10 JUNHO 2013
CLASSIFICADO EM FORMAÇÃO POLÍTICA - MARXISMO
Álvaro Cunhal
O odiario.info vem, com a publicação deste texto do grande patriota, internacionalista, político comunista, revolucionário e multifacetado intelectual que foi Álvaro Cunhal, associar-se às comemorações do centenário do seu nascimento.
No momento em que amplas massas da juventude portuguesa manifestam nas ruas, nos blogues, nas acções de contestação do governo da burguesia que nos oprime, esclarecer o que é o Estado numa sociedade de classes, como, por que se formou e para que serve, e que a superação da ditadura da burguesia, desta ou de qualquer outra, não se faz no quadro da importante luta dentro das instituições, enfim, divulgar Álvaro Cunhal, o seu pensamento e a política do Partido por ele dirigido é, seguramente, a melhor forma de o recordar.
A 30 quilómetros a noroeste de Leninegrado, Razliv é hoje um lugar histórico. Aí, num sítio ermo, se pode ver a reconstituição da cabana onde Lénine viveu clandestinamente em Agosto de 1917. Aí se pode ver também o cepo de uma árvore que Lénine utilizava como mesa para escrever.
O Verão de 1917 foi um momento de viragem decisiva na revolução russa. Terminara a dualidade de poderes, situação original criada pela revolução, em que, ao lado do governo provisório, governo da burguesia, se formara um outro governo com «uma existência real e incontestável»: os sovietes de deputados operários e soldados (Lénine, «Sobre a dualidade dos poderes», Obras, edição francesa, vol. 24, p. 28) [1]. Os mencheviques e socialistas-revolucionários, impedindo que todo o poder fosse entregue aos sovietes e entrando num «governo de coligação», entregaram de facto todo o poder à burguesia. A contra-revolução passou à ofensiva. Novas tarefas se colocaram ao proletariado e ao seu partido, o Partido Bolchevique. Como escreveu Lénine, se até [4 de] Julho «o desenvolvimento pacífico da revolução russa era ainda possível», a partir de então a questão punha-se em novos termos: «ou a vitória completa da contra-revolução, ou uma nova revolução» (“Resposta», Obras, edição francesa, vol, 25, pp. 231 e 236).
Nas vésperas da «nova revolução», que problema considerava Lénine necessário abordar sem perda de tempo e o levava a escrever febrilmente no cepo de árvore em Razliv? Esse problema era o problema do Estado, e a obra que então Lenine escrevia viria a constituir uma obra fundamental: O Estado e a Revolução.
Já nas Teses de Abril Lénine caracterizara a situação como a transição da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia, para a segunda etapa, que deveria dar o poder ao proletariado e às camadas pobres do campesinato (Ver Obras, edição francesa, vol. 24, p. 12) [2].
De Abril a Julho de 1917, em numerosos artigos e discursos, Lénine insiste na importância do problema do Estado. É porém em O Estado e a Revolução que não só expõe de uma forma sistematizada a teoria de Marx e a defende dos seus detractores, como a aprofunda e enriquece com a sua investigação teórica criadora assente nas experiências do movimento revolucionário.
Nas vésperas da revolução socialista, a ideia fundamental que Lénine julga necessário demonstrar exaustivamente e defender com paixão é que, conquistando o poder, o proletariado não se pode limitar a tomar conta do aparelho do Estado burguês, mas tem de destruí-lo e substituí-lo por um novo Estado.
1
A teoria marxista da luta de classes permite explicar a origem e a natureza do Estado e os seus diversos tipos e formas.
Marx descobriu e demonstrou que o Estado é um poder que nasce da sociedade numa fase determinada do seu desenvolvimento, como resultado da divisão da sociedade em classes, como necessidade do recurso à coacção por uma minoria exploradora para manter a exploração da maioria.
O Estado é uma «organização especial do poder», «um poder especial de repressão», «a organização da violência», um aparelho militar e burocrático constituído especialmente pelas forças armadas, pela polícia, pelos tribunais, pelos órgãos legislativos e executivos, pelo funcionalismo.
Aparentemente acima da sociedade e das classes, o Estado é na realidade um instrumento de dominação e opressão de uma classe sobre outras classes.
A correcta compreensão da natureza do Estado é essencial para toda a acção revolucionária do proletariado, particularmente quando se coloca na ordem do dia a tomada do poder.
Marx descobriu que a luta de classes que se trava na sociedade capitalista conduz necessariamente à revolução, à conquista do poder político pelo proletariado, a um novo Estado definido no Manifesto Comunista como o «proletariado organizado como classe dominante» (Obras Escolhidas, em dois volumes, edição inglesa, vol. 1, p. 53) [3].
Esta é a conclusão fundamental da teoria marxista da luta de classes. Não podem pretender ser marxistas aqueles que a rejeitam. Falando da sua teoria da luta de classes, Marx lembrava que não lhe cabia a ele o mérito nem de ter descoberto a existência das classes, nem de ter descoberto a luta de classes. «O que fiz de novo (sublinhava) foi demonstrar: 1) Que a existência das classes não está ligada senão a determinadas fases do desenvolvimento histórico da produção; 2) Que a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3) Que esta ditadura não constitui ela própria senão a transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes» (Carta a Weydemeyer, 5-3-1852, Obras Escolhidas, em dois volumes, edição inglesa, vol. 2, p. 452) [4].
O papel do proletariado na revolução socialista decorre das suas próprias características como classe na sociedade capitalista. «De todas as classes que hoje defrontam a burguesia (proclamava o Manifesto Comunista) só proletariado é uma classe realmente revolucionária.» «Os proletários só têm a perder as próprias algemas. Eles têm um mundo a ganhar.” (Obras Escolhidas, em dois volumes, edição inglesa, vol. 1, pp. 43 e 65.) [5]
Defendendo e desenvolvendo as ideias de Marx, Lénine insistiu em que só o proletariado, como «única classe revolucionária até ao fim», pode ser «o guia de todas as massas laboriosas e exploradas, que frequentemente a burguesia explora, oprime e esmaga não menos mas mais que aos proletários, e que são incapazes de uma luta independente pela sua libertação». Por isso, o poder da burguesia só pode ser abatido «se o proletariado se transforma em classe dominante capaz de reprimir a resistência inevitável, desesperada, da burguesia e de organizar para um novo regime económico todas as massas laboriosas e exploradas» («O Estado e a Revolução», Obras, edição francesa, vol. 25, p. 437) [6].
O proletariado «transformado em classe dominante», como escreveu Lénine, o proletariado «organizado como classe dominante», como definiu o Manifesto, é precisamente a ditadura do proletariado, o novo Estado Proletário. «O proletariado (insistia Lénine) tem necessidade do poder de Estado, de uma organização centralizada da força, de uma organização da violência, tanto para reprimir a resistência dos exploradores, como para dirigir a grande massa da população - os camponeses, a pequena burguesia, os semiproletários - na edificação da economia socialista» (Ibid.) [7]
Mas como organizar o poder do Estado? A conquista do poder significará a conquista do aparelho do Estado? A esta questão capital, Marx deu uma primeira e clara resposta, que depois Lenine desenvolveu.
Estudando atentamente a experiência revolucionária, Marx sublinhava em 1852 que até então as revoluções políticas não tinham feito mais do que aperfeiçoar a máquina do Estado, pois «os partidos que lutavam uns após outros pelo poder consideravam a conquista deste imenso edifício do Estado como a principal presa do vencedor» («O 18 Brumário», Obras Escolhidas em dois volumes, edição inglesa, vol.1, p. 333) [8]. A experiência da grande revolução proletária do século XIX, a Comuna de Paris de 1871, permitiu a Marx avançar e precisar a sua doutrina. Essa experiência comprovou que, ao contrário do sucedido nas revoluções burguesas, «a classe operária (ao conquistar o poder político) não pode contentar-se com o tomar a máquina completamente pronta do Estado e fazê-la funcionar para a realização dos seus fins» («A Guerra Civil em França», 1871, Obras Escolhidas, em dois volumes, edição inglesa, vol, 1, p. 463) [9].
É nessa conclusão fundamental que Lénine insiste e é sobre ela que escreve no cepo da árvore em Razliv, no Verão de 1917, no momento em que ao proletariado russo se colocava a tarefa de realizar a sua revolução.
A libertação da classe oprimida (escreve Lénine) é impossível «sem a supressão do aparelho do poder de Estado criado pela classe dominante” e a sua substituição «por um poder especial de repressão” exercido contra a burguesia pelo proletariado» («O Estado e a Revolução», Obras, edição francesa, vol. 25, pp. 420 e 430) [10].
Lénine alertava contra quaisquer ilusões que pudessem existir acerca da possibilidade de realizar a revolução socialista se o proletariado e as classes oprimidas se limitassem a tomar conta do aparelho do Estado, cuidando poder utilizá-lo contra a burguesia. Em conformidade com tal conclusão, indicava ao proletariado russo e ao seu partido uma tarefa capital para a conquista do poder pelos trabalhadores: a destruição do Estado burguês e a construção dum novo Estado, dum Estado dos operários e camponeses que, sob a direcção da classe operária, quebrasse a resistência decerto encarniçada da burguesia, suprimisse a exploração do homem pelo homem, pusesse termo à divisão da sociedade em classes, assegurasse a transformação revolucionária da sociedade capitalista em sociedade socialista.
Tal é a essência da ditadura do proletariado.
2
Quando se fala da teoria marxista-leninista do Estado deve ter-se sempre presente o significado da palavra «ditadura» empregada tanto em relação aos Estados capitalistas - à «ditadura da burguesia», como em relação aos Estados socialistas - à «ditadura do proletariado». A clara explicação desse significado é essencial para a compreensão da teoria do Estado e da teoria da revolução e para a determinação da posição das várias classes e forcas políticas em relação ao problema da democracia. Os ideólogos burgueses, incluindo os liberais e socialistas, baralham os dados do problema e procuram mostrar que os comunistas, defendendo a ditadura do proletariado, se opõem à democracia, e que os burgueses liberais e socialistas é em nome da democracia que se opõem à ditadura do proletariado. A ditadura do proletariado, como «ditadura», seria um regime de opressão, enquanto a democracia burguesa, como «democracia», seria um regime de liberdade.
A verdade é que a palavra «ditadura», na teoria marxista-leninista do Estado, não significa uma forma particular de dominação de uma ou várias classes por outra ou outras classes, mas o próprio facto dessa dominação. Segundo a teoria leninista, o Estado numa sociedade dividida em classes antagónicas é sempre uma ditadura. A expressão “ditadura» sublinha que o Estado não está acima das classes, não é um instrumento de conciliação das classes nem um árbitro entre elas, antes é a «organização da violência», é um «poder especial de repressão», é um organismo de dominação de umas classes sobre outras. Em resumo: numa sociedade dividida em classes antagónicas, Estado é sinónimo de Ditadura.
As formas de dominação, tanto na ditadura da burguesia como na ditadura do proletariado, é que podem ser diversas. A ditadura burguesa pode exercer-se através de variadas estruturas dos órgãos do poder e da administração, ou seja, sob regimes políticos diferentes: república parlamentar, monarquia constitucional, governo militar, ditadura fascista, etc. Em qualquer caso é sempre a «ditadura burguesa». A ditadura do proletariado pode também exercer-se com a existência de um ou mais partidos, com um sistema soviético ou uma assembleia parlamentar, ou outras formas de organização do poder. As experiências históricas das democracias populares já mostraram que o sistema soviético não é o único possível para o exercício da ditadura do proletariado, não é a forma única e obrigatória dum Estado socialista.
O facto de quaisquer que sejam as formas de dominação da burguesia se tratar sempre de uma ditadura da burguesia não torna a classe operária indiferente a essas formas de dominação.
Nada tem a ver com o marxismo-leninismo a opinião anarquizante segundo a qual é indiferente à classe operária que o poder da burguesia se exerça num regime parlamentar ou numa ditadura fascista, uma vez que num caso e noutro se trata de capitalismo. A repressão e o terror são utilizados precisamente contra o proletariado, para impedir o desenvolvimento da sua organização e da sua luta, para aniquilar os seus quadros, para cortar o caminho à revolução socialista. Enquanto subsistir o capitalismo o proletariado está interessado em lutar para que a ditadura da burguesia se exerça através de formas o mais democráticas possível, pois estas não só são as que menos sofrimentos lhe acarretam, como são aquelas que melhor lhe permitem defender os seus direitos, forjar a sua unidade, reforçar as suas organizações, limitar e enfraquecer o poder dos monopólios, ganhar as massas para a causa da revolução socialista. Nesse sentido se afirma que a luta pela democracia é parte constitutiva da luta pelo socialismo.
Nada tem também a ver com o marxismo-leninismo a posição de alguns «ultra-revolucionários» ao afirmarem que, nas condições do Portugal de hoje, a instauração das liberdades democráticas, se não fosse acompanhada pela conquista do poder pelo proletariado, seria ainda pior que a ditadura fascista, uma vez que representaria a consolidação do poder da burguesia, cuja crise se agrava nas condições do fascismo. O Partido Comunista Português não considera a revolução antifascista como uma revolução democrático-burguesa, mas como uma revolução democrática e nacional, de natureza profundamente popular. Mas insiste que o fim do fascismo e a instauração das liberdades fundamentais constituem um passo primeiro, fundamental e indispensável da revolução antifascista. Assim, não só formula uma reivindicação central, compreendida e sentida pelas mais vastas massas populares, como indica o caminho que pode conduzir à realização dos outros objectivos da revolução democrática e nacional e ao socialismo. Lénine numerosas vezes sublinhou que os comunistas russos «nunca separaram a luta pelo socialismo da luta pela liberdade política» («As tarefas dos sociais-democratas russos», Obras, edição francesa, vol. 2, p. 347).
Ao mesmo tempo que indicamos a conquista da liberdade política como um primeiro objectivo central da revolução antifascista, afirmamos como marxistas-leninistas, como partido do proletariado, como revolucionários que pretendem pôr fim à exploração do homem pelo homem, que a mais democrática das democracias burguesas serve a burguesia contra o proletariado, protege e defende a exploração dos trabalhadores e, se a luta destes põe em perigo os interesses do capital, a burguesia dominante, por muito «liberal» e «democrática» que seja, não hesita em violar a lei, retirar as liberdades e recorrer a métodos abertamente terroristas.
Como marxistas-leninistas, esclarecemos a classe operária e as massas da verdadeira natureza do Estado e da democracia. Quaisquer que sejam as formas do Estado burguês e do Estado proletário, o Estado proletário, tanto pela sua natureza como pela política que realiza, é sempre mais democrático que o Estado burguês. O Estado da burguesia é o instrumento de dominação por uma ínfima minoria de exploradores da maioria esmagadora da população; o Estado proletário é o instrumento da grande maioria contra uma ínfima minoria. O Estado burguês é um instrumento de exploração e subjugação das classes trabalhadoras e visa perpetuar a divisão da sociedade em classes antagónicas, o Estado proletário é o instrumento da liquidação da exploração do homem pelo homem e do termo da divisão da sociedade em classes.
Uma democracia burguesa, por mais amplas que sejam as «liberdades democráticas», e por muito grande que seja a autoridade do parlamento, é sempre uma ditadura da burguesia; qualquer ditadura do proletariado, mesmo quando assume formas «ditatoriais», é sempre mil vezes mais democrática do que qualquer democracia burguesa.
A Revolução de Outubro trouxe a grande primeira comprovação histórica desta verdade. Desde o início e no seu desenvolvimento, o primeiro Estado de operários e camponeses mostrou ser o Estado de mais profundo conteúdo democrático jamais existente na história da humanidade.
Notas:
[1] Cf. V. I. Lénine, Obras Escolhidas em seis tomos, Edições «Avante!” -Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1984-1989, t. 3, p. 132. (N. Ed.)
[2] Cf. V 1. Lénine, Obras Escolhidas em três tomos, Edições “Avante!”-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1977-1979, t. 2, p. 14. (N. Ed.)
[3] Cf. K. Marx/F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, Edições «Avante!», Lisboa, 1997, p. 56. (N.Ed.)
[4] Cf. K. Marx/F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos, Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1982-1985, t. 1, p. 555. (N. Ed.)
[5] Cf. K. Marx/F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, ed. cit., pp. 46 e 73. (N. Ed.)
[6] Cf. V. I. Lénine, Obras Escolhidas em seis tomos, ed. cit., t. 3, pp. 207-208. (N. Ed.)
[7] Cf. Ibidem, pp. 208-209. (N. Ed.)
[8] Cf. K. Marx/F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos, ed. cit., t. 1, p. 502. (N. Ed.)
[9] Cf. Karl. Marx/F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos, ed. cit., t 2, p. 237. (N. Ed.)
[10] Cf. V l. Lénine, Obras Escolhidas em seis tomos, ed. cit., t. 3,pp. 194 e 202. (N. Ed.)
Texto (Introdução, 1 e 2) e notas da 2ª edição, Editorial “Avante!”, 2007
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