Um dos mitos da estratégia democrática popular é o acumulo de forças.
A ideia geral é que por não haver condição de rupturas revolucionárias,
nem correlação de forças por mudanças estruturais no sentido do
socialismo, a democratização da sociedade e as reformas graduais iriam
criando as bases políticas para o desenvolvimento gradual de uma
consciência socialista de massa.
No 5o Encontro Nacional do PT em 1987, o problema é
colocado da seguinte maneira: certos companheiros não distinguem entre
as ações ligadas ao acúmulo de forças daquelas voltadas diretamente à
conquista do poder, não entendendo, segundo o juízo dos formuladores, a
diferença entre o “momento atual, (…) em que as grandes massas da
população ainda não se convenceram de que é preciso acabar com o domínio
político da burguesia, e o momento em que a situação se inverte e se
torna possível colocar na ordem do dia a conquista imediata do poder”.
O resultado desta incompreensão seria que os “pretensamente
revolucionários” não seriam entendidos pela população e pelos
trabalhadores contribuindo, assim, de fato para a “desorganização das
lutas” ficando condenados a “pequenos grupos conscientes e
vanguardistas”.
Bem, o centro deste argumento que contrapõe os pretensos
revolucionários aos verdadeiros seria que estes últimos teriam a
capacidade de dialogar com a consciência imediata das massas e dos
trabalhadores criando a mediação necessária para elevá-la à compreensão
da necessidade da conquista do poder.
Nada como uma década depois da outra para julgarmos as pretensões
anunciadas. A prova da validade ou não de tal formulação deve ser
buscada na seguinte pergunta: após dez anos de governo petista os
trabalhadores estão hoje (considerando como ponto de referencia 1987 e o
5o Encontro do PT) mais organizados e se desenvolveu uma
consciência de classe que coloca de forma mais evidente a necessidade de
conquista do poder “acabando com o domínio político da burguesia”?
Comecemos pela expressão maior dessa estratégia e seu líder
incontentável: Luis Inácio Lula da Silva. Como operário ele expressava
no início de sua trajetória política os elementos evidentes do senso
comum, nos termos gramscianos, ou de uma consciência reificada nos
termos de Lukács. Em seu discurso de posse no Sindicato dos Metalúrgicos
de São Bernardo do Campo e Diadema em 1975, dizia que vivíamos em um
momento “negro” para o destino dos indivíduos e da humanidade, porque
tínhamos “de um lado” o homem “esmagado pelo Estado, escravizado pela
ideologia marxista, tolhido nos seus mais comezinhos ideais de
liberdade”, e de outro lado, tínhamos o homem “escravizado pelo poder
econômico explorado por outros homens” (Discurso de Lula na posse do Sindicato dos Metalúrgicos de SBC e Diadema, 1975).
As mudanças na consciência dos trabalhadores não vêm da
autodescoberta ou do esclarecimento, são o resultado de sua inserção na
luta de classes. As lutas operárias do final dos anos 1970 e início dos
anos 1980 colocariam novos elementos à consciência deste operário em
construção.
Em seu discurso na 1a Convenção Nacional do PT em 1981,
Lula já diria: “O PT não poderá, jamais, representar os interesses do
capital”. Em outra parte do mesmo discurso o líder em formação
afirmaria:
“Nós, do PT, sabemos que o mundo caminha
para o socialismo. Os trabalhadores que tomaram a iniciativa histórica
de propor a criação do PT já sabiam disso muito antes de terem sequer a
ideia da necessidade de um partido (…). Os trabalhadores são os maiores
explorados da sociedade atual. Por isso sentimos na própria carne e
queremos, com todas as forças, uma sociedade (…) sem exploradores. Que
sociedade é esta senão uma sociedade socialista”
(Discurso de Lula na 1a Convenção Nacional do PT, 1981).
(Discurso de Lula na 1a Convenção Nacional do PT, 1981).
Os trabalhadores, no momento de fusão que os constituía em classe
contra o capital, expressavam a difícil passagem da consciência
reificada à consciência em si, apontando já neste momento os germes de
uma consciência para si, ou seja, mais que a consciência de uma classe
da ordem do capital, mas uma classe portadora da possibilidade de uma
nova forma societária para além da sociedade burguesa.
As lutas operárias, assim como o retomar de um conjunto muito amplo
de lutas sociais, tornaram possível um salto organizativo que resultou
na formação de um partido e, depois, de uma central sindical, da mesma
forma que se alastra pela sociedade a retomada de associações,
movimentos sociais e lutas das mais diversas.
Façamos um corte e pulemos para uma entrevista em que Lula recebe o repórter do programa norte americano 60 minutes por ocasião do final de seu segundo mandato como presidente.
Nesta entrevista o repórter norte americano pergunta ao ex-presidente:
“Havia empresários, no Brasil e no
exterior, muito preocupados com sua posse, que pensavam que era um
socialista e que daria uma virada completamente à esquerda. Agora estas
pessoas são seus maiores apoiadores. Como isso aconteceu?”
E Lula responde:
"Veja, eu de vez em quando brinco que um torneiro mecânico com tendências socialistas se tornou presidente do Brasil para fazer o capitalismo funcionar.
Porque éramos uma sociedade capitalista sem capital. E se você olhar
para os balanços dos bancos neste ano (final do segundo mandato de Lula)
verá que nunca antes os Bancos ganharam tanto dinheiro no Brasil como
eles ganharam no meu governo. E as grandes montadoras nunca venderam
tantos carros como no meu governo. Mas os trabalhadores também fizeram
dinheiro".
O repórter um tanto surpreso pergunta: “Como você conseguiu fazer
isso?”. E Lula responde: “Eu descobri uma coisa fantástica. O sucesso do
político é fazer o que é óbvio. É o que todo mundo sabe que precisa ser
feito, mas que alguns insistem em fazer diferente”.
Notem bem, Lula expressava entre 1975 e 1987 o movimento da
consciência de classe que passava de uma determinação da alienação à
consciência de classe em si. Da mesma forma fica manifesto na
consciência de sua liderança mais expressiva o caminho de volta à
reificação.
O problema é que a consciência expressa na liderança é representativa
do resultado político da estratégia por ele implementada no conjunto da
classe e em sua consciência. Como a consciência em seu movimento é
síntese de fatores subjetivos e objetivos, a ação política da classe
conformada por uma estratégia incide diretamente sobre a classe e sua
formação enquanto classe.
Em sua análise sobre a social-democracia, Adan Przeworski (Capitalismo e Social-democracia, São Paulo: Cia das Letras, 1989) afirma que:
“A classe molda o comportamento dos
indivíduos tão-somente se os que são operários forem organizados
politicamente como tal. Se os partidos políticos não mobilizam as
pessoas como operários, e sim como “as massas”, o “povo”,
“consumidores”, “contribuintes”, ou simplesmente “cidadãos”, os operários tornam-se menos propensos a identificar-se como membros da classe.” (Przeworski, 1989:42).
O mito do acúmulo de forças só se sustenta renovando-se ao infinito,
isto é, nunca estamos prontos, nunca há a correlação de forças
favorável, nunca o nível de consciência das massas e dos trabalhadores
chega à necessidade da conquista do poder. O problema é que agindo desta
forma criam-se as condições para que de fato nunca estejam dadas as
condições.
No entanto, a questão é ainda mais séria. Os defensores do acúmulo de
forças acreditam piamente que os patamares de consciência não regridem,
isto é, a consciência de classe desenvolvida nos anos oitenta e noventa
ficaria ali no ponto onde chegou e iria se tornando massiva em
consequência do andamento positivo das ditas reformas. Nesta leitura, se
ainda não temos uma consciência revolucionária, que já coloca a
necessidade da conquista do poder, teríamos a generalização gradual de
uma consciência em si, digamos democrática, disposta a manter o patamar
das conquistas e reagir quando estes estão ameaçados.
Não é o que verificamos. A consciência expressa na liderança revela
que o conjunto da classe retoma um patamar que Sartre denominava de
serialidade e ao qual corresponde a consciência reificada. Esta é a
consciência da imediaticidade, da ultrageneralização, do preconceito, da
perda do capacidade de vislumbrar, ainda que potencialmente, a
totalidade.
Presos a esta forma de consciência, os trabalhadores não agem como
uma classe nos limites da ordem do capital em luta contra suas
manifestações mais aparentes e, pior, eles a naturalizam e se comportam
como agentes de sua reprodução e perpetuação desta ordem.
O senso comum reflete este movimento e é no cotidiano que ele se
manifesta. Se podíamos falar de um senso comum progressista, ou
tendencialmente de esquerda, no contexto de intensificação da luta de
classes na crise da autocracia burguesa e no processo de democratização,
hoje no quadro de uma democracia de cooptação consolidada temos um
senso comum que tende a ser conservador e, por vezes, reacionário.
Permitam-se um exemplo caseiro, mas creio que significativo. Lincoln
Secco escreveu um texto sobre a situação da Coréia do Norte em nosso
blog (Kim Jong-un
17/04/2013). Um comentador simplesmente respondeu com um direto “vai
morar lá”, mas deixemos este de lado. Destaco dois comentários mais
substanciosos e que revelam uma forma de compreensão do mundo atual e
seus dilemas:
“Olha, até pouco tempo tinha raiva dos
EUA pela sua indústria cultural, sua arrogância, sua intromissão em
assuntos de outras nações, etc. Entretanto, depois de conhecer o país e
seu povo, mudei completamente minha concepção. Os caras são os “caras”
porque trabalham duro, estudam bastante e são muito educados e
politizados. O fazem mundo afora é conhecido na natureza como a lei do
mais forte. Queria eu morar num país que dita as regras aos outros e
ninguém tira farinha. Além disso, em pleno século XXI, os norte coreanos
são tratados como um rebanho e não como cidadãos livres. Abaixo o apoio
ao totalitarismo, como ocorre por lá!!!”
Um outro, mais duro, afirma:
“kkkkkkkkkkkkkkkkk . País sitiado? por
quem? Paranóicos, malucos mesmo, todos eles, o “estadista mirim”, o
“professor” que assina esta bobagem. Veja bem, a lição de história pode
até ser boa, talvez o que o trai sejam as convicções políticas… o tempo
passou e eles não perceberam… O Presidente dos Estados Unidos, já é
Obama, viu pessoal… Ameaça do Ocidente? Para quem? Despertem deste
“sono” louco, sejam felizes, ou não, mas, deixem de loucura! Vivemos num
mundo diferente do das “cartilhas” que vocês estudam!!!”.
Não vou entrar no mérito, não guardo nenhuma simpatia pela forma
política norte coreana, mas em seu núcleo central o texto do companheiro
Lincoln, apenas afirma que existe um espaço de soberania dos Estados
nacionais e que estes tem direito de se defender, o que o leva à
constatação que não são eles que provocam e atacam, mas ao contrário,
estão sendo provocados por “exercícios militares” que partem dos EUA.
Como explicar tal reação?
Não vai aqui nenhuma consideração aos comentadores, eles têm direito
de expressar sua opinião, concordemos ou não. Um blog tem de tudo e tais
comentários o deixam ainda mais interessante. O que nos preocupa é que
ele revela, e isto é uma virtude, um elemento do senso comum que indica
uma preocupante guinada conservadora, mesmo em relação a valores mais
elementares, e isso em um leitor de um blog de uma editora com uma linha
claramente de esquerda em um pais que está há dez anos “acumulando
forças”.
Podemos ver este fenômeno como um resquício ou uma exceção em um
senso comum que tende a ser mais progressista. Infelizmente eu acredito
que não. A forma do senso comum é resultado de toda a história da
formação social, sua resultante cultural, a permanência das relações
sociais de produção burguesas, mas também do processo político mais
recente que como toda práxis pode superar ou reforçar o existente. No
caso reforçou.
Lembrando ainda Przeworski, sabemos que a chamada organização das
massas precisa ser compreendida de forma mais profunda. Não há uma
relação direta entre organização e ação, é possível organizar para
apassivar. Diz o autor:
“Os líderes tornam-se representantes.
Massas representadas por líderes – eis o modo de organização da classe
trabalhadora no seio das instituições capitalistas. Dessa maneira, a
participação desmobiliza as massas” (Przeworski, 1989: 27).
É triste.
http://www.youtube.com/watch?&v=qRVlhRbERJM
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço
Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de
Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê
Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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