A história do Brasil
sempre foi apresentada para outras gerações, através de leituras que davam
protagonismo à burguesia. Não obstante a presença heróica e militante de homens
e mulheres, que construíram com suas lutas o país, e que contradiziam a lógica
dessa história oficial - a visibilidade das lutas sociais, e dos trabalhadores,
não é do conhecimento da sociedade brasileira.
É necessário abrir uma
nova frente na batalha das ideias, tornar público o papel desenvolvido pelos
trabalhadores e as lutas que marcaram a história brasileira, seja no campo ou
na cidade. Falar de nossos heróis, aprofundar as formulações dos intelectuais do
campo marxista que estiveram ao lado da revolução brasileira. Trata-se, mais do
que nunca, de lutar por uma contra-hegemonia que fomente nas consciências dos
trabalhadores, e da juventude, o sentido de sua missão histórica, a construção
do caminho na perspectiva do socialismo como horizonte para a emancipação
humana.
É com base nessas ideias que
ora apresento um importante intelectual orgânico, que sempre esteve ao lado dos
trabalhadores, como ligação de classe: Rui Facó. Construiu formulações para
entender o Brasil no século XX, utilizando-se do referencial marxista para
explicar a ação dos trabalhadores, as lutas sociais e a sociedade brasileira.
Assim, ele abriu trilhas para desvendar
a realidade social.
A obra de Rui Facó foi elaborada a
partir do arcabouço e da tradição marxista, centrada nos estudos sobre a
formação social brasileira, a partir das categorias povo, nação e lutas sociais. O seu cabedal interpretativo está centrado
no rigor historiográfico e no aprofundamento da análise política. Para além das
falsas premissas, que hoje são apresentadas pela lógica pós-moderna, encontramos
nele uma interpretação da realidade pautada nos processos de lutas, cuja
orientação era a procura por uma nova sociabilidade na história. Assim, resgatar para o debate o pensamento de
Rui Facó é trazer para os estudos contemporâneos, do ponto de vista teórico e
político, uma vertente analítica que é uma síntese explicativa do Brasil no
século XX.
Das origens à interpretação do Brasil
Rui Facó nasceu em
Beberibe, no Ceará, em quatro de outubro de 1913 e a sua inserção na realidade
nordestina permitiu que ele desenvolvesse, a partir desse lócus, um compromisso de pesquisa sobre o Brasil, e o processo de
autoconstituição do povo. Essa preocupação tornou-se um programa de pesquisa,
orientado pela análise da luta do povo contra a opressão; do conjunto das lutas
sociais; das manifestações dos índios; dos escravos; do que ocorreu em Canudos;
das manifestações e atos dos cangaceiros; dos movimentos dos beatos; dos
movimentos republicanos; das lutas pela libertação do imperialismo; e da guerra
engendrada pelo latifúndio. Tudo isso, a partir do princípio dialético da relação
entre dominação e resistência, que formou o todo articulado que compreendemos
como nação.
Rui Facó analisa as particularidades da realidade, histórica, do Brasil,
orientado por duas questões: primeiro, na estrutura das forças produtivas e, no
segundo momento, na questão do monopólio da terra. A partir daí, ele identifica
como questões centrais que precisavam ser afrontadas: o latifúndio, a ação do
colonialismo e a dominação cultural, que tinham um peso sobre a realidade
nacional, em particular, pelo papel que as classes dominantes davam aos
segregados desse processo societário.
Como historiador do desenvolvimento do país,
do desenvolvimento desigual do nordeste, Rui Facó estudou o papel dos
movimentos sociais, levando-se em consideração a questão nacional, a questão
sindical, estudantil, camponesa, o papel da igreja, da imprensa, e o comportamento
da chamada “burguesia nacional”.
No livro Brasil Século XX, um minucioso estudo
sobre o país, Rui Facó faz um debate sobre as forças produtivas e o nível de
desenvolvimento do capitalismo entre nós. Alertando sobre os descaminhos do
processo político, sinalizando para o papel que deveria ser desempenhado pelos
trabalhadores no cenário da luta de classes; sem abrir mão de avaliar que a
presença do Partido Comunista, nesse contexto, era uma necessidade histórica. O
livro Cangaceiros e Fanáticos: gênese e lutas
tem um valor histórico extraordinário. Apresenta uma interpretação inédita
das contradições brasileiras, pautada nas questões da terra, nas lutas dos
despossuídos, e do poder político em curso no Brasil. E, tudo isso, analisado com
o rigor da dialética marxista, pois apreende na história o processo das lutas
de classe.
Ao lado dessa análise, Rui
Facó encontra no papel político das classes dominantes, uma reação para impedir
o ajuntamento de comunidades, entendido aí como ajuntamento de pessoas pobres
em várias áreas do nordeste. Na lógica do poder político, em vigor, essa
situação era um perigo à continuidade da dominação de classe que perenizava o
latifúndio. E, tinha ao mesmo tempo, uma preocupação dos reacionários com o
princípio de solidariedade que se estabelecia nas diversas comunidades onde
ocorriam as lutas pela terra.
Rui Facó questionou a leitura oficial
sobre o papel que davam às lutas no campo, qualificadas de misticismo e, para
alguns, dotada de passividade no processo de resistência. Para ele, podem-se
até encontrar características de uma resistência passiva a partir do papel
desempenhado por figuras como Antônio Conselheiro, beato Lourenço e Padre
Cícero. No entanto, essa passividade como forma de luta, não era real e concreta
no conjunto das manifestações de resistências que foram encontradas no campo no
século XX, basta analisar Porecatú, as ligas camponesas e Trombas e Formoso.
Sua percepção sobre novos personagens
e o papel do campo na formação social brasileira denota seu ineditismo. Ao se contrapor
às formulações racistas de Euclides da Cunha, ele construiu uma critica
original. Na compreensão sobre o grau de desenvolvimento do capitalismo, na
leitura sobre a classe dominante e suas frações, na análise das lutas sociais
como princípio pedagógico para a emancipação humana percebe-se a qualidade metodológica
de seus instrumentos de pesquisa. Constata-se então, o refinamento conceitual
para entender o seu tempo, comprovando ser Rui Facó, a partir da sua síntese
explicativa, um intérprete do Brasil.
Lutas sociais e compromisso revolucionário
Rui Facó ficou na sua cidade natal
até terminar o ensino básico, quando premido pela necessidade de trabalhar,
mudou-se para Fortaleza. Procurou emprego na função em que já demonstrava
alguma habilidade, o jornalismo. Nessa cidade, no início dos anos 30, passou a
freqüentar o ambiente cultural e político que contestava a ordem em vigor e
entrou para o Partido Comunista.
Em 1935, o país passava por profundas
agitações políticas, surgiu a Aliança Nacional Libertadora, um movimento de
frente única que contestava o governo Getúlio Vargas; e os levantes armados de
novembro em Natal, Recife e no Rio de Janeiro. Rui Facó participou das
manifestações de massas que abalaram o ano vermelho de 1935. Logo, transferiu-se
para Salvador, trabalhou nos Diários
Associados e participou da fundação da revista Seiva, em 1938. Ainda na Bahia, durante a segunda metade dos anos
30, ele foi encarcerado pela polícia getulista em virtude de sua intensa
atividade política e intelectual.
Com o fim da segunda guerra, Rui Facó
se mudou para o Rio de Janeiro, começando a trabalhar na redação do jornal A Classe Operária. A partir daquele
momento, quando passou a escrever para diversos jornais e revistas de todo o
país, percebe-se que já estava construindo o alicerce das suas formulações
sobre a formação social brasileira.
A conjuntura no pós-guerra era de
ascenso das massas. A imprensa comunista estava em crescimento, isso em virtude
da legalidade conquistada pelo PCB e pela grande presença desse operador
político no cenário das lutas sociais, no parlamento e na intelectualidade. No
entanto, as suas formulações, pautado pelo fogo da conjuntura, contavam com
dubiedades que poderiam desarmar o Partido para enfrentar as próximas batalhas.
E, foi o que terminou acontecendo. A conjuntura brasileira foi tensionada pela
ação bonapartista da classe dominante, que queria evitar qualquer risco à
manutenção do poder nas mãos da burguesia, e as frações de classe do bloco no
poder, agiram. Mesmo o PCB sendo um partido de massas (contava com 200 mil
filiados), com uma importante representação parlamentar pelos estados e no
congresso, com uma grande influência cultural, artística e intelectual, o
partido foi posto na ilegalidade pelo general Dutra, o Le Petit de plantão.
Seus parlamentares foram cassados, começando, outra vez, uma feroz perseguição
aos comunistas: com prisões, torturas e assassinatos. É a partir desse cenário
político que Rui Facó, em 1952, vai morar na URSS, trabalhando na Rádio Moscou,
onde teve uma intensa “atividade literária e jornalística”.
A última batalha de um intelectual orgânico
De volta ao Brasil em 1958, Rui Facó avançou
para desenvolver as bases de suas formulações mais sistemáticas, e aprofundou
uma intensa e qualificada intervenção no debate jornalístico em curso, até
1963. Todavia, também encontramos a sua enorme presença, para além desse
período, como militante da pena, em muitos periódicos e jornais: Seiva, Flama, Continental, Problemas, Estudos Sociais, A Classe
Operária, Tribuna Popular, Hoje, O Momento, O Democrata, Voz Operária, Novos Rumos e na agência de notícias, Interpress.
Como escritor e pensador comunista,
Rui Facó nos brindou com alguns textos de imenso valor histórico. Encontramos ainda,
uma grande quantidade de artigos e trabalhos sobre acontecimentos relevantes,
como a eleição de Miguel Arraes em 1962, para o jornal Novos Rumos. O artigo sobre a fundação do Movimento Unificador dos
Trabalhadores, O MUT, instrumento de
unidade da classe operária, publicado no jornal Tribuna Popular, em 1945. Temos um denso estudo sobre as lutas dos
camponeses em 1963, mas, também uma incursão pela crítica teatral, quando da
estréia de uma peça de Dias Gomes, em 1962.
Intelectual orgânico e militante político,
o historiador Rui Facó dedicou os últimos cinco anos da sua vida (1958-1963) ao
exercício da contra-hegemonia ideológica e política, exercendo o papel de jornalista.
Foi nessa condição que fez a sua última viagem e lutou a sua última batalha. Morreu
no dia 15 de março de 1963 em um desastre aéreo na Bolívia, antes mesmo de
completar 50 anos, numa viagem pela América Latina como correspondente do
Jornal Novos Rumos.
Não obstante o prematuro
desaparecimento, ele nos legou uma obra que construiu pontes para explicar a
realidade brasileira, a partir das lutas sociais e do papel do povo. Afinal,
novos atores, trabalhadores do campo e da cidade tiveram em Rui Facó o
pesquisador participante, o cientista social e historiador que não foi leviano
com a verdade das lutas que marcaram, no Brasil, o breve século XX.