Por Mauro Iasi.
“Porque esta vez no si trata
De cambiar un presidente
Será el pueblo que construya
Un Chile bien diferente”
Falando-nos sobre as características da
revolução proletária, Marx disse certa vez que nossas revoluções
“encontram-se em constante autocrítica, (…) retornam ao que
aparentemente conseguiram realizar, para recomeçar tudo de novo, (…)
parecem jogar seu adversário por terra somente para que ele sugue dela
novas forças e se reerga diante delas em proporções ainda mais
gigantescas” (O 18 de brumário de Luís Bonaparte,
p.30). De fato não se aprende com o passado a não ser o que deveríamos
ter feito no passado. O que importa no estudo de nossa experiência de
classe pregressa é descobrir os caminhos por onde passou o futuro em
construção, os impasses e erros que nos distanciaram de nossa meta,
para, assim, olhar para frente com mais segurança. Nossa revolução não
tira sua poesia do passado, mas do futuro, como também disse o velho
mestre, pois se antes a frase vazia das revoluções burguesas iam além do
conteúdo, agora é o conteúdo proletário que não cabe na fraseologia
vazia do ideário burguês.
O que a revolução chilena nos ensina neste olhar para o futuro?
Ao lado de características comuns a todos os povos da América Latina –
tais como a dependência em relação aos interesses externos, a economia
agro-exportadora, o domínio das oligarquias reacionárias, a concentração
de terras – existiam no Chile alguns fatores que davam certa
singularidade a sua formação social. Entre eles, uma história política
que acabou por constituir uma estabilidade ordenada constitucionalmente e
a presença de forças armadas inspiradas por anseios nacionais e
progressistas, chegando mesmo a apoiar uma República Socialista que se
manteve no poder por 12 dias em 1932.
Ainda que tal fato não tenha impedido episódios de reacionarismo e
repressão (como a Lei de Defesa da Democracia, conhecida como “lei
maldita” de 1948) as eleições foram diretas desde 1924 e acompanharam um
lento, mas crescente, amadurecimento de uma alternativa popular e
socialista.
Em 1951 socialistas e comunistas se unificam em uma Frente do Povo e
lançam Salvador Allende que obtêm 6% dos votos perdendo para o general
Ibañez Del Campo. Em 1957 o Partido Socialista (PS) define uma linha de
Frente de Trabalhadores e abre caminho para a unidade com o Partido
Comunista (PC). A direita e as classes médias, temerosas com o
crescimento da esquerda, contra-atacam com a formação do Partido
Democrata Cristão (PDC).
Em 1958 o PDC derrota Allende por uma diferença de 35 mil votos e
alguns anos depois irá defender uma alternativa que não seria “nem
socialista, nem capitalista” prometendo uma “revolução sem sangue”. Em
1964 o candidato do PDC, Eduardo Frei (56%), derrota Salvador Allende
(39%) em uma eleição na qual a CIA despejou U$425 mil. Naquela
oportunidade 0,7% dos proprietários controlavam 61,6% das terras
chilenas e o imperialismo monopolizava todos os setores chaves da
economia, a começar pela mineração. O desemprego era de 300 mil e a
inflação corroia os salários. Isabel Parra cantava:
“Linda se ve la patria señor turista,
Pero no le han mostrado las callampitas.
Mientras gastan millones en un momento,
De hambre se muere gente que es un portento.
Mucho dinero en parques municipales
Y la miseria es grande en los hospitales.
Al medio de alameda de las delicias,
Chile limita al centro de la injusticia.”
Eduardo Frei edita três leis sobre reforma agrária bastante
moderadas. Os partidos populares (entre eles, o MIR, que havia sido
fundado em 1965) e a CUT passam a organizar os camponeses e chegam a uma
greve geral camponesa marcada por intensa mobilização e confrontos
entre 1967 e 1969. Estas mobilizações serão violentamente reprimidas
pelo governo do PDC. Como outras vezes ocorreu em nosso sofrido
continente, a revolução sem sangue virou sangue sem revolução.
Estes acontecimentos aceleraram a formação da Unidade Popular,
formada pelo PC, pelo PS e por outros setores como o Partido Radical, a
Ação Popular Independente e um racha do PDC chamado Movimento de Ação
Popular (MAPU). A maior divergência que se expressava neste momento
entre as forças de esquerda era sobre a possibilidade de uma vitória
eleitoral e sua relação com a estratégia socialista. Os comunistas
colocavam a meta socialista como algo a ser alcançado em um horizonte
longínquo, enquanto os socialistas defendiam que uma vitória eleitoral
poderia ser o início da construção socialista.
Apresentaram um programa que refletia esta tensão. Propunha-se a
nacionalização da economia, aprofundar a reforma agrária, retomar o
crescimento econômico, ampliar a oferta de emprego e provocar uma
melhora significativa na qualidade de vida das camadas populares.
Em 1970, em uma eleição disputadíssima, Salvador Allende venceu com
36,5% ao candidato do Partido Conservador, Jorge Alessandri (35%) e
Rodomiro Tomic do PDC (27,8%). A diferença foi de 39 mil votos e, por
não ter alcançado a maioria absoluta, o candidato socialista deveria ser
confirmado pelo Congresso, de maioria conservadora.
A CIA tinha outras alternativas e acalmou os conservadores. Como
ficou demonstrado por um bilhete de um agente chamado Helms que
descrevia um plano de nome TracII, o departamento de Estado Norte
Americano apostava em uma complexa operação de desestabilização.
Em setembro de 1970 o povo trabalhador tomou as ruas e festejou pacificamente sua vitória.
“Porque desta vez no se trata
de cambiar un presidente
será el pueblo que construya
un Chile ben diferente”
Desta vez não se tratava de trocar um presidente, seria o povo
chileno, organizado e politizado, que estava disposto a construir um
Chile bem diferente. Uma cultura popular explodia com uma radicalidade
que, como dizia Victor Jara, não era apenas música de protesto, mas
música popular que nascia da identidade compartilhada com o povo e suas
lutas. E se a esquerda abraçou o povo e seus anseios, o povo abraçou as
bandeiras da esquerda e o socialismo tornou-se um fenômeno de massa. O
Partido Comunista, por iniciativa e trabalho do próprio Jara, chegou a
organizar vários conjuntos musicais, entre eles o Quilapayun e o
Inti-Illimani.
O presidente eleito cumpriu o programa pelo qual se elegeu:
nacionalizou a mineração (responsável por 80% da receita do país e que
antes era monopolizado pela Anaconda, Kennecolt, Serro Co. e outras),
estatizou o sistema financeiro e colocou normas de controle sobre os
monopólios industriais e as empresas de telecomunicações, entre elas a
poderosa ITT. Assumindo o governo, mais do que simplesmente o posto, a
Unidade Popular tinha ferramentas para dirigir a economia, ainda que nos
marcos do capitalismo.
O resultado já no primeiro ano foi surpreendente. O desemprego caiu
pela metade, os salários subiram entre 35% e 60%, o setor industrial
cresceu 12% e o PIB 8,3%, a reforma agrária é imediatamente estendida a
30% das terras, e apesar destas heresias, inflação declinou (coisa que
certos economistas ilustres de hoje teriam grande dificuldade de
explicar, não é?). O povo cantava: “venceremos, venceremos… a miséria sabemos vencer”.
A tensão cresce no campo, o MIR e o MAPU organizam o Movimento
Revolucionário Camponês, cada criança tem direito a um litro de leite,
os proprietários de terra sabotam a colheita, os operários se organizam
em cordões industriais, 300 mil cabeças de gado são contrabandeadas para
a Argentina, 96% do crédito bancário está na mão do governo, 10 mil
litros de leite jogados no rio e as senhoras da classe média, aquelas
que moravam “en las casitas del barrio alto”, fazem passeatas
porque as crianças gastaram o leite e o preço dos cosméticos subiu. Os
trabalhadores cantam: “não nos moverão, e aquele que não creia que faça a
prova, unidos em sindicatos, não nos moverão, construindo o socialismo,
não nos moverão”!!
O imperialismo joga. Manobra para baixar o preço do cobre, sabota as
minas, o Exibank suspende o crédito internacional, os jornais burgueses,
entre eles o maior – El Mercúrio – faz o trabalho de
desinformação. A dívida passa de 2,5 bilhões em 1970 para 4 bilhões em
1973. As reservas de 350 milhões tornam-se um déficit de 400 milhões. Os
empresários fecham as fábricas em um lockout em 1972 e os
caminhoneiros, financiados pela CIA, paralisam os transportes
rodoviários. Os trabalhadores nos cordões ocupam as fabricas e se armam.
E cantam: “levántate e mira a tus manos, para crescer estreita-las a tus hermanos”.
Allende diz: “comprometi-me a agir dentro das leis e da constituição e
ninguém me fará abandonar este caminho”. No parlamento os
conservadores, aqueles a quem o povo chamava carinhosamente de “múmias”,
exigem a aplicação da lei do desarmamento. E Angel Parra cantava: “me gusta la democracia en nestehermoso país, pois permite a negros e blancos admirar los monumentos… soy democrata, tecnocrata, plutocrata y hipócrita”!
A inflação volta a subir e passa de 22% em 1971 para 163,4% em 1972 e
chega a 325% em 1973. Os monetaristas de Chicago podiam festejar sua
profecia autorrealizável. John Marc Cone diz: “vamos lançar o Chile num
verdadeiro caos econômico”. O governo reage aos boicotes e cria as
Juntas de Abastecimento e Preços e os Comandos Comunais. O Ministro da
Defesa, General Prats, fiel ao governo da Unidade Popular, comunica ao
presidente que setores das forças armadas planejam interromper o
processo constitucional e se dispõe a prender os líderes. O comando das
forças armadas considera este ato uma ingerência e exige o afastamento
de Prats. Assume o ministério o General Augusto Pinochet. O povo canta: “no nos moveran… nin con un golpe de estado, no nos moveran”!
No dia 29 de junho os tanques fazem seu ensaio no Tankazo e cercam o
palácio. Dia 11 de setembro eles voltariam acompanhados de aviões que
bombardeiam La Moneda, o palácio presidencial. Operários, estudantes e
camponeses cantam: “traicionar a la pátria jamás”. A marinha
faz manobras conjuntas com as tropas norte-americanas em Valparaiso.
Fidel, em sua visita ao Chile, deu de presente a Allende uma
metralhadora e oferece os serviços de um de seus principais generais e
assessor militar, general Uchoa. Allende está isolado em La Moneda, o
povo… desarmado. Os soldados e oficiais fieis ao governo socialista são
fuzilados nos quartéis. A constituição está rasgada e o congresso canta:
“soy democrata, tecnocrata, plutocrata… hipócrita”.
O presidente Allende falou em sua posse em 1970: “isto que hoje
germina é uma larga jornada, eu só peguei em minhas mãos a tocha que
acenderam todos aqueles que antes de mim lutaram ao lado e pelo povo,
este triunfo devemos oferecer em homenagem aos que caíram nas lutas
sociais e regaram com seu sangue a fértil semente da revolução chilena
que vamos realizar”. Mas a semente exigia ainda mais sangue.
Em 11 de setembro de 1973 o presidente falará pela última vez ao povo:
“Companheiros trabalhadores, eu não vou renunciar. Colocado nesta
transição histórica, pagarei com minha vida a lealdade do povo e digo
que tenho a certeza que a semente que entregamos à consciência digna de
milhões de chilenos não poderá ser negada porque não se detêm os
processos sociais, nem com o crime, nem com a força. A história é nossa e
a fazem os povos (…) Neste momento decisivo o único que posso dizer a
vocês é que aprendam a lição. O capital estrangeiro, o
imperialismo, criou o clima para que as forças armadas rompessem sua
tradição (…) Trabalhadores de Chile, tenho certeza que mais cedo que
tarde se abriram novamente as grandes alamedas por onde passarão os
homens livres para construir uma sociedade melhor. Viva Chile, viva o
povo, viva os trabalhadores…”
O presidente Allende está morto. Serão mais de 30 mil mortos e
milhares de presos e desaparecidos. O Estádio Nacional se transforma em
um presídio onde serão confinados milhares de trabalhadores. Entre eles
está Victor Jara que canta desafiando seus algozes: “Venceremos, venceremos… socialista será el porvenir…”. É abatido a golpes de fuzil e suas mãos são esmagadas a coronhadas. O povo chora:
“Hijo de la rebeldía
Lo siguen veinte más veinte,
Porque regala su vida
Ellos le quieren dar muerte.
Correlé, correlé, correlá,
Por aquí, por allí, por allá,
Correlé, correlé, correlá,
Correlé que te van a matar,
Correlé, correlé, correlá”.
Ernesto Che Guevara dizia que a maior qualidade de um revolucionário é de encontrar as táticas adequadas a cada momento
e explora-las ao máximo sendo um erro descartar qualquer tática a
princípio. Desta forma seria, ainda segundo Che, um “erro imperdoável
descartar por princípio a participação em algum processo eleitoral”, mas
alerta: “quando se fala em alcançar o poder pela via eleitoral, nossa
pergunta é sempre a mesma: se um movimento popular ocupa o governo de um
país sustentado por ampla votação popular e resolve em consequência
iniciar as grandes transformações sociais que constituem o programa pelo
qual se elegeu, não entrará imediatamente em choque com os interesses
das classes reacionárias desse país? O exército não tem sido sempre o
instrumento de opressão a serviço destas classes? Não será então lógico
imaginar que o exercito tomará partido por sua classe e entrará em
conflito com o governo eleito? Em consequência, o governo será derrubado
por meio de um golpe de estado e aí começa de novo toda a velha
história”.
Brasil, ano 2002. O candidato popular vence as eleições por ampla
margem de votos. Os mercados se acalmam, o presidente do Banco Central
vigia, os salários perderam entre 2003 e 2005 14,56% de seu valor real,
os juros vão caindo pouco a pouco, os bancos seguem privados e lucrando
como nunca, a reforma agrária patina sem sair do lugar, o judiciário
nega a primeira liminar de desapropriação, os ruralistas se armam, o
presidente diz que na marra ninguém ganha nada, criticando o MST, os
militares ficam fora da reforma da previdência, os aposentados e
funcionalismo público não, o equilíbrio monetário está salvo, a fome
persiste, os superávits primários são maiores que o combinado com o FMI,
as demandas sociais terão que ser tratadas focalizadamente. As 500
maiores empresas aumentam seus lucros: seus ganhos saltaram de 2,9
bilhões de dólares em 2002 para 43,3 bilhões em 2006. Entre 2002 e 2009 o
fundo público transferiu o equivalente a 45% do PIB para o capital
financeiro (dava para manter o Bolsa família por 108 anos). O 1% dos
mais ricos tem uma renda maior que os 50% mais pobres. Quase 6 milhões
de pessoas saíram da linha da miséria absoluta, quando ganhavam 1 dólar
por dia – agora ganham 2 dólares por dia. Entre 1990 e 2012 os 10% mais
ricos saltam do controle de 53% da riqueza nacional para 72,4%. As
massas vão às ruas em 2013 contra o aumento das passagens, pela saúde e
pela educação… a presidente garante à burguesia que manterá a ordem e a
responsabilidade fiscal… o PT lança nota dizendo que sua aliança
prioritária em 2014 será com o PMDB, o perigo de golpe esta afastado
para o momento… “me gusta la democracia em neste hermoso país”.
E Violeta Parra canta:
“Miren como sonríen los presidentes
cuando hacen promesas a inocentes,
miren como prometen a los sindicatos
este mundo y el otro los candidatos,
miren como redoblan los juramentos,
pero después del voto doble tormento”
* Versão modificada de texto escrito em 2003, para esta publicação no Blog da Boitempo.
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Mauro Iasi é um dos autores de Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil,
o primeiro livro impresso inspirado nos megaprotestos que ficaram
conhecidos como as Jornadas de Junho, além de ser o principal esforço
intelectual até o momento de analisar as causas e consequências desse
acontecimento marcante para a democracia brasileira. Também contribuem
para a coletânea autores nacionais e internacionais como David Harvey,
Slavoj Žižek, Mike Davis, Ermínia Maricato, Paulo Arantes, Roberto
Schwarz, Raquel Rolnik, Ruy Braga, Carlos Vainer, entre outros.
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