IH – 26.4.2013
Confira a entrevista.
A década de 2000 foi de reorganização do capitalismo brasileiro
com as grandes empresas aumentando investimentos produtivos,
reordenando suas estratégias de negócios na perspectiva da concorrência
internacional acirrada.
A opinião é de Giovanni Alves, professor da Unesp, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Para ele, hoje temos “a formação da consciência de classe e,
portanto, a formação da classe social capaz de promover mudanças
históricas profundas no Brasil”.
“Na época de crise estrutural do capital, - continua o sociólogo - a
renúncia do sindicalismo à formação da consciência de classe é deveras
muito perversa, pois o que a história está cada vez mais mostrando é que
não existe futuro com o capitalismo”.
Segundo ele, “a ‘captura’ da subjetividade do trabalho vivo adquiriu dimensões amplas e intensivas. A lógica da gestão toyotizada
invadiu não apenas o chão de fábrica, mas os escritórios e repartições
públicas e até a vida cotidiana (no plano léxico-locucional, por
exemplo, trabalhador assalariado tornou-se mero ‘colaborador’, linguagem
apropriada também por lideranças sindicais). Enfim, a reestruturação
produtiva assumiu novas dimensões no plano do controle laboral”.
Giovanni Alves (foto abaixo) é professor da
Faculdade de Filosofia e Ciências do Departamento de Sociologia e
Antropologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho –
Unesp, no campus de Marília. Livre-docente em teoria sociológica, é
mestre em Sociologia e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp.
Atualmente, desenvolve o projeto de pesquisa "A derrelição de Ícaro –
Sonhos, expectativas e aspirações de jovens empregados do novo (e
precário) mundo do trabalho no Brasil (2003-2013)”. É autor de, entre
outros,Dimensões da precarização do trabalho – Ensaios de sociologia do trabalho (Bauru: Projeto editorial praxis, 2013).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a revolução tecnológica tem afetado o chão de fábrica, pensando na realidade brasileira dos últimos anos?
Giovanni Alves – As grandes fábricas no Brasil têm
passado por profundas transformações produtivas nos últimos anos. Desde o
começo da década de 2000 alterou-se de forma significativa a morfologia
do trabalho industrial no Brasil por conta das inovações tecnológicas e
organizacionais. Nos polos mais desenvolvidos da indústria – e também
do setor de serviços –, as novas tecnologias informáticas de base microeletrônica
e tecnologias informacionais em rede alteraram o processo de produção
de mercadorias e a organização dos serviços de distribuição e serviços
financeiros e telecomunicações.
Se a década de 1990 foi a década da reestruturação produtiva que
atingiu de forma disruptiva o mundo do capital e, por conseguinte, o
mundo do trabalho no Brasil, então a década de 2000 foi a década de
reorganização do capitalismo brasileiro com as grandes empresas
aumentando investimentos produtivos, reordenando suas estratégias de
negócios na perspectiva da concorrência internacional acirrada.
A ofensiva do capital adquiriu uma dimensão progressiva no sentido do
investimento não apenas em capital fixo, mas principalmente
investimentos em novas estratégias organizacionais e de gestão da força
de trabalho. Nesse sentido, disseminou-se o que eu denomino o “espírito”
do toyotismo, que assumiu um caráter sistêmico. A “captura” da
subjetividade do trabalho vivo adquiriu dimensões amplas e intensivas. A
lógica da gestão toyotizada invadiu não apenas o chão de fábrica, mas
os escritórios e repartições públicas e até a vida cotidiana (no plano
léxico-locucional, por exemplo, trabalhador assalariado tornou-se mero
“colaborador”, linguagem apropriada também por lideranças sindicais).
Enfim, a reestruturação produtiva assumiu novas dimensões no plano do
controle laboral. Por ironia da história, o “choque de capitalismo”
prescrito em 1989 pelo candidato a presidente da República pelo PSDB, Mário Covas, foi aplicado pelo presidente da República Luis Inácio Lula da Silva, do PT – é claro, não o choque do capitalismo neoliberal, mas sim o choque do capitalismo neodesenvolvimentista.
IHU On-Line – Quais as transformações que a luta operária
sofreu no Brasil nos últimos anos? Quais as mudanças de valores pelas
quais passaram trabalhadores, empresas e sindicatos?
Giovanni Alves – No contexto do choque de capitalismo neodesenvolvimentista
com dominância financeira, a luta operária assumiu um novo perfil
político-ideológico. Por um lado, o sindicalismo reavivou-se nos anos do
lulismo e as centrais sindicais consolidaram-se institucionalmente. Não
podemos deixar de reconhecer a positividade do renascimento sindical no
país depois dos anos de chumbo da “década neoliberal”. Foram fechados
bons acordos coletivos com reajuste salarial acima da inflação.
Mas, por outro lado, o renascimento sindical possui um caráter
perverso no plano da consciência de classe. Primeiro, porque o
sindicalismo em geral, com destaque para a CUT, maior
central sindical do país, tornou-se um sindicalismo “oficialista”,
integrado financeiramente às disposições político-estatais, perdendo não
apenas o caráter contestatório da ordem burguesa (o que já ocorrera
desde a década de 1990), mas o caráter de crítica da ordem política, na
medida em que se identificou com os projetos dos governos Lula e Dilma. Tornou-se um sindicalismo “chapa branca”.
Aprofundou-se no polo de esquerda social-democrata, o viés
concertativo-propositivo e neocorporativo do sindicalismo hegemônico no
Brasil. Diante da ofensiva ideológica do capital nos locais de trabalho,
os sindicatos ficaram passivos, incapazes de enfrentar o capital no
campo da luta ideológica. Pelo contrário, incorporaram o discurso da
ordem produtivista, rendendo-se aos valores empresariais. Aliás, na
década de 2000, com o choque de capitalismo neodesenvolvimentista, a
hegemonia empresarial aumentou no Brasil.
A subordinação do PT
Para não perder espaço político, o PT, partido da ordem e com força
protagônica no governo federal, subordinou-se ao discurso vigente.
Enfim, a crise ideológica do sindicalismo rendido às idiossincrasias
empresariais decorre da crise ideológica do partido hegemônico no movimento sindical: o Partido dos Trabalhadores,
subsumido, mais do que nunca, à ordem burguesa hipertardia. A lição da
falência da social-democracia na Europa não foi aprendida no Brasil.
Aqui, a sucata ideológica da concertação social está a pleno vapor rumo
ao abismo (como diria Robert Kurz).
A burocracia sindical não se atentou que a crise profunda do
capitalismo no centro desenvolvido do sistema, impulsiona com mais
intensidade, a perversão do sindicalismo concertativo de cariz
social-democrata, incapaz de conduzir a luta ideológica não apenas entre
suas bases de trabalhadores assalariados, mas principalmente na
sociedade em geral. O viés neocorporativo isolou, por exemplo, a CUT e os grandes sindicatos das lutas sociais em geral.
O choque de capitalismo neodesenvolvimentista colocou no centro da
disputa social e política, a luta ideológica que é essencialmente uma
disputa por valores. Com a crise europeia assiste-se à falência
irremediável dos valores social-democratas. A perspectiva de um
capitalismo humanizado é não apenas uma impossibilidade histórica, hoje,
mais do que nunca, mas uma ideologia farsesca que persegue o discurso
social-democrata. Enfim, o que se coloca hoje é a formação da
consciência de classe e, portanto, a formação da classe social capaz de
promover mudanças históricas profundas no Brasil.
IHU On-Line – Com a crise financeira internacional, o Estado
de bem-estar social está se esfacelando na Europa. E no Brasil? Que
impactos aparecem nesse sentido? Podemos dizer que os direitos sociais e
trabalhistas não estão sendo postos em risco em nosso país, diante da
crise? E como será dentro de 20 anos, por exemplo?
Giovanni Alves – A crise europeia como crise do
Estado de bem-estar social é, depois da queda do muro de Berlim, uma
crise histórica ruptural da civilização do capital constituída no
pós-guerra. Possui impactos radicais no plano político-ideológico. Com
um intervalo de pouco mais de vinte anos, cai por terra mais uma ilusão
histórica do século XX: a ilusão social-democrata. Depois da falência da
ilusão do socialismo estatal, cai por terra o projeto social da concertação entre capital e trabalho na União Europeia.
É claro que há tempos, pelo menos desde a implantação da União
Europeia em seu formato neoliberal, o modelo de Estado social europeu,
construído no pós-guerra, dava sinais de falência social, com o
crescimento do desemprego de longa duração, principalmente entre jovens
trabalhadores, e a ampliação da mancha de precariedade laboral.
O que presenciamos hoje com a crise da zona do Euro é apenas o tiro
de misericórdia no projeto socialdemocrata europeu. Todo
social-democrata é hoje um neoliberal envergonhado; ou então, um Dom Quixote de La Mancha
pós-moderno incapaz de perceber a falência irremediável do modelo
civilizatório do capitalismo concertativo. Na verdade, a crise europeia
exige de nós hoje, intelectuais críticos, a crítica radical do modo de
produção capitalista e modo de civilização burguesa.
Cenário brasileiro
No caso do Brasil, país capitalista hipertardio e sociedade burguesa
dependente e carente de modernização, o tsunami da crise europeia ainda
não chegou às nossas praias tropicais. Parte significativa da
intelectualidade política e social da esquerda reformista no país ainda
está fascinada pelo modelo social europeu ou Estado de bem-estar, o qual
hoje nem os próprios europeus acreditam que possa se sustentar nas
próximas décadas de desenvolvimento de capitalismo financeirizado.
A mediocridade das nossas lideranças de esquerda reformista é
indiscutível. O reformismo social e político no Brasil não se deu conta
de que vive uma profunda crise ideológica. Muitos intelectuais
neokeynesianos de esquerda acreditam que o modelo neodesenvolvimentista
com dominância financeira possa se sustentar por muito tempo, sem expor
seus limites irremediáveis como projeto civilizatório.
Os limites do projeto lulista no Brasil, com o aprofundamento da
crise europeia e os impasses do capitalismo central sob a hegemonia
financeira, tornam-se, com o avançar da conjuntura da década de 2010,
cada vez mais explícitos, exigindo medidas mais ousadas de controle
social e intervenção na economia (o que arrepia os escrúpulos da
social-democracia quixotesca ou neoliberais envergonhados incrustados no
governo).
No Brasil, elo mais forte do capitalismo hegemônico na América
Latina, a incapacidade (ou tibieza) da social-democracia em aprofundar
reformas de controle social e democratização do sistema
político-jurídico e econômico e, the last but not the least, o
sistema midiático, só abre espaço, como na Europa em crise, para o
avanço das forças conservadoras e reacionárias da direita tupiniquim.
Na verdade, é o pêndulo perverso da crise estrutural do capital que,
no plano político, oscila entre governos sociais-democratas medíocres e
governos conservadores e reacionários impenitentes, que ameaça nos
próximos anos os parcos direitos sociais dos trabalhadores brasileiros;
pêndulo perverso lastreado num sistema político radicalmente corrompido,
ineficaz e ineficiente para expressar a representação popular.
Portanto, a maior ameaça aos direitos sociais dos trabalhadores brasileiros
não é a direita reacionária, mas sim a tibieza de parte da esquerda
reformista hegemônica incapaz de aprofundar, sem aventuras, mas com
ousadia, as reformas sociais no país. É claro que a incapacidade
política da esquerda social-democrata deriva estruturalmente da miséria
histórica dos intelectuais de esquerda radical no Brasil, incapazes de
hegemonia social num cenário de violência simbólica e manipulação
midiática historicamente estrutural da direita socialmente organizada.
Enfim, na medida em que não se investe num processo de formação da
consciência de classe social capaz de negar o estado de coisas
existentes, com uma esquerda política e sindical capaz de travar a luta
ideológica, com mais criatividade e menos sectarismo, ampliando alianças
sociais e políticas sem perder a radicalidade, fragiliza-se a
capacidade de resistência ao tsunami da crise europeia que se aproxima
e, ao mesmo tempo, azeita-se a máquina do pêndulo perverso do capital em
sua etapa de crise estrutural. Como diria Marx, hic Rhodus, hic salta.
IHU On-Line – Como podemos interpretar a presença do presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC,
no evento de lançamento de um veículo da Ford do Brasil? Trata-se de
uma mudança nas relações entre capital e trabalho na região considerada
berço do sindicalismo brasileiro?
Giovanni Alves – Trata-se apenas da comprovação da estratégia de concertação social adotada pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC – SMABC.
No lugar da luta de classes e do sindicalismo de confronto, o SMABC
adotou, há mais de vinte anos, a estratégia do sindicalismo propositivo,
negociando com o capital as inovações produtivas no local de trabalho e
colaborando com as grandes empresas montadoras. Pode-se dizer que
existe uma “parceria” entre as montadoras e o SMABC,
“parceria conflituosa” que ocasionalmente provoca rusgas entre os
parceiros, mas nada que abale a confiança ideológica na ideia da
concertação social.
Primeiro, é preciso salientar que o sindicalismo brasileiro não
nasceu na região do ABC paulista. O que nasceu lá foi o saudoso “novo
sindicalismo”, que surgiu nas grandes greves de 1979 e 1980, berço do PT e da CUT.
Entretanto, nos últimos trinta anos, o novo sindicalismo envelheceu
muito rapidamente e tornou-se um sindicalismo pragmático, propositivo,
neocorporativo e bastante eficaz na prática da negociação coletiva tendo
como base a organização por local de trabalho (as comissões de
fábrica). O SMABC é enraizado nas fábricas e isso é uma
singularidade local construída historicamente pela negociação e luta
operária. Poucos sindicatos têm essa base nos locais de trabalho.
IHU On-Line – A partir das novas relações de trabalho,
podemos identificar ainda uma solidariedade entre classes? O que pesa
mais diante das negociações trabalhistas em nossos dias?
Giovanni Alves – As novas relações de trabalho
nascem constrangidas pela realidade da crise estrutural do capital que
pressiona as empresas a inovarem vorazmente visando garantir melhores
custos de produção e pressiona os sindicatos a renunciarem à ideologia
da luta de classes e assumirem o sindicalismo propositivo e de
colaboração de classes. Visando preservar suas bases, muitos sindicatos
aderem de modo pragmático à nova realidade da concorrência capitalista,
aproximando-se do horizonte ideológico das empresas. Fazem greve, mas
por empresas, evitando politizá-las, isto é, generalizá-las e dar-lhes
um conteúdo político-ideológico da luta de classes.
A luta sindical tornou-se mais amesquinhada pelo economicismo, em
parte devido às próprias condições da ofensiva do capital na produção
que reduziu o poder de barganha de muitos sindicatos; muitas vezes
também as novas condições da acumulação capitalista, a acumulação
flexível, colocam imensas dificuldades para a negociação coletiva nos
termos da preservação da consciência de classe, fazendo com que
sindicalistas com baixa formação político-intelectual sucumbam à
mediocridade geral, tornando-se meros gestores da força de trabalho e
dos negócios capitalistas.
O sindicalismo brasileiro – tal como ocorre na maioria dos países capitalistas – não está preparado para aquilo que David Harvey
intitulou “condição pós-moderna”. O que significa que se fecharam no
burocratismo, neocorporativismo e pragmatismo venal, amesquinhando mais
ainda a luta sindical (que Lenin denominava de “luta
cinzenta”). Este fechamento do horizonte ideológico do sindicalismo
muitas vezes fez os sindicatos tornarem-se eficazes tecnicamente na
negociação coletiva, mas em detrimento da sua capacidade moral-política
de formação da consciência de classe. O que pode ser constatado pelo
desprezo pela formação sindical com caráter político-ideológico. O caso
exemplar é a CUT que adotou o discurso da cidadania
(sindicato-cidadão) e deixou de lado o discurso da classe trabalhadora
como sujeito protagônico da construção de uma sociedade sem exploradores
e explorados.
Mas, como dizemos, a crise da CUT é a crise do PT.
Não adianta responsabilizar o sindicalismo pela crise do intelectual
orgânico de classe. Na época de crise estrutural do capital, a renúncia
do sindicalismo
à formação da consciência de classe é deveras muito perversa, pois o
que a história está cada vez mais mostrando é que não existe futuro com o
capitalismo. Entretanto, caso não seja construído o sujeito
histórico-político de classe capaz de negar o estado de coisas
existentes, por meio de um processo de democratização radical da
sociedade, a crise capitalista só tenderá a aprofundar mais ainda a
barbárie social como modo de reprodução do capital em sua etapa de crise
estrutural.
IHU On-Line – O que é o “trabalho ideológico” e como ele pode ser medido, mensurado, avaliado?
Giovanni Alves – Apresentei o conceito de “trabalho ideológico” no meu novo livro – intitulado Dimensões da precarização do trabalho
(Práxis, 2013). O trabalho, como categoria ontológica fundante (e
fundamental) do ser social, é formado por posições teleológicas que, em
cada oportunidade, põem em movimento séries causais; como disse Vygotsky,
ele implica tanto instrumentos quanto signos, elementos de mediação das
posições teleológicas compositivas do processo de trabalho (Lukács diria: posições teleológicas primárias e posições teleológicas secundárias).
Todo trabalho humano, incluindo o trabalho ideológico, implica a
articulação de instrumentos e signos. Entretanto, no caso do “trabalho
ideológico”, os signos tornam-se essenciais para a realização da posição
teleológica secundária: por isso a ação sobre outros homens. Na medida
em que se desenvolve a sociedade de serviços e amplia-se a escala dos
conflitos sociais, o trabalho ideológico,
formado por posições teleológicas secundárias, constitui hoje
amplamente a esfera das ocupações profissionais vinculadas à reprodução e
controle social.
O trabalho ideológico constitui a natureza material de diversas
ocupações profissionais no interior da divisão social do trabalho. Por
exemplo, ele caracteriza o trabalho de formação e informação
(professores e jornalistas), o trabalho de regulação e normatividade
(juízes e policiais), o trabalho de convencimento (publicitários), o
trabalho do cuidado (médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes
sociais), etc. O trabalho ideológico das profissões vocacionadas exige,
do homem-que-trabalha, cuidado, abnegação e doação (como, por exemplo, o
trabalho do formador ou o trabalho assistencial). Finalmente, enquanto
modalidades de trabalho assalariado no setor privado ou no setor
público, elas são regidas pela lógica do trabalho abstrato,
subsumindo-se diretamente ou por derivação, aos parâmetros de
produtividade. O que significa que, na sociedade do capital, o trabalho
ideológico impregna-se da lógica do trabalho estranhado.
Na medida em que a forma material do trabalho ideológico impregna-se
da forma social do capital, caracterizada pelo trabalho estranhado,
constitui-se uma implicação subjetiva de natureza perversa. O que
explica, de certo modo, o crescimento do adoecimento laboral,
principalmente transtornos mentais, nas categorias de trabalhadores
assalariados vinculados ao “trabalho ideológico”. Devido à sua forma de
ser (trabalho imaterial), o trabalho ideológico como trabalho concreto é
recalcitrante à quantificação e às medidas da lei do valor. Ele não
pode ser medido ou avaliado de acordo com a “régua” da lei do valor. De
forma arbitrária, o capital utiliza para avaliar a produção da “saúde”
ou “educação, a mesma régua que avalia a produção de carros e
salsichas”. Na verdade, os critérios de produtividade do “trabalho
ideológico”, imbuídos do produtivismo capitalista, são meros simulacros
próprios da época do capitalismo fictício, um capitalismo descolado da
própria objetividade da lei do valor-trabalho (que o diga a
predominância, hoje, do capital fictício).
Na verdade, como explico no livro, esta é uma das naturezas da crise
do capital: a desmedida do valor, tendo em vista que muitas atividades
de serviços capitalistas que implicam “trabalho ideológico” não se
adequam materialmente à forma social do capital. É o típico caso de
inadequação da forma material à forma social do valor, elemento crucial
da crise de valorização nas condições da crise estrutural do capital.
IHU On-Line – O que marca as novas formas de controle sobre
os trabalhadores contemporâneos? Quais os desafios se considerarmos um
controle sobre a subjetividade do trabalhador?
Giovanni Alves – As novas formas de controle sobre os trabalhadores contemporâneos são marcados pelo “espírito” do toyotismo, conceito tratado por mim no livro Trabalho e subjetividade
(Boitempo, 2011). Não se trata meramente de dispositivos
organizacionais próprios do modelo japonês, mas sim de uma pletora de
valores-fetiches que impregnam o metabolismo social do trabalho
estranhado nas condições da acumulação flexível.
O “espírito” do toyotismo caracteriza-se então pela “captura” da
subjetividade do homem-que-trabalha pelas disposições estranhadas do
capital. É a lógica da gestão hegemônica não apenas na indústria, mas
nos serviços e administração pública, que articula novas modalidades de
remuneração baseada em cumprimento de metas e jornada de trabalho
flexível, além de uma crescente carga ideológica nos treinamentos que
assumem mais um caráter psicológico-comportamental do que
técnico-profissional.
Na verdade, os treinamentos das empresas atuam mais sobre o trabalho
vivo do que sobre a força de trabalho: treina-se hoje nas empresas mais
para se manipular e conformar o operário ou empregado na linha da
“autoajuda” empresarial, incutindo-lhes valores-fetiches do capital; do
que para formar tecnicamente e operacionalmente a força de trabalho. Ao
mesmo tempo, pari passu ao ambiente do “trabalho em equipe” e a
proclamação da ideologia da colaboração, disseminam-se, nos novos
locais de trabalho reestruturados, formas perversas de pressão
psicológica que os gestores fazem sobre o trabalho vivo (o assédio
moral).
No plano do mercado de trabalho,
as novas formas de contratação flexível que se disseminam fecham o
cerco sobre a subjetividade do trabalhador assalariado na medida em que
contribuem para a dessubjetivação de classe, tendo em vista que são os
trabalhadores precarizados, trabalhadores assalariados em geral pouco
organizados, que perdem o referencial coletivo do em si da classe,
ocorrendo, desse modo, a subordinação total da individualidade pessoal à
condição de “classe” ou condição de proletariedade.
IHU On-Line – Como ocorre a articulação entre mente e corpo do homem-que-trabalha no século XXI?
Giovanni Alves – Como salientei acima, a ideia de
“captura” da subjetividade do homem-que-trabalha pressupõe uma nova
articulação entre mente e corpo, muito mais sofisticada do que aquela
que havia na época do fordismo-taylorismo. Por isso, a vigência da
lógica do toyotismo como “espírito” intelectual-moral da gestão capitalista.
Com as novas tecnologias de base informacional e a crise estrutural do
capital, que produz contradições insanas no plano da produção e
reprodução do valor, as estratégias de gestão capitalista baseiam-se
cada vez mais no envolvimento do trabalho vivo na produção do capital. É
uma perversa ironia da história que o capitalismo da grande indústria,
que “negou” o lugar do trabalho vivo na produção de valor, seja obrigado
a repô-lo contraditoriamente nas novas condições do desenvolvimento
capitalista e produção do capital. É por isso que estamos numa nova
forma social de produção do capital que eu denomino (no meu livro
chamadoDimensões da precarização do trabalho) de “maquinofatura”.
A “maquinofatura” é a forma social no interior da qual o capital, em
sua etapa de crise estrutural, reproduz suas candentes contradições.
Portanto, a maquinofatura, como a manufatura e a grande indústria, não é
apenas um “modelo” de organização da produção de mercadorias, mas
principalmente um modo de controle estranhado do metabolismo social e,
portanto, de articulação entre mente e corpo. É uma forma de produção
social no interior da qual ocorre o desenvolvimento da produção do
capital. É a vigência da terceira forma de produção do capital (a
maquinofatura) que explica, por exemplo, a presença enquanto momento
predominante da reestruturação produtiva do capital, da “captura” da
subjetividade do homem-que-trabalha e das novas formas de estranhamento
que dilaceram o núcleo humano-genérico.
Nesse caso, o capital atinge seu limite radical, isto é, o capital
atinge a sua própria raiz, o homem, ou melhor, as relações sociais no
sentido da constituição/deformação do sujeito histórico como
homem-que-trabalha. O toyotismo como ideologia orgânica da produção de
mercadorias surgiu no seio da maquinofatura, na medida em que a
“captura” da subjetividade do homem-que-trabalha pelo capital tornou-se
seu nexo essencial. O capitalismo manipulatório inaugura a era da
maquinofatura como derivação lógica (e ontológica) da grande indústria.
Ao mesmo tempo, a epidemiologia laboral nas condições históricas da
maquinofatura caracteriza-se pelo predomínio do adoecimento da mente, na
medida em que o que está sob tensão é (como na manufatura) o homem
integral. Entretanto, enquanto na manufatura o que está posto é o homem
como força de trabalho, na maquinofatura o que está posto em questão é o
homem como trabalho vivo. Nas condições do capitalismo manipulatório
opera-se de modo radical a redução do trabalho vivo à força de trabalho
como mercadoria – e pior: ser-mercadoria num momento histórico de crise
radical da forma-mercadoria.
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