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Para atender à determinação do Supremo
Tribunal Federal, de que o veto de Dilma Rousseff à alteração das regras
de distribuição de royalties do petróleo só possa ser analisado após a
análise de outros 3 mil vetos, o Congresso está desenterrando alguns
esqueletos. Alguns com cara bem feia.
Há parlamentares que, na
surdina, estão se articulando para que um dos vetos presidenciais, em
especial, seja derrubado: o que trata da chamada Emenda 3.
A emenda, que integrou o projeto que
criou a Super Receita, propõe que auditores fiscais federais não possam
apontar vínculos empregatícios entre empregados e patrões, mesmo quando
forem encontradas irregularidades. Apenas a Justiça do Trabalho, de
acordo com o texto, é que estaria autorizada a resolver esses casos. Na
prática, a nova legislação tiraria o poder da fiscalização do governo, o
que dificultaria o combate ao tráfico de pessoas, ao trabalho escravo,
ao trabalho infantil e a terceirizações ilegais que burlam direitos do
trabalhador.
Originalmente, a emenda foi proposta atendendo à solicitação de empresas de comunicação e de entretenimento
que contratam funcionários por meio de pessoas jurídicas, conhecidas
como “empresas de uma pessoa só”. O problema é o efeito colateral que
isso pode criar para o restante da sociedade.
O Congresso Nacional aprovou a emenda,
mas o então presidente Lula a vetou em março de 2007. Na época,
trabalhadores foram às ruas para apoiar o veto – milhares de
metalúrgicos fizeram passeatas na região do ABC, metroviários cruzaram
os braços e bancários protestaram na capital paulista. Com as
manifestações, a medida foi posta em compasso de espera, uma vez que
assustaram deputados e senadores favoráveis à medida. Agora, como parte
da discussão sobre o pacote de vetos, reapareceram articulações,
contando com a breve memória do brasileiro e com a dificuldade de
analisar atentamente uma única matéria quando são milhares os vetos
discutidos ao mesmo tempo.
Em um país onde milhões de
pessoas são tratadas como ferramentas descartáveis, a fiscalização do
trabalho desempenha um papel fundamental. Ela não é perfeita,
mas sem esse aparato de vigilância, as relações de trabalho seriam bem
piores do que realmente são. A desregulamentação não levaria
necessariamente à auto-regulação pela sociedade, como profetizam alguns
economistas, mas sim ao caos. Se, com regras minimamente vigiadas, você –
trabalhador – já é maltratado, imagine sem.
De acordo com procuradores e juízes do
Trabalho ouvidos por este blog, no campo, por exemplo, a aprovação dessa
proposta ajuda muito fazendeiro picareta que monta uma empresa de
fachada para o seu contratador de mão-de-obra empregar safristas. Dessa
forma, ele se livra dos direitos trabalhistas, que também nunca serão
pagos pelo “gato”, o contratador – boa parte das vezes tão pobre quanto
os peões. E consegue concorrer aqui dentro e lá fora sem reduzir sua
margem de lucro. Que em nosso país é mais sagrado que todos os santos e
orixás.
Nas cidades, isso facilitaria e muito a
manutenção de oficinas de costura que contratam trabalhadores de forma
precária ou os submetem a condições análogas às de escravo, muitos dos
quais imigrantes latino-americanos pobres que vêm produzir para os
cidadãos brasileiros. Oficinas que, não raro, surgem apenas para que a
responsabilidade dos custos trabalhistas saiam das costas de oficinas
maiores e de grandes magazines. Você não vê o escravo em sua roupa, mas
ele está lá.
Além de beneficiar os
empregadores que querem terceirizar seus empregados (ou legalizar os já
terceirizados), a emenda 3 pode funcionar como ponta-de-lança para
outras mudanças. Abre a porteira para regularizar de vez a
situação das pessoas que ganham pouco, batam cartão e respondam a um
chefe, mas que são obrigados a criar uma empresa para ganhar o salário e
ficar sem os direitos trabalhistas. Se o bolo de dinheiro fosse
distribuído de forma justa entre patrões, chefes e empregados em uma
empresa, a defesa do veto da emenda 3 não seria tão necessária. Mas não é
o que acontece.
Colocar a emenda 3 em vigor também pode
aumentar ainda mais o rombo da previdência, pois ela tende a levar a uma
diminuição no carregamento do INSS. Idem para o FGTS, cujo caixa
financia a casa própria e banca o Programa de Aceleração do Crescimento.
Isso abre a porteira a outros projetos draconianos destinados a
resolver os problemas que seriam causados pela emenda 3, como reduzir os
reajustes das aposentadorias a fim de economizar.
Projetos como a emenda 3 fazem parte de uma mesma política para diminuir o poder que o Estado
tem de garantir que o empresariado tenha um patamar mínimo de bom
senso. Com o aumento da competição, cresce também a precarização do
trabalho e com ela o discurso da necessidade de desregulamentação, ou
seja: pá de cal nos direitos adquiridos e vamos embora que o mundo é uma
selva. Durante as manifestações de apoio ao veto à emenda 3 em 2007,
uma retórica se tornou constante em círculos empresariais e entre alguns
colegas da área de economia: de que era um absurdo trabalhadores
fazerem greve que não fosse por emprego e salário, mas por política
trabalhista. Em outras palavras, protestar por água e pasto, é horrível,
mas vá lá. Já a luta para que o aumento da capacidade de
competitividade das empresas não seja feito engolindo os trabalhadores é
uma atitude deplorável. “Esse país não quer crescer”, diziam eles.
Nesse ritmo, não me espantaria – num
futuro não muito distante – ver anúncios estampados em página dupla nas
revistas semanais de circulação nacional dizendo: “O Banco X pensa em
seus empregados. Ele paga 13º salário. Isso sim é responsabilidade
social”. E nossos filhos olharão para aquilo e, espantados, perguntarão:
“pai, mãe, o que é emprego?”
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