lh4 | |
Nota dos Editores: Ao divulgarmos este belo e emocionante texto de FERNANDA VIEIRA, deixamos de citar a autora, o que fazemos aqui pedindo-lhe desculpas.
Escrevo como uma homenagem tardia, mas
também como forma de apaziguar o meu espírito que se remoi por não estar
nesse momento cercada pelos muitos companheiros e companheiras diante
da tristeza e dor pelo assassinato do companheiro Cícero. Nunca
vivenciei de forma tão opressiva o distanciamento entre corpo e coração:
se meu corpo permanece no RJ, meu coração encontra-se em Campos,
dolorido e solidário à familia de Cicero. Peço então aos que puderem que
encaminhem para a família de Cícero esta homenagem como um pedido de
desculpas meu...envergonhado pela minha ausência, na esperança de que o
desejo de estar presente supere distâncias...
Não cheguei a tempo de me deslocar para
Campos, assim escrevo marcada por profunda tristeza de não poder prestar
essa homenagem ao Cícero e com o opressivo sentimento de impotência
diante da certeza de que um gesto como esse, tão ignóbil, tão torpe como
o assassinato de um homem, cuja vida se voltava para a construção de
uma sociedade mais justa e fraterna, mesmos as palavras silenciam por
vergonha!
Conheci Cícero na luta por conquistarmos
a Usina improdutiva Cambahyba e já se passaram um pouco mais de 1
década em que as muitas famílias de sem terra esperam essa
desapropriação, o que demonstra que o tempo é uma estrada com muitos
caminhos e o nosso judiciário, no que se refere em garantir justiça para
os deserdados da terra, escolhe sempre o caminho mais longo, quando não
resolve parar no meio do caminho.
Uma das características mais marcantes
de Cícero, pelo menos para mim, era justamente sua voz. Grossa e
potente. É que habitualmente falo alto e assim sempre me alegra
encontrar irmãos e irmãs que compartilham dessa incontinência vocal. Mas
Cícero, com certeza, me ganhava.
Muitas marchas foram embaladas por
palavras de ordem entoadas pelo Cícero e nós, caminhantes da terra,
sabemos o quão bem faz ter ao lado um companheiro que seja capaz de
levantar, mais do que a poeira da terra, os nossos ânimos. E era isso
que Cícero fazia com grande maestria. Embalava como ninguém as nossas
caminhadas.
Mas é preciso que se diga: o fantástico
na potência da voz de Cícero não era um produto de um dom particular do
seu timbre, mas sim a certeza de que Cícero trazia dentro de si muitas
vozes. Cícero era nosso caleidoscópio vocal!
Não falava por si e sim por muitos,
milhares. Sua força derivava disso, de uma generosidade que o fazia
emprestar sua voz para todos os que pela opressão da miséria, da
injustiça acabam silenciando no desespero, restando-lhes apenas um sopro
de vida. Cícero sabia a importância do falar, do gritar na vida dos
injustiçados, pois seja narrando nossas histórias, seja gritando
palavras de ordem espantamos os inimigos da vida, da esperança, da
justiça.
Cícero foi silenciado, mas de forma
diversa do que esperam seus assassinos - e não se iludam nós sabemos
quem são: os mesmos vermes da história que por séculos mantêm para si
enormes extensões de terra cujo único fim está em especular, parasitas
cuja única atividade de exploração não é a da terra, mas sim dos homens e
mulheres que sobre ela estão -, o silêncio de Cícero será temporário.
As muitas vozes que seu corpo
carinhosamente guardava estão agora soltas levadas pelo vento e como
sementes pousarão na terra, tão amada por Cícero, e germinarão em muitas
outras vozes e um grito se ouvirá saindo da terra, ensurdecedor,
fazendo estremecer em qualquer parte do mundo um latifundiário, que
pense ser possível ignorar os deserdados da terra, os milhares de sem
terra, de quilombolas, de indígenas e tantas identidades, que como diz a
canção “põe com carinho a semente pra alimentar a nação”, que ouse se
esconder no argumento da legalidade:
CICERO VIVE...ETERNAMENTE!
Nenhum comentário:
Postar um comentário