ESPETÁCULO EM CINCO ATOS (OU, CINCO DIAS)
Roteiro, Direção e Sonoplastia – CIA, FBI, POLÍCIA DE BOSTON
Participação Especial – Sociedade Americana
Narração – Fox News
Memélia Moreira
Era Boston, início da tarde de 15 de abril, numa primavera sonolentae
e ainda fria, quando dois irmãos sairam de casa. Nas costas carregavam
um elemento cada dia mais demonizado pela sociedade americana: mochila. E
essa tinha seus perigos. Ela transportava uma bomba. Caseira,
rudimentar, de baixo impacto, de fácil feitura, feita em panela de
pressão. Mas continuava sendo uma bomba. E bombas, de nêutrons ou
caseiras, são construídas com o mesmo objetivo. Para matar. Sempre.
Os jornais da cidade de Boston naquela segunda-feira, dia da “segunda
maratona do mundo” (a primeira continua sendo a grega) trazem notícias
corriqueiras., além do assunto do dia, a maratona . Nas primeiras
páginas do jornais de Boston, New York, Washington, Chicago, Miami,
nenhuma linha sobre o que acontecera na véspera, domingo, 14 de abril.
Naquele dia, 30 pessoas, entre elas oito crianças,foram mortas por um
drone no Afeganistão. A máquina da morte confundiu uma cerimônia de
casamento com ato terrorista. Há quem concorde.
São 2h17 minutos da tarde de 15 de abril na bela e culta cidade de
Boston. Correrias, sirenes, multidão em polvorosa. A bomba havia
explodido. Quatro pessoas são envolvidas em sacos plásticos. Mortas.
Outras 160 se espalham pela rua interditada e pelas calçadas. Feridas.
Comoção nacional. Não pelo drone que matou 30 pessoas inocentes. Mas
pelo “ato terrorista” que matou quatro pessoas, inocentes, entre eles um
garoto, e mais 160 feridos. Um deles, com pernas amputadas.
24 horas do atentado, nenhum suspeito. Nada. Nenhuma testemunha mas
(as conjunções adversativas sempre mudam a história do mundo), surge a
primeira imagem, um primeiro suspeito. Alguém que andava sobre os
telhados na hora da maratona.
As especulações qual coriscos ensandecidos, riscam os céus de Miami,
Chicago, Washington, New York e Boston. “Isso é coisa do Tea Party”,
reclamam uns. “Parece que foi ação de quem é contra a alta de impostos”,
bradam outros. Ninguém se lembra de que o Congresso dos EUA está, nesse
momento, discutindo uma Lei de Migração menos draconiana. A discussão
arrepia e traz pesadelos para a extrema direita e seu atual líder,
senador pela Flórida, Marco Rúbio. Filho de cubanos fugidos da ilha nos
60.
Quarta-feira, 17 de abril. A câmera de um “anônimo” traz, finalmente,
aquilo que mais de 300 milhões de americanos esperavam. A imagem de
dois rapazes. Eles e suas e suas mochilas. Os dois próximo à lixeira
onde a bomba fora deixada.
Ainda é 17 de abril. A voz da âncora da Fox News ecoa pelos ares de
um país em pânico. Mas, antes de qualquer pronunciamento oficial, a
âncora da Fox News canal de televisão de Rupert Murdoch (a mesma que se
recusou a acreditar na reeleição de Obama) deixa escapar o cheiro da
panela. Um cheiro de Islam servido num samovar.
17 de abril, em Boston, a câmera com imagem dos dois irmãos, de nomes
impronunciáveis no Ocidente, se junta a outras câmeras. A CIA entra em
ação para ampliar as imagens que mais a interessavam A dos dois irmãos.
A Polícia de Boston nega ter feito a captura de qualquer suspeito.
Já é quinta-feira, 18 de abril. CNN, com seu noticiário desbotado e
Fox News exigindo vingança passam a centralizar o noticiário na busca
dos “terroristas”. Às nove da noite desse dia, as imagens dos dois
irmãos surge nas telas das redes sociais com a tarja “Wanted”
(Procurados). A mesma tarja utilizada na colonização da costa Oeste do
país para encontrar pistoleiros ou ladrões de gado, de banco…
Ainda é quinta-feira. Dez da noite. O lado Leste dos EUA já se
entregou ao sono. A sociedade estadunidense dorme cedo. Mantém até hoje
hábitos rurais, com algumas exceções. Na Fox News, uma voz embargada de
emoção anuncia que uma loja de conveniências foi assaltada. Eram os
dois irmãos. Eles também fizeram um refém, o dono de uma Mercedes SUV
(Sport Utility Vehicule), um jeep possante. O refém escapa enquanto os
irmãos assaltam a loja. Nem o FBI, nem a CIA, nem a Polícia de Boston
mostra a loja do assalto e muito menos o cidadão sequestrado.
A partir daí, a tarja “Wanted” pode ser substituída pela tarja
“Fiction”. Ou, com o aviso de acredite, se quiser. Porque, nessa
tragédia, com cinco mortos (os quatro pela bomba e um dos irmãos pela
polícia) a verdade de substantivo abstrato, torna-se substantivo
volátil.
10h30 minutos da noite de quinta-feira, os dois irmãos, mesmo num
carro possante, não tinham se afastado tanto do local do sequestro
seguido de roubo. A Polícia cerca o carro. Uma câmera imóvel filma o
tiroteio. O som dos tiros são nitidamente de armas do mesmo calibre.
Mas a versão oficial informa que a polícia foi recebida com bombas,
embora o vídeo de câmara parada não mostre nenhuma explosão.
O mais velho dos irmãos é preso (ou se entrega, ninguém sabe). E
morre “a caminho do hospital”. Ou vocês pensavam que só bandido
brasileiro morre a caminho do hospital depois de “intensa troca de
tiros”.
O irmão caçula, ferido, consegue escapar. Deixa um rastro de sangue,
mas a polícia não segue as pegadas frescas. Desloca-se para uma pacata
cidadezinha, Watertown para vasculhar a casa onde, afirmam as
autoridades, viviam os irmãos. A essa altura, o telespectador já sabe
que eles são estrangeiros. Vieram da sofrida Chechênia, país localizado
numa região onde a morte chega pelas mãos das tropas de ocupação
estacionadas no Afeganistão, pelos russos ou, pela arma mais abjeta
criada pela indústria armamentista dos Estados Unidos, o drone.
Os repórteres, âncoras e comentaristas se entreolham decepcionados.
Por que Chechenia? Afinal de contas, Chechenia, é um país invadido pela
Rússia. Seus imigrantes têm direito ao status de “refugiados”. Ou seja,
os dois estavam fugindo do antigo inimigo número um dos EUA, a poderosa
União Soviética. Um fantasma que por mais de cinco décadas povoou os
pesadelos dos americanos. Não fazia sentido, bradavam os analistas e
especialistas em Segurança e Terrorismo.
Helicópteros, carros anti-bomas, agentes com colete do FBI, Polícia
de Boston, sirenes incessantes. A casa é cercada. São 10h30 da manhã de
19 de abril. A caçada fora iniciada doze horas antes. O movimento é
acompanhado por centenas de jornalistas e canais de TV. As ruas da
cidade foram fechadas. Ninguém entra ou saí. Os vôos, cancelados. Boston
e seus arredores transformam-se em cidades sitiadas. “Estou no meio da
guerra” dizia ao microfone um repórter da Fox News num cenário onde não
se via carros ou pessoas.
Pé ante-pé, rodeados por câmeras de grandes e pequenos canais de TV,
batalhões de policiais, agentes do FBI, especialistas em desarmar
bombas, helicópteros de guerra sobrevoam a pacata Watertown.
A âncora da Fox News baixa o tom de voz dramaticamente para dizer, “o
procurado é uma pessoa de extrema periculosidade”. Ela está rouca e
muito excitada. A polícia, qual seriado de TV, põe a arma em diagonal
(nunca entendi porque as armas ficam na diagonal da mão quando a polícia
busca criminosos). Chegam à casa onde viveriam os dois irmãos. Não se
ouve nada. Nenhum som.
Frustração. Os policiais abandonam a busca. E saem declarando que
havia um verdadeiro arsenal dentro da casa vazia. E muitas bombas,
algumas delas de alto poder destrutivo e que “exigem treinamento para
sua fabricação. . ,Não há imagens do arsenal.
Só um protesto diante da cena. A tia dos dois irmãos é advogada. Sem
papas na língua. E vive no Canadá. Quando uma jornalista lhe pergunta o
que acha do fato de seus sobrinhos terem bomba em casa, ela, voz firme,
com forte sotaque do Leste europeu, responde “Evidências. Quero
evidências de que havia bombas. Quem está está informando sobre as
bombas é o FBI e a CIA. Mas não há evidências”. E até agora as
evidências continuam no anonimato.
Ninguém contesta a informação. Ninguém se pergunta porque os dois
irmãos, “pessoas de extrema periculosidade” deixaram em casa bombas
potentes e usaram uma outra de baixo impacto.
“Necessidade de treinamento para a fabricação”. A frase, parece solta
ao acaso. Mas não se iludam. É o primeiro passo, o primeiro elo com o
“terrorismo” (leia-se “terrorismo islâmico”).
14h30 minutos de 19 de abril. A caçada continua sem pistas da pessoa
de “extrema periculosidade”. A essa altura, na cozinha da Fox News, a
panela de pressão assovia. Na tela o sinal de “Alert”, ou seja, vem
notícia bombástica (sem trocadilhos).
E, para um público que, passivamente se deixa impregnar pelo
noticiário como se fossem gansos alimentados para que seus fígados
engordem e se transformem em paté de “foie gras”, a voz que alicia
multidões diz que…tchan…tchan…tchan, o mais velho dos irmãos passou
“seis meses na Chechenia.
Que absurdo! Como é que um checheno tem a ousadia de passar seis
meses na Chechenia, mesmo morando no país mais rico e poderso do
planeta? Isso é crime. É sinal explícito de militância terrorista.
Mas ainda não era tudo. Os ponteiros do relógio avançavam. A caçada
ia a passos de um velho celacanto. Nessa época do ano, o dia invade a
noite. Só se deixa vencer quando não mais consegue provar o poder do
sol.
As tropas tomam outra direção. Agora procuram um barco ancorado na terra. Lá está um adolescente. Ferido. Sangrando.
São 19h30 em Boston e seus arredores. A claridade é suficiente para
encontrar filhotes de esquilo em mata fechada. Os helicópteros continuam
vasculhando céu, terra. As tropas do país mais armado do mundo parecem
perdidas. O bombardeio da Fox News sobre os gansos repete
exaustivamente as mesmas informações. Em tons de filme macabro ou
novela policial, os âncoras se revezam em adjetivos. Os gansos estão
quase a ponto de virar paté de foie gras, explodindo de ódio contra os
seguidores do Alcorão.
A luminosidade cede lugar às primeiras escuridões. A Fox News, num
tom solene anuncia que o aparato policial “avança com cautela” porque
quer pegar o irmão sobrevivente “vivo”. Como se fosse uma grande
concessão.
21 horas. Já é noite de 19 de abril em Boston, em Watertown, Miami,
New York e Washington. Em Chicago ainda há luz. A escuridão impede
imagens nítidas mesmo para câmeras poderosas. E…”cantemos ao senhor”, a
pessoa de “extrema periculosidade” é capturada. Está ferida. Perdeu
muito sangue por quase 24 horas. Debruçados sobre um corpo magro, os
paramédicos impedem telespectadores de olhar a cara do “terrorista” que é
levado para o hospital. Os helicópteros com luzes infra-vermelho
retornam à base.
Cai a cortina. E, como em qualquer espetáculo teatral, o público
aplaude os atores. Eles desfilam em seus carros com luzes que piscam
vermelhas e azuis, os tanques anti-bombas passam sob um frenesi de uma
sociedade que, desde 11 de setembro de 2001 vive a frustração por não
ter conseguido caçar os terroristas que abalaram o orgulho nacional
quando explodiram as Torres do WTC.
O espetáculo se encerra com os habitantes de toda uma cidade.
Carregando flores ou velas protegidas por saco de papel cantam God save
America. My home, sweet home/ God save America/ my home sweet home,
numa verdadeira catarse nacional.
Dos 30 mortos no Afeganistão, entre eles, oito crianças, nenhuma linha até domigo, 21 de abril, uma semana depois do massacre.
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