de estratégia é devida ao caráter
urgente que reveste a situação, do ponto de vista russo, e à evolução
favorável sobre o tema na própria Síria [4].
Moscou acaba de propor a criação de um
Grupo de Negociação sobre a Síria que reuniria em seu seio todos os
Estados implicados, ou seja, tanto os Estados vizinhos como as potências
regionais e internacionais. Trata-se de criar um foro de diálogo em
lugar do atual dispositivo belicoso instaurado pelos ocidentais sob a
denominação orwelliana de “Conferência de Amigos da Síria”.
A Rússia segue respaldando o Plano Annan
– que não é na verdade outra coisa que uma versão apenas modificada do
plano com que Serguei Lavrov havia presenteado a Liga Árabe. A Rússia
lamenta a não aplicação deste plano, mas atribui a responsabilidade da
sua não aplicação à facção da oposição que tomou as armas. Segundo A. K.
Lukashevich, um dos porta-vozes do ministério russo de Relações
Exteriores, à luz do direito internacional o Exército “Sírio” Livre é
uma organização ilegal que, apesar de assassinar diariamente 20 ou 30
soldados dírios, segue gozando publicamente de apoio dos países membros
da OTAN e do Conselho de Cooperação do Golfo, o que constitui certamente
uma flagrante violação do Plano Annan [5].
Apostando em favor da paz, diante de uma
OTAN que aposta abertamente pela guerra, Vladimir Putin pediu à OTSC
(Organização do Tratado de Segurança Coletiva) para que se prepare para
uma implantação de "chapas azuis" na Síria. O secretário-geral da OTSC,
Nikolai Bordyuzha, já confirmou que conta com 20.000 homens
imediatamente disponiveis e perfeitamente formados para este tipo de
missão [6].
Seria a primeira vez que a força de paz
da OTSC implanta uma força de paz fora do antigo espaço soviético. Em um
claro sinal de nervosismo, o secretário geral da ONU Ban Ki-moon
imediatamente tratou de sabotar a iniciativa russa, propondo ele também
organizar um Grupo de Negociação.
Ao reunir em Washington o Grupo de
Trabalho sobre as sanções da Conferência dos Amigos da Síria, a
secretária de Estado Hillary Clinton simplesmente ignorou a proposta
russa e intensificou suas chamadas para a mudança de regime [7].
Na Turquia, os parlamentares da oposição
visitaram campos de refugiados sírios. Ali puderam comprovar a ausência
de mais de mil refugiados contabilizados pela ONU no mais importante
desses acampamentos, onde ainda encontraram um grande arsenal. Assim
decidiram interrogar na Assembleia o primeiro-ministro Recep Tayyip
Erdogan e exigir-lhe a divulgação da quantidade de ajuda humanitária
concedida a esses refugiados fantasmas. Os deputados consideram que o
campo de refugiados na realidade serve como cobertura para a realização
de uma operação militar secreta. Este acampamento abriga, na verdade,
combatentes provenientes principalmente da Líbia, que usam esta
instalação como base de retaguarda. Os deputados emitiram como hipótese
que se trata, ademais, de combatentes que adentraram o distrito de Hula
precisamente no momento do massacre denunciado nesta região.
Estas informações confirmam as acusações
emitidas pelo embaixador russo Vitaly Churkin diante do Conselho de
Segurança da ONU. Segundo o diplomata russo, o representante especial de
Ban Ki-moon na Líbia, Ian Martin, tem utilizado recursos da ONU,
inicialmente destinados para os refugiados, para enviar a Turquia
combatentes da de al-Qaeda [8].
Na Arábia Saudita manifestou-se
novamente a divisão entre o rei Abdullah e o clã dos Sudairis. A pedido
do Rei Abdullah I, o Conselho de Ulemas publicou uma fatwa declarando
que a Síria não é uma terra de jihad. Ao mesmo tempo, no entanto, o
príncipe Faisal, atual ministro das Relações Exteriores, lançou um
chamado para armar a oposição síria contra o "usurpador alauita”.
A quinta-feira, 07 de junho, foi um dia
agitado. Enquanto Ban Ki-moon e Navi Pillay - que são, respectivamente, o
Secretário-geral da ONU e Alto Comissário da ONU para os Direitos
Humanos - pronunciavam suas posições contra a Síria diante da Assembléia
Geral da ONU, Moscou realizava dois testes de lançamento de mísseis
balísticos intercontinentais.
O nome do míssil “Bulava” vem da palavra que designa o bastão de marechal dos exércitos cossacos.
O coronel Vadim Koval, porta-voz da RSVN
(Tropas Balísticas Estratégicas Russas), reconheceu a realização do
lançamento de teste de um míssil Topol - a partir de um local próximo ao
mar Cáspio - mas não confirmou o do míssil Bulava a partir de um
submarino no Mediterrâneo. Esta último lançamento foi visto, no entanto,
em todo o Oriente Médio, de Israel à Armênia, e não se conhece nenhum
outro tipo de arma capaz de provocar os efeitos visuais que foram
observados no céu da região [9].
A mensagem é clara: se a OTAN e o
Conselho de Cooperação do Golfo não respeitam as obrigações
internacionais já definidos no Plano Annan e estão empenhados em
alimentar o terrorismo, Moscou está disposto a enfrentá-los, mesmo às
custas de uma guerra mundial.
Segundo nossas informações, estes
disparos de advertência estavam coordenados com as autoridades sírias.
Moscou, que já anteriormente havia estimulado Damasco para que
procedesse a liquidação do emirado islâmico da Baba Amro imediatamente
depois do referendo constitucional que confirmou a autoridade do
presidente al-Assad, também incitou agora o presidente a liquidar os
grupos de mercenários presentes no país desde o instante seguinte à
investidura do novo parlamento e do novo primeiro-ministro sírio.
Deram-se então ordens de passar de uma estratégia defensiva para uma
ação ofensiva que tendesse a proteger a população frente às ações
terroristas. O exército nacional sírio passou, então, à ofensiva contra
os bastiões do Exército “Sírio” Livre. Os combates dos próximos dias
podem ser difíceis, uma vez que os mercenários dispõem de morteiros,
foguetes anti-tanque e mísseis terra-ar.
Na tentativa de aliviar a tensão, a
França aceitou imediatamente a proposta russa para participar de um
Grupo de Negociação ad hoc. Washington, por sua vez, enviou Frederic C.
Hof para Moscou. Contrariando inclusive as declarações que fizera no dia
anterior à sua própria secretária de Estado, Hillary Clinton, o Sr. Hof
aceitou o convite russo para participar do novo Grupo de Negociação.
Ficou pra trás o momento de lamentar-se
sobre a extensão dos combates no território libanês, ou de filosofar
sobre uma possível regionalização do conflito sírio. Em 16 meses de
manobras desestabilizadoras contra a Síria, a OTAN e o Conselho de
Cooperação do Golfo criaram uma situação sem saída que agora pode
converter-se em uma guerra mundial.
Thierry Meyssan
[11] Agenda do presidente Putin:
07 de maio: posse do presidente Vladimir Putin
08 de maio: nomeação de Dmitry Medvedev como primeiro-ministro
09 de maio: celebração da vitória sobre a Alemanha nazista
10 de Maio: Visita ao complexo militar-industrial russo
11 de maio: Recebe o Presidente da Abkházia
12 de maio: recebe o presidente da Ossétia do Sul
14-15 de maio: encontro informal com os chefes de Estado dos países membros da OTSC.
18 de maio: Visita ao Instituto de Pesquisa de Defesa Cyclone
25 de maio: Revista aos submarinos nucleares
30 de maio: Reunião com os principais responsávels pelo setor de defesa
31 de maio: Reunião do Conselho de Segurança Russo
04-07 de junho: Visita à China, Cúpula da OCS
7 de junho: Visita ao Cazaquistão durante o teste de lançamento do míssil Topol
[2] « Siria, centro de la guerra del gas en el Medio Oriente », por Imad Fawzi Shueibi, Réseau Voltaire, 8 de maio de 2012.
[3] « Moscú y la formación del Nuevo
Sistema Mundial », por Imad Fawzi Shueibi, Tradução ao francês de
Marie-Ange Patrizio, Réseau Voltaire, 13 de marzo de 2012.
[4] « El caso de Hula demuestra el
retraso de la inteligencia occidental en Siria »,por Thierry Meyssan,
Réseau Voltaire, 2 de junio de 2012.
[5] « Comment of Official Representative
of the Ministry of Foreign Affairs of Russia A.K. Lukashevich on the
Question of Interfax related to the statement made by Representative of
so-called Free Syrian Army S.Al-Kurdi », Ministère russe des Affaires
étrangères, 5 juin 2012.
[6] « Siria: Vladimir Putin propone una Fuerza de Paz de la OTSC », Réseau Voltaire, 3 de junho de 2012
[7] « Friends of the Syrian People
Sanctions Working Group », déclaration à la presse d’Hillary Clinton,
Département d’État, 6 juin 2012.
[8] « Libia, los
bandidos-revolucionarios y la ONU »,por Alexander Mezyaev, tradução ao
francês de Julia, Strategic Culture Foundation (Rusia), Réseau Voltaire,
17 de abril de 2012.
[9] « 07 de junio 2012: Rusia demuestra
su superioridad en misiles balísticos intercontinentales nucleares »,
Réseau Voltaire, 8 de junio de 2012.
*THIERRY MEYSSAN: intelectual francês,
presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace.
Suas análises sobre política exterior publicam-se na imprensa árabe,
latino-americana e russa. Última obra publicada em espanhol: La gran
impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de
comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).
Durante a celebração da Vitória contra o
nazismo, 9 de junho, o presidente Vladimir Putin insistiu que a Rússia
deve estar pronta para aceitar um novo sacrifício.
O nome do míssil Bulava vem da palavra que designa o bastão de marechal dos exércitos cossacos.
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