sexta-feira, 22 de junho de 2012

Com o SUS e para além do SUS: por uma saúde coletiva e popular





"O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem."
Guimarães Rosa.
Resoluções sobre Saúde do II Encontro Nacional da União da Juventude Comunista em Cuba, realizado de 19 a 20 de maio de 2012, em Camaguey-Cuba.
O atual modelo de saúde no Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS), começa a aparecer no final da década de 1970 com a articulação do Movimento da Reforma Sanitária (MRS). Esse movimento, que surge em meio a uma ampla articulação pelas eleições diretas e pelo fim da ditadura militar, se orientava por um projeto que visava uma profunda reforma na área da saúde que, segundo Paim, “não compreendia a saúde como uma questão exclusivamente biológica a ser resolvida pelos serviços médicos, mas sim como uma questão social e política”[1]. O MRS estava composto por profissionais da saúde, estudantes, sindicatos, intelectuais, entidades da sociedade civil e partidos políticos diversos – uma ampla articulação de setores que lutavam pelo fim da ditadura militar, de diversos espectros políticos.  Essas articulações originaram um grande movimento por uma reforma sanitária, de abrangência nacional e caráter progressista. Em 1986, o MRS culmina com aconstrução da histórica 8o Conferência Nacional de Saúde (CNS), que deliberou uma série de princípios que deveriam balizar o novo sistema de saúde. Com a 8o Conferência, o movimento sanitarista se organizou para fazer as disputas na Constituinte de 1988, assim como o complexo médico-industrial e farmacêutico, que também chegou articulado para a Constituinte, inclusive com influência dentro do próprio MRS. Dessa disputa nasceu o SUS como está redigido na Constituição de 1988.
O SUS, ainda que marcado pelas contradições das disputas de distintos projetos, nasceu garantindo uma série de direitos em saúde para a população, apontando o Estado como o principal responsável para garanti-los. Entre os princípios aprovados na Constituição de 1988 estão a universalidade do sistema, a integralidade da atenção, a equidade nas ações e a participação social, que transformaram o processo social da saúde no país. Com base em diversas normas organizativas e operacionais, chegou aos quatro cantos do país, com grandes diferenças regionais, principalmente com o aumento da infraestrutura na atenção primária de saúde. O período pós-constituinte, estratégico para a implementação do sistema planificado, foi um período hegemonizado pelo chamado pensamento neoliberal, com progressivos cortes nas áreas sociais e privatizações de empresas estratégicas e serviços, orientados pela política macroeconômica ditada pelo FMI e BM, de superavitprimário, de elevadas taxas de juros e do câmbio flutuante. Nesse contexto, a aplicação do SUS deliberado na Constituição foi incompleta e distorcida.
Aquele grande movimento articulado nacionalmente, o MRS, pouco a pouco foi se esvaziando e direcionando sua atuação para dentro do Estado, no intuito de implementar o SUS deliberado pela Constituição. Dessa forma, o movimento vai perdendo sua força popular e sua capilaridade dentro dos movimentos sociais. Grande parte dos intelectuais sanitaristas foi sendo institucionalizada ecooptada pelo Estado. Para a maioria dos dirigentes do MRS (alguns então militantes do PCB), era papel do movimento sanitarista contribuir na transformação do Estado burguês por dentro (e não sua destruição), com base em reformas que levariam à construção do sistema de saúde almejado. A própria orientação estratégica do PCB na década de 1980 e início de 1990, de cunho majoritariamente reformista, contribuiu determinantemente para esse caminho. Vale ressaltar que essa orientação estratégica foi levando a sucessivas divisões e a uma polarização entre os revolucionários e os reformistas dentro e fora do Partido. No MRS a militância do PCB também se dividiu e o centro da divergência, segundo Lacaz, “tratava-se de definir o que priorizar naquele momento histórico: a ação por dentro do Estado ou aquela que tinha como prioridade a ação política junto ao movimento social de massa no sentido de arregimentar força política ao nível da sociedade organizada”[2].Assim, Lacaz afirma que “os setores partidários de cunho reformista priorizam a ação por dentro do aparelho de Estado e setores de cunho revolucionário apontam que tal postura é equivocada e postulam a prioridade da ação pela ação de massa na sociedade civil”[3]. A formulação sobre a estratégia da revolução brasileira era, em última instância, a questão que, em suas expressões tática e de espectro de alianças, trouxe à tona as divergências centrais dentro do MRS.
O controle social – idealizado como um espaço de voz e elaboração, de participação e fiscalização do sistema pela população – transformou-se num espaço utilizado para mascarar uma falsaparticipação popular. Hoje, em grande parte dos conselhos e conferências de saúde, percebemos nitidamente a presença de entidades cooptadas, conselheiros de saúde atrelados a setoresconservadores, ficando a verdadeira voz popular escondida atrás do palco de políticas antipovo. Os municípios, por exemplo, para receberem verbas destinadas à saúde, devem criar seus conselhos municipais, que em muitos casos servem aos desejos dos grupos políticos dominantes localmente, uma mostra no que se transformou a participação popular no SUS. Os espaços de controle social, que deveriam atuar como um instrumento de articulação do povo para pressionar o Estado, passaram a ser espaços hegemonizados pelas classes dominantes, marcados pela cooptação e pela manipulaçãode setores populares para a manutenção do status quo. Não obstante, os conselhos de saúde são um espaço utilizado por setores populares contra-hegemônicos para denunciar as políticas antipovo realizadas pelo Estado burguês.
A participação da iniciativa privada nas ações de saúde no Estado brasileiro está garantida na Carta Magna, como marca essencial das disputas entre setores populares e os setores do capitaldesde o início do MRS até a Constituinte de 1988. O período pré-constituinte foi marcado por disputas entre três principais vertentes: uma que lutava por uma saúde  pública e 100% estatal, minoritáriano MRS, formada por organizações, movimentos e intelectuais contra-hegemônicos; outra que defendia que a saúde privada deveria ser suplementar à iniciativa pública, maioria dentro do MRS, formada por setores reformistas e progressistas; e uma terceira que defendia que a saúde privada deveria ter um caráter complementar à pública, formada pelo complexo médico-industrial efarmacêutico. A terceira proposta foi a implementada, marcando a mais importante derrota dos setores populares na construção do SUS, e se expressa através do artigo 199 de Constituição em seuparágrafo primeiro: “As instituições privadas poderão participar de forma complementar do Sistema Único de Saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos”. A complementaridade da saúde privada com relação à pública faz com que não somente o Estado deixe de avançar na universalização de sua atenção, mas principalmente deixa livre o caminho para a iniciativa privada transformar o direito à saúde em saúde como mercadoria. Essa é uma questão-chave para entender a atual relação entre público e privado na saúde, o protagonismo cada vez maior do capital nesse setor e a tendência de precarização e privatização dos serviços estatais de saúde. Dentro desse modelo, inclusive os princípios da universalidade do acesso a saúde e da integralidade da atenção tem sido utilizados pelo complexo médico-industrial e farmacêutico para receber financiamento público e fazer crescer seus lucros e seu poder. Assim, hoje o capital deita e rola em cima do SUS!
A iniciativa privada é composta por uma ampla rede de serviços e de produção. No país, proliferam as clínicas particulares, as redes farmacêuticas, os hospitais e centros de especialidades privados, sendo utilizados por aqueles que podem pagar por esses serviços e produtos, e também por aqueles que possuem planos de saúde. Estes estão amplamente distribuídos por todo o país e permeiam a rede privada de oferta de serviços. São operadoras que ofertam serviços de saúde por “pacotes” conforme o poder aquisitivo do que chamam de “cliente”, caracterizando-se assim como atenção fragmentada e cara. Os trabalhadores pagam a conta da saúde duas vezes: uma, através do seu trabalho e os impostos dirigidos ao Estado; outra, através dos planos de saúde e dos serviços que contratam na rede privada. Dessa forma, os planos de saúde acumulam milhões de reais anualmente.
O complexo médico-industrial está nas mãos da iniciativa privada e detém o domínio técnico-científico do setor, desde a produção, passando pela venda, pela manutenção e pela realização dos serviços, principalmente nas instituições de atenção secundaria e terciária de saúde. A indústria farmacêutica, através dos monopólios internacionais, controla a criação, a produção e a distribuição dos medicamentos, que são uma mercadoria como outra qualquer para o capital explorar os trabalhadores e acumular riqueza.
A formação de recursos humanos na área também está influenciada fundamentalmente pela lógica do capital. Do ensino à produção de ciência e tecnologia, o que marca as universidades brasileiras é seu atrelamento à lógica dominante, a reprodução do sistema capitalista e da dominação da maioria por uma minoria de seres humanos. As faculdades da área de saúde do país, em sua maioria, dão ênfase a uma formação biologicista, mecanicista, fragmentada e hospitalocêntrica, voltada para o mercado da saúde e para os interesses do complexo médico-industrial e farmacêutico. A produção de ciência e tecnologia está ligada diretamente aos interesses dos grandes monopólios privados da saúde, seja de equipamentos, seja de medicamentos.
A gestão do sistema público de saúde – em todos os níveis de atenção – tem a participação direta da iniciativa privada através da criação das Fundações Estatais de Direito Privado (FEDPs), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), Organizações Sociais (OSs), Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSH) e as parcerias público-privadas. Todas essas modalidades de gestão, que são justificadas por uma suposta ineficácia do setor estatal, são na verdade formas de mascarar a progressiva privatização do sistema público de saúde. Recebem o terreno livre para administrar o setor público da maneira com bem entendem, sem uma fiscalização adequada, sem participação popular nos conselhos diretivos, realizando compras de insumos sem licitações,precarizando o trabalho dos profissionais de saúde e administrando políticas públicas de interesses coletivos com objetivo de lucrar.
O financiamento do sistema de saúde, através da regulamentação da Emenda Constitucional 29 aprovada recentemente, definiu as responsabilidades dos municípios, dos Estados e do governo federal no que se refere ao valor a ser gasto com saúde; no entanto, retirou o fundamental do texto original, que previa que 10% do PIB da União deveria ser direcionado à saúde, assim como não aprovou o fim da Desvinculação das Receitas da União (DRU). Com a DRU, somente em 2012, o governo federal desviará R$ 62 bilhões do orçamento da Seguridade Social para o pagamento da dívida pública. Além disso, grande parte dos recursos públicos destinados à saúde (um pífio 4,07% do orçamento da União de 2012) é direcionada diretamente para a compra de mercadorias e serviços da iniciativa privada, seja através da compra de medicamentos e materiais, seja através da realização de exames complementares, procedimentos, internações etc. Enquanto isso, 45,05% do orçamento nacional de 2012 está sendo desviado para o pagamento dos juros da dívida pública do Estado brasileiro com monopólios e bancos nacionais e internacionais.
Com todos esses empecilhos provenientes da participação privada no seio do SUS, em meio às sucessivas derrotas dos setores populares na implementação dos princípios da universalidade, daintegralidade, da equidade e do controle social, nos perguntamos: que projeto defendemos para a saúde do povo brasileiro?
Almejamos uma saúde coletiva e popular. Coletiva, porque o processo saúde/doença é determinado socialmente e, assim, pelas relações de classe existentes em um modo de produção específico. Dessa forma, é necessário compreender a questão da saúde desde uma perspectiva de classe e do antagonismo dos projetos societários das classes em luta. Torna-se fundamental pensar a saúde a partir da perspectiva societária dos de baixo, como aspecto de central importância para a construção de uma sociedade isenta da exploração entre seres humanos, necessariamente mais coletivizada e de trabalho essencialmente livre. Saúde coletiva pensada como a plena satisfação das necessidades materiais e subjetivas de cada indivíduo e da coletividade, emancipatória.
Uma saúde popular porque deve atender às reais necessidades do sujeito povo, ou seja, das classes oprimidas e exploradas pelo sistema capitalista, trabalhadores do campo e da cidade, desempregados, idosos, adultos e crianças, homens e mulheres de todas as etnias e orientação sexual, oprimidos cotidianamente pelos ditames da lógica do capital. Uma saúde construída a partir de suas experiências históricas e sua prática cotidiana. Para tanto, compreendemos que a saúde deve ser obrigatoriamente pública, 100% estatal, gratuita e de alta qualidade, em que o poder popular seja o principal instrumento de planificação, gestão e controle.
Acreditamos que a luta pela saúde no Brasil deve ser para além da defesa do SUS. Perpassa a importante compreensão do caráter da integralidade da atenção à saúde e dos determinantes sociais nesse processo. Saúde compreende não somente a ausência de doença, mas o direito a condições de vida que permita ao sujeito seu desenvolvimento pleno. A saúde, como expressado nos anais da 8ª Conferência em 1986, “em seu sentido mais abrangente, é resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida”.
Dessa forma, é necessária a articulação de diversos movimentos populares por um projeto de saúde. É nosso dever buscar compreender os principais limites e contradições do nosso sistema de saúde, intrínsecos ao atual modo de produção em que está organizada a sociedade brasileira. Para tanto, torna-se um desafio defender e desenvolver propostas de construção de projetos populares de saúde para a construção do SUS como um sistema de saúde público, 100% estatal, gratuito e de alta qualidade, livre das mãos dos capitalistas insensíveis com a vida humana, articulado com estratégias de luta visando à transformação da sociedade brasileira pela conformação de uma outra hegemonia: a hegemonia dos trabalhadores e trabalhadoras que se oponha ao consenso burguês, rumo à construção do poder popular e de um Brasil socialista. Lutemos com o SUS, em defesa dos direitos em saúde garantidos para a população, e para além do SUS, por uma saúde coletiva e popular, somente possível no caminho da revolução brasileira!
Assim defendemos as seguintes bandeiras de luta:
1. Implementação do SUS público, 100% estatal, gratuito e de alta qualidade.
2. Lutar contra toda forma de mercantilização da saúde.
3. Lutar pela redistribuição dos recursos nacionais direcionando 10% do PIB para a saúde a partir do não pagamento da dívida pública do Estado brasileiro com o imperialismo, bancos emonopólios. Lutar pela estatização, com controle dos trabalhadores, das empresas estratégicas e dos recursos naturais do país.
4. Lutar pela soberania nacional na área médico-farmacêutica, através da produção autônoma de ciência e tecnologia e da formação de um complexo industrial e farmacêutico estatal que sirvam ao sistema público de saúde.
5. Criação de planos de carreira nacional aos trabalhadores da saúde.
6. Lutar em defesa de melhores condições de trabalho e de remuneração para os trabalhadores da saúde.
7. Inserção da luta pela saúde na pauta de construção de um movimento por uma universidade popular.
8. Por uma educação dos profissionais da saúde centrada na atenção primária, na determinação social da saúde e na diversidade histórico-cultural do povo brasileiro.
9. Fortalecer a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde e em defesa do SUS e os Fóruns Populares de Saúde, a partir dos diversos movimentos populares.
10. Inserir o debate sobre a Saúde Coletiva e Popular nos diversos movimentos populares, como uma das pautas históricas inerentes à luta pela vida.
11. Reavivar o trabalho de base, de baixo para cima, não somente entre os trabalhadores da saúde, mas também junto à população em geral, especialmente nos espaços de atuação profissional.
12. Lutar contra o ato médico, em defesa da interdisciplinaridade na área de saúde.
13. Lutar contra toda forma de privatização/terceirização da saúde, como as OS, OSCIP, FPP, FEDP, EBSH.
14. Formação técnica para os cargos de gestão do SUS obrigatória e não por indicação política.
15. Integração entre o conhecimento científico e o popular nas práticas de saúde, desenvolvendo a autonomia da população no cuidado à saúde.
16. Resgate da cultura popular de saúde.
17. Solidariedade internacional nos serviços de saúde a todos os povos que necessitam pelos princípios do internacionalismo proletário.
18. Defender uma revalidação justa dos diplomas dos médicos brasileiros formados em Cuba em virtude do caráter humanista da educação médica nesse país, voltada para as necessidades mais sentidas dos povos do mundo.

[1] PAIM, Jairnilson; TRAVASSOS, Cláudia; ALMEIDA, Célia; BAHIA, Lígia; MACINKO, James. O sistema de saúde brasileiro: história, avanços e desafios.
[2] LACAZ, Francisco Antonio de Castro. A atuação do PCB e a Reforma Sanitária Brasileira
[3] Idem

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