"O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem."
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem."
Guimarães Rosa.
Resoluções sobre Saúde do II Encontro Nacional da União da Juventude
Comunista em Cuba, realizado de 19 a 20 de maio de 2012, em
Camaguey-Cuba.
O atual modelo de saúde no Brasil, o
Sistema Único de Saúde (SUS), começa a aparecer no final da década de
1970 com a articulação do Movimento da Reforma Sanitária (MRS). Esse
movimento, que surge em meio a uma ampla articulação pelas eleições
diretas e pelo fim da ditadura militar, se orientava por um projeto que
visava uma profunda reforma na área da saúde que, segundo Paim, “não
compreendia a saúde como uma questão exclusivamente biológica a ser
resolvida pelos serviços médicos, mas sim como uma questão social e
política”[1]. O MRS estava composto por profissionais da saúde,
estudantes, sindicatos, intelectuais, entidades da sociedade civil e
partidos políticos diversos – uma ampla articulação de setores que
lutavam pelo fim da ditadura militar, de diversos espectros políticos.
Essas articulações originaram um grande movimento por uma reforma
sanitária, de abrangência nacional e caráter progressista. Em 1986, o
MRS culmina com aconstrução da histórica 8o Conferência Nacional de
Saúde (CNS), que deliberou uma série de princípios que deveriam balizar o
novo sistema de saúde. Com a 8o Conferência, o movimento sanitarista se
organizou para fazer as disputas na Constituinte de 1988, assim como o
complexo médico-industrial e farmacêutico, que também chegou articulado
para a Constituinte, inclusive com influência dentro do próprio MRS.
Dessa disputa nasceu o SUS como está redigido na Constituição de 1988.
O SUS, ainda que marcado pelas
contradições das disputas de distintos projetos, nasceu garantindo uma
série de direitos em saúde para a população, apontando o Estado como o
principal responsável para garanti-los. Entre os princípios aprovados na
Constituição de 1988 estão a universalidade do sistema, a integralidade
da atenção, a equidade nas ações e a participação social, que
transformaram o processo social da saúde no país. Com base em diversas
normas organizativas e operacionais, chegou aos quatro cantos do país,
com grandes diferenças regionais, principalmente com o aumento da
infraestrutura na atenção primária de saúde. O período pós-constituinte,
estratégico para a implementação do sistema planificado, foi um período
hegemonizado pelo chamado pensamento neoliberal, com progressivos
cortes nas áreas sociais e privatizações de empresas estratégicas e
serviços, orientados pela política macroeconômica ditada pelo FMI e BM,
de superavitprimário, de elevadas taxas de juros e do câmbio flutuante.
Nesse contexto, a aplicação do SUS deliberado na Constituição foi
incompleta e distorcida.
Aquele grande movimento articulado
nacionalmente, o MRS, pouco a pouco foi se esvaziando e direcionando sua
atuação para dentro do Estado, no intuito de implementar o SUS
deliberado pela Constituição. Dessa forma, o movimento vai perdendo sua
força popular e sua capilaridade dentro dos movimentos sociais. Grande
parte dos intelectuais sanitaristas foi sendo institucionalizada
ecooptada pelo Estado. Para a maioria dos dirigentes do MRS (alguns
então militantes do PCB), era papel do movimento sanitarista contribuir
na transformação do Estado burguês por dentro (e não sua destruição),
com base em reformas que levariam à construção do sistema de saúde
almejado. A própria orientação estratégica do PCB na década de 1980 e
início de 1990, de cunho majoritariamente reformista, contribuiu
determinantemente para esse caminho. Vale ressaltar que essa orientação
estratégica foi levando a sucessivas divisões e a uma polarização entre
os revolucionários e os reformistas dentro e fora do Partido. No MRS a
militância do PCB também se dividiu e o centro da divergência, segundo
Lacaz, “tratava-se de definir o que priorizar naquele momento histórico:
a ação por dentro do Estado ou aquela que tinha como prioridade a ação
política junto ao movimento social de massa no sentido de arregimentar
força política ao nível da sociedade organizada”[2].Assim, Lacaz afirma
que “os setores partidários de cunho reformista priorizam a ação por
dentro do aparelho de Estado e setores de cunho revolucionário apontam
que tal postura é equivocada e postulam a prioridade da ação pela ação
de massa na sociedade civil”[3]. A formulação sobre a estratégia da
revolução brasileira era, em última instância, a questão que, em suas
expressões tática e de espectro de alianças, trouxe à tona as
divergências centrais dentro do MRS.
O controle social – idealizado como um
espaço de voz e elaboração, de participação e fiscalização do sistema
pela população – transformou-se num espaço utilizado para mascarar uma
falsaparticipação popular. Hoje, em grande parte dos conselhos e
conferências de saúde, percebemos nitidamente a presença de entidades
cooptadas, conselheiros de saúde atrelados a setoresconservadores,
ficando a verdadeira voz popular escondida atrás do palco de políticas
antipovo. Os municípios, por exemplo, para receberem verbas destinadas à
saúde, devem criar seus conselhos municipais, que em muitos casos
servem aos desejos dos grupos políticos dominantes localmente, uma
mostra no que se transformou a participação popular no SUS. Os espaços
de controle social, que deveriam atuar como um instrumento de
articulação do povo para pressionar o Estado, passaram a ser espaços
hegemonizados pelas classes dominantes, marcados pela cooptação e pela
manipulaçãode setores populares para a manutenção do status quo. Não
obstante, os conselhos de saúde são um espaço utilizado por setores
populares contra-hegemônicos para denunciar as políticas antipovo
realizadas pelo Estado burguês.
A participação da iniciativa privada nas
ações de saúde no Estado brasileiro está garantida na Carta Magna, como
marca essencial das disputas entre setores populares e os setores do
capitaldesde o início do MRS até a Constituinte de 1988. O período
pré-constituinte foi marcado por disputas entre três principais
vertentes: uma que lutava por uma saúde pública e 100% estatal,
minoritáriano MRS, formada por organizações, movimentos e intelectuais
contra-hegemônicos; outra que defendia que a saúde privada deveria ser
suplementar à iniciativa pública, maioria dentro do MRS, formada por
setores reformistas e progressistas; e uma terceira que defendia que a
saúde privada deveria ter um caráter complementar à pública, formada
pelo complexo médico-industrial efarmacêutico. A terceira proposta foi a
implementada, marcando a mais importante derrota dos setores populares
na construção do SUS, e se expressa através do artigo 199 de
Constituição em seuparágrafo primeiro: “As instituições privadas poderão
participar de forma complementar do Sistema Único de Saúde, segundo
diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio,
tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos”. A
complementaridade da saúde privada com relação à pública faz com que
não somente o Estado deixe de avançar na universalização de sua atenção,
mas principalmente deixa livre o caminho para a iniciativa privada
transformar o direito à saúde em saúde como mercadoria. Essa é uma
questão-chave para entender a atual relação entre público e privado na
saúde, o protagonismo cada vez maior do capital nesse setor e a
tendência de precarização e privatização dos serviços estatais de saúde.
Dentro desse modelo, inclusive os princípios da universalidade do
acesso a saúde e da integralidade da atenção tem sido utilizados pelo
complexo médico-industrial e farmacêutico para receber financiamento
público e fazer crescer seus lucros e seu poder. Assim, hoje o capital
deita e rola em cima do SUS!
A iniciativa privada é composta por uma
ampla rede de serviços e de produção. No país, proliferam as clínicas
particulares, as redes farmacêuticas, os hospitais e centros de
especialidades privados, sendo utilizados por aqueles que podem pagar
por esses serviços e produtos, e também por aqueles que possuem planos
de saúde. Estes estão amplamente distribuídos por todo o país e permeiam
a rede privada de oferta de serviços. São operadoras que ofertam
serviços de saúde por “pacotes” conforme o poder aquisitivo do que
chamam de “cliente”, caracterizando-se assim como atenção fragmentada e
cara. Os trabalhadores pagam a conta da saúde duas vezes: uma, através
do seu trabalho e os impostos dirigidos ao Estado; outra, através dos
planos de saúde e dos serviços que contratam na rede privada. Dessa
forma, os planos de saúde acumulam milhões de reais anualmente.
O complexo médico-industrial está nas
mãos da iniciativa privada e detém o domínio técnico-científico do
setor, desde a produção, passando pela venda, pela manutenção e pela
realização dos serviços, principalmente nas instituições de atenção
secundaria e terciária de saúde. A indústria farmacêutica, através dos
monopólios internacionais, controla a criação, a produção e a
distribuição dos medicamentos, que são uma mercadoria como outra
qualquer para o capital explorar os trabalhadores e acumular riqueza.
A formação de recursos humanos na área
também está influenciada fundamentalmente pela lógica do capital. Do
ensino à produção de ciência e tecnologia, o que marca as universidades
brasileiras é seu atrelamento à lógica dominante, a reprodução do
sistema capitalista e da dominação da maioria por uma minoria de seres
humanos. As faculdades da área de saúde do país, em sua maioria, dão
ênfase a uma formação biologicista, mecanicista, fragmentada e
hospitalocêntrica, voltada para o mercado da saúde e para os interesses
do complexo médico-industrial e farmacêutico. A produção de ciência e
tecnologia está ligada diretamente aos interesses dos grandes monopólios
privados da saúde, seja de equipamentos, seja de medicamentos.
A gestão do sistema público de saúde –
em todos os níveis de atenção – tem a participação direta da iniciativa
privada através da criação das Fundações Estatais de Direito Privado
(FEDPs), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs),
Organizações Sociais (OSs), Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares
(EBSH) e as parcerias público-privadas. Todas essas modalidades de
gestão, que são justificadas por uma suposta ineficácia do setor
estatal, são na verdade formas de mascarar a progressiva privatização do
sistema público de saúde. Recebem o terreno livre para administrar o
setor público da maneira com bem entendem, sem uma fiscalização
adequada, sem participação popular nos conselhos diretivos, realizando
compras de insumos sem licitações,precarizando o trabalho dos
profissionais de saúde e administrando políticas públicas de interesses
coletivos com objetivo de lucrar.
O financiamento do sistema de saúde,
através da regulamentação da Emenda Constitucional 29 aprovada
recentemente, definiu as responsabilidades dos municípios, dos Estados e
do governo federal no que se refere ao valor a ser gasto com saúde; no
entanto, retirou o fundamental do texto original, que previa que 10% do
PIB da União deveria ser direcionado à saúde, assim como não aprovou o
fim da Desvinculação das Receitas da União (DRU). Com a DRU, somente em
2012, o governo federal desviará R$ 62 bilhões do orçamento da
Seguridade Social para o pagamento da dívida pública. Além disso, grande
parte dos recursos públicos destinados à saúde (um pífio 4,07% do
orçamento da União de 2012) é direcionada diretamente para a compra de
mercadorias e serviços da iniciativa privada, seja através da compra de
medicamentos e materiais, seja através da realização de exames
complementares, procedimentos, internações etc. Enquanto isso, 45,05% do
orçamento nacional de 2012 está sendo desviado para o pagamento dos
juros da dívida pública do Estado brasileiro com monopólios e bancos
nacionais e internacionais.
Com todos esses empecilhos provenientes
da participação privada no seio do SUS, em meio às sucessivas derrotas
dos setores populares na implementação dos princípios da universalidade,
daintegralidade, da equidade e do controle social, nos perguntamos: que
projeto defendemos para a saúde do povo brasileiro?
Almejamos uma saúde coletiva e popular.
Coletiva, porque o processo saúde/doença é determinado socialmente e,
assim, pelas relações de classe existentes em um modo de produção
específico. Dessa forma, é necessário compreender a questão da saúde
desde uma perspectiva de classe e do antagonismo dos projetos
societários das classes em luta. Torna-se fundamental pensar a saúde a
partir da perspectiva societária dos de baixo, como aspecto de central
importância para a construção de uma sociedade isenta da exploração
entre seres humanos, necessariamente mais coletivizada e de trabalho
essencialmente livre. Saúde coletiva pensada como a plena satisfação das
necessidades materiais e subjetivas de cada indivíduo e da
coletividade, emancipatória.
Uma saúde popular porque deve atender às
reais necessidades do sujeito povo, ou seja, das classes oprimidas e
exploradas pelo sistema capitalista, trabalhadores do campo e da cidade,
desempregados, idosos, adultos e crianças, homens e mulheres de todas
as etnias e orientação sexual, oprimidos cotidianamente pelos ditames da
lógica do capital. Uma saúde construída a partir de suas experiências
históricas e sua prática cotidiana. Para tanto, compreendemos que a
saúde deve ser obrigatoriamente pública, 100% estatal, gratuita e de
alta qualidade, em que o poder popular seja o principal instrumento de
planificação, gestão e controle.
Acreditamos que a luta pela saúde no
Brasil deve ser para além da defesa do SUS. Perpassa a importante
compreensão do caráter da integralidade da atenção à saúde e dos
determinantes sociais nesse processo. Saúde compreende não somente a
ausência de doença, mas o direito a condições de vida que permita ao
sujeito seu desenvolvimento pleno. A saúde, como expressado nos anais da
8ª Conferência em 1986, “em seu sentido mais abrangente, é resultante
das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente,
trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da
terra e acesso a serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o resultado
das formas de organização social da produção, as quais podem gerar
grandes desigualdades nos níveis de vida”.
Dessa forma, é necessária a articulação
de diversos movimentos populares por um projeto de saúde. É nosso dever
buscar compreender os principais limites e contradições do nosso sistema
de saúde, intrínsecos ao atual modo de produção em que está organizada a
sociedade brasileira. Para tanto, torna-se um desafio defender e
desenvolver propostas de construção de projetos populares de saúde para a
construção do SUS como um sistema de saúde público, 100% estatal,
gratuito e de alta qualidade, livre das mãos dos capitalistas
insensíveis com a vida humana, articulado com estratégias de luta
visando à transformação da sociedade brasileira pela conformação de uma
outra hegemonia: a hegemonia dos trabalhadores e trabalhadoras que se
oponha ao consenso burguês, rumo à construção do poder popular e de um
Brasil socialista. Lutemos com o SUS, em defesa dos direitos em saúde
garantidos para a população, e para além do SUS, por uma saúde coletiva e
popular, somente possível no caminho da revolução brasileira!
Assim defendemos as seguintes bandeiras de luta:
1. Implementação do SUS público, 100% estatal, gratuito e de alta qualidade.
2. Lutar contra toda forma de mercantilização da saúde.
3. Lutar pela redistribuição dos
recursos nacionais direcionando 10% do PIB para a saúde a partir do não
pagamento da dívida pública do Estado brasileiro com o imperialismo,
bancos emonopólios. Lutar pela estatização, com controle dos
trabalhadores, das empresas estratégicas e dos recursos naturais do
país.
4. Lutar pela soberania nacional na área
médico-farmacêutica, através da produção autônoma de ciência e
tecnologia e da formação de um complexo industrial e farmacêutico
estatal que sirvam ao sistema público de saúde.
5. Criação de planos de carreira nacional aos trabalhadores da saúde.
6. Lutar em defesa de melhores condições de trabalho e de remuneração para os trabalhadores da saúde.
7. Inserção da luta pela saúde na pauta de construção de um movimento por uma universidade popular.
8. Por uma educação dos profissionais da
saúde centrada na atenção primária, na determinação social da saúde e
na diversidade histórico-cultural do povo brasileiro.
9. Fortalecer a Frente Nacional contra a
Privatização da Saúde e em defesa do SUS e os Fóruns Populares de
Saúde, a partir dos diversos movimentos populares.
10. Inserir o debate sobre a Saúde
Coletiva e Popular nos diversos movimentos populares, como uma das
pautas históricas inerentes à luta pela vida.
11. Reavivar o trabalho de base, de
baixo para cima, não somente entre os trabalhadores da saúde, mas também
junto à população em geral, especialmente nos espaços de atuação
profissional.
12. Lutar contra o ato médico, em defesa da interdisciplinaridade na área de saúde.
13. Lutar contra toda forma de privatização/terceirização da saúde, como as OS, OSCIP, FPP, FEDP, EBSH.
14. Formação técnica para os cargos de gestão do SUS obrigatória e não por indicação política.
15. Integração entre o conhecimento
científico e o popular nas práticas de saúde, desenvolvendo a autonomia
da população no cuidado à saúde.
16. Resgate da cultura popular de saúde.
17. Solidariedade internacional nos
serviços de saúde a todos os povos que necessitam pelos princípios do
internacionalismo proletário.
18. Defender uma revalidação justa dos
diplomas dos médicos brasileiros formados em Cuba em virtude do caráter
humanista da educação médica nesse país, voltada para as necessidades
mais sentidas dos povos do mundo.
[1] PAIM, Jairnilson; TRAVASSOS, Cláudia; ALMEIDA, Célia; BAHIA, Lígia; MACINKO, James. O sistema de saúde brasileiro: história, avanços e desafios.
[2] LACAZ, Francisco Antonio de Castro. A atuação do PCB e a Reforma Sanitária Brasileira
[3] Idem
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