quarta-feira, 26 de junho de 2013

As manifestações de massa e o aparecimento público do fascismo



Carlos Serrano Ferreira

Há um só amplo consenso político sobre as manifestações que se espalharam por todo o Brasil: elas pegaram de surpresa todos os campos políticos. Outra análise que, se não é consensual é majoritária, aponta – com valorações distintas, sejam positivas ou negativas – para o divórcio crescente entre a institucionalidade democrática burguesa e as massas brasileiras, que se materializam na rejeição ao sistema partidário. Para além disso, essas manifestações demonstraram a existência, até então desconhecida, de um campo fascista bastante organizado em nível nacional.

Desde o início do primeiro governo Lula foram se definindo com clareza quatro campos políticos. Do lado burguês colocavam-se dois campos e do lado popular outros dois. É claro que os limites entre os campos variaram ao longo do tempo.
Como primeiro campo da classe dominante está a direita clássica, organizada em torno à oposição de direita ao governo (PSDB, DEM e outros) e tendo como órgãos oficiais a Veja, a Rede Globo e a Rede Bandeirantes (entre outros), de cunho abertamente neoliberal e conservador.

Como segundo campo da classe dominante está o governo de Frente Popular liderado pelo PT e sustentado por seus velhos aliados (PCdoB e PSB), bem como por novos aliados que sempre se relocalizam conforme os ventos mudam, em particular o sempiternamente governista PMDB. Em grande parte tenta esse campo se colocar dentro de um alinhamento do que seria uma tradicional social-democracia europeia, mas muito mais próxima da Terceira Via de Tony Blair, realizando um malabarismo entre reformas sociais e políticas econômicas neoliberais. O resultado é o aprisionamento basicamente em políticas assistenciais e localistas, por um lado, e grandes concessões há conglomerados econômicos, em particular o setor bancário, do outro, como se vê no pagamento das dívidas interna e externa. Também se beneficiaram fortemente dessas políticas o agronegócio (os velhos latifundiários com ares “modernizados” de empresários capitalistas).

Esse campo possui como orgão de comunicação, ainda que com limites, a Rede Record, pelos acordos mantidos pelo governo com a Igreja Universal do Bispo Macedo. Há, no entanto, em alguns momentos conflitos, tendo em vista as posições mais reacionárias dessa igreja em relação à temas como aborto e homossexualidade. Possui outros orgãos menores como a Carta Capital ou o Brasil de Fato (com polêmicas momentâneas). Por outro lado, possui uma base social construída desde o início do ciclo de hegemonia do PT no movimento sindical (CUT) e no movimento popular (como o MST, apesar deste flutuar mais à esquerda) e com o apoio de seus aliados, como o PCdoB (com sua central, a CTB e sua hegemonia na UNE).

À esquerda desse campo, como parte dos setores populares, se encontra o PSOL, que conforma um campo todo próprio do reformismo de oposição de esquerda aos governos do PT. Por ter sido gerado de dentro do PT carrega consigo vários elementos limitantes, em particular pelo seu peso mais parlamentar que no movimento social, tendo compromissos muito grandes com o sistema democrático burguês. Contudo, há que se ressalvar que o PSOL é uma legenda que abriga grupos muito heterogêneos, verdadeiros partidos, e alguns tendem a se aproximar mais do campo a seguir.

O outro campo, parte dos setores populares, é o das organizações revolucionárias. Há aqui várias pequenas organizações, muitas de carácter mais próximo à seitas que de organizações revolucionárias. Os partidos que de fato existem e tem vida ativa e maior projeção são o PCB e o PSTU. Possuem profundas diferenças, principalmente em relação à temas internacionais, mas tem uma mesma estratégia revolucionária para o Brasil, apontando a necessidade de uma revolução socialista como saída para os impasses políticos, sociais e econômicos do desenvolvimento brasileiro. Procuram apoiar-se num trabalho junto à juventude e às massas trabalhadores. Contudo, apesar de seus avanços, ainda são extremamente minoritários na direção dos setores populares e se encontram divididos.

Até as manifestações que tomaram vulto particularmente na última semana, eram estes os campos conhecidos na política brasileira. Sempre se soube da existência de grupos de extrema direita no país, mas estes nunca foram vistos como um campo com intervenção real na vida brasileira, para além de recalcitrantes e saudosistas militares de pijama com suas reuniões no Clube Militar ou certos deputados mais raivosos de origem também militar, bem como os grupos evangélicos mais fundamentalistas. Os militares atuavam particularmente contra as Comissões da Verdade de investigação dos crimes da ditadura, seja como proteção aos seus próprios crimes, seja como forma de proteger a imagem da instituição (quando na verdade, esta só melhoraria se passasse sua história à limpo). No máximo, via-se aqui ou ali um cartaz do MV-Brasil contra o halloween. Em alguns momentos, sabia-se de ações violentas de skinheads. Porém, sempre se viu estes grupos como muito dispersos e desarticulados.

Contudo, na última semana nas manifestações do Rio de Janeiro e de São Paulo, o ovo da serpente do fascismo começou a brotar. Aproveitando-se do sentimento de insatisfação contra os partidos políticos que toma a população – ano passado uma pesquisa apontava que os partidos eram as instituições em que a população menos confiava (apenas 5%) – iniciaram uma ação de agitação e propaganda na internet contra as duas organizações de esquerda revolucionária que participavam ativamente das manifestações exercendo o democrático direito de levar suas bandeiras e suas palavras de ordem, como qualquer um que o fizesse: o PCB e o PSTU. Seus objetivos eram atacar exatamente não todos os partidos, mas particularmente o campo revolucionário, seu inimigo histórico e mortal. Claro que nas manifestações também atingiram outras organizações. Na última manifestação atacaram em São Paulo os militantes do PT e no Rio no início da concentração os militantes da CUT (ligada ao PT). Mas, sua ação mais feroz se deu exatamente contra o PCB e o PSTU: no meio da Avenida Presidente Vargas, de forma muito organizada, utilizando duas milícias atacaram indiscriminadamente os militantes partidários, fossem homens, mulheres ou crianças, por trás e pelo flanco, com bombas, pedras e paus. Mesmo com a resistência dos militantes desses dois partidos e dos militantes do PCdoB e PCR, que tentaram construir um cordão de isolamento para proteger os militantes e a base presentes, muitos saíram feridos. Alguns com gravidade.

Após a manifestação, todos que estavam na rua com camisas vermelhas – inclusive que nada tinham haver com a militância de esquerda – foram atacados. Porém, sua ação não objetivava apenas o ataque físico aos manifestantes de esquerda. Seu objetivo maior era criar um ambiente de terror que servisse para desestabilizar o governo de Dilma Rousseff e justificar uma intervenção militar golpista sob o lema de “recuperar a lei e a ordem”. Para isso contaram com suas milícias, que recrutavam o que Leon Trotsky chamava de “poeira da Humanidade”: membros de torcidas organizadas, skinheads, playboys marombados de academias, criminosos, ex-militares e membros de serviços de inteligência das forças repressivas. Por trás destes – alguns contratados, outros recrutados ideologicamente – estava uma frente de organizações de extrema-direita, que claramente se articulou em nível nacional, com ações que se iniciavam pontualmente na mesma hora em todo o país e com asmesmas palavras de ordem. Não só instigavam a massa com gritos de “sem partido”, “fora oportunistas”, como deixavam ainda mais claro, antes dos ataques iniciados por eles, seu caráter fascista quando acusavam os militantes de esquerda eram “vermelhos, e eles eram verde-amarelo”.

Sua ação pôde ser vista tanto na queima da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, como no Itamaraty, na pancadaria em frente à Prefeitura do Rio de Janeiro, ou no banditismo que espalharam posteriormente às mobilizações, seja na Presidente Vargas, na Cinelândia e na Lapa, seja na Barra da Tijuca no dia seguinte. O mais grave, que demonstrou o comprometimento de amplos setores dos aparatos repressivos, é que estes atuaram sempre com leniência na repressão das milícias fascistas, se deixando encurralar ou simplesmente deixando-os atuarem. Lembre-se que estavam deslocados para o Rio de Janeiro muitos militares – sob a justificativa de proteger o Comando Militar do Leste e o entorno do Estádio do Maracanã – inclusive com tanques de guerra, e nada fizeram contra as milícias fascistas. Mais ainda: a polícia contribuiu com o clima de terror lançando bombas, tiros de borrracha e de projéteis mortais indiscriminadamente pela Lapa e a Cinelândia, contra a população que nada tinha haver com os fascistas, como mostraram recentemente os meios de comunicação.

O sinal positivo, mas que não pode de forma alguma deixar os democratas tranquilos, pois os humores populares podem variar rapidamente, é que o apoio ao golpe é ainda marginal na população. Segundo uma pesquisa do Datafolha apenas 3% dos manifestantes apoiam a ditadura contra 87% que apoiam a democracia e a maioria se coloca num sentido mais progressista, contra a pena de morte e em defesa da aceitação da diversidade, como dos homossexuais.

Entre os campos burgueses há sinalizações do isolamento dos fascistas. No campo governista isto transpareceu no discurso da presidente Dilma Rousseff que isolou os fascistas – apesar de não citá-los diretamente. Essa postura é a mesma do campo burguês oposicionista. O campo governista quer dar sinalizações à sociedade de diálogo, e buscará se reaproximar de suas bases sociais, procurando mobilizá-las, em particular no operariado, grande ausente das mobilizações majoritariamente pequeno-burguesas. É possível que numa radicalização da conjuntura nacional – ligado ao recrudescimento da crise mundial – que ensaie uma saída kerenkista, com um governo que se apoio ao mesmo tempo nas instituições burguesas e nas isntituições operárias. Contudo, isto está ainda distante, mas poderia ser uma última saída da social-demcoracia frente aos questionamentos da institucionalidade puramente burguesa e do crescimento do golpismo.

Do lado do campo burguês oposicionista a saída buscada ainda é pela via institucional. Aprenderam com a história que um golpe militar ou fascista pode sair de seu controle – mesmo que preservando seus privilégios econômicos pode alijá-los da política direta. Um exemplo disto foi Carlos Lacerda, que planejou golpes até que com o golpe ocorrido no 1° de abril de 1964 ele ficou fora do novo regime, sendo também perseguido. Buscam canalizar as manifestações, disputando sua direção através dos meios de comunicação que dirigem, para suas próprias metas, que nada tem haver com a defesa do serviço público (muito pelo contrário), mas de desgastar o governo de Frente Popular. Querem acabar com a “terceirização” do governo burguês e recolocar seus representantes diretos. Para isso apostam num discurso anticorrupção (hipócrita vindo deles, pois seus governos são tão corruptos quanto os petistas), particularmente contra a PEC 37. É claro que tentam semear a confusão, como a Globo na sexta-feira, tentando deixar a entender que a culpa das ações de desordem ligava-se à presença da esquerda!

Neste momento, a grande burguesia não aposta num golpe direto, pois até agora os governos de Lula e Dilma conseguiram manter sob controle a classe operária e atender seus interesses econômicos. Claro que se as coisas fugirem ao controle deles e a crise recrudescer, podem apostar num golpe. À priori, o que se aponta, é que este golpe não seria fascista, mas alguma saída similar ao golpe parlamentar perpetrado contra o presidente Lugo no Paraguai. Este parece também o plano B dos EUA, que por ora estão bem contentes com o governo. Isso é perceptível com a recentíssima indicação (no início do mês de junho) da diplomata Liliana Ayalde para o cargo de embaixadora dos EUA no Brasil, que anteriormente servira no Paraguai. Os EUA são capazes de mudar de orientação no futuro em apoio a um golpe aberto, como a reaivação da IV Frota americana de patrulha do Atlântico Sul indica, mas não é sua tática principal, tendo em vista que ditaduras desse tipo podem fugir ao controle, como ocorreu com a ditadura militar brasileira em seu fim (lembre-se do acordo nuclear com a Alemanha).

Contudo, está claro que o surgimento público do fascismo fará com que nada mais seja igual no país. A instabilidade política se aprofundará e os enfrentamentos serão mais duros. Muito estará na mão da postura da social-democracia em relação ao fascismo – se o enfrentará a partir da estrutura do Estado, alijando os setores golpistas ainda incrustados no mesmo – levando adiante a apuração dos crimes da ditadura militar e punindo-os, de forma a desmoralizá-los. Principalmente, estará nas mãos da esquerda revolucionária: se está conseguirá se unir para refrear os fascistas e desgastar a social-democracia – que por seus limites é a causa direta do crescimento do fascismo – particularmente nos movimentos operários e populares e ao mesmo tempo engendrar uma unidade ampla dos democratas e progressistas. Fundamentalmente, se conseguirão apontar uma nova institucionalidade baseado em organismos populares em alternativa à desgastada institucionalidade burguesa.

O ovo da serpente brotará completamente ou será esmagado antes de seu nascimento?


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